Preservação
Certa feita, o sonho jamais assumido de um casal preservacionista foi atingido com a extinção da raça humana. Seja lá por qual motivo foi, se por alguma pandemia incontrolável, guerra mundial ou coisa que o valha, cada homem, mulher, criança e velho da face da Terra morreu sem deixar descendência.
O tal casal regozijou-se nos seus últimos anos, meses e dias de solidão com gozo ímpar, vivendo nos escombros da humanidade já sendo reclamados pela imparável força da natureza. Testemunharam as grandiosas obras das grandes e os pequeninos feitos das pequenas pessoas sendo absorvidos por plantas, animais e todas as outras formas de vida. Em seu último suspiro, prometidos um ao outro de manterem-se estéreis por respeito à, daquele momento em diante, todo-poderosa Mãe Terra, como anti-Adão e anti-Eva partiram da vida legando o recém reabilitado Jardim do Éden aos seus próprios cuidados.
Seus cadáveres insepultos não testemunharam os insetos, aves e pequenos mamíferos carniceiros que executaram-lhes um funeral digestivo, e também não testemunharam os primeiros dias e noites totalmente livres da presença do homem na biosfera. Saindo das casas e apartamentos arruinados, cães de pedigree lançaram-se ao cruzamento que os alçou a uma grande e selvagem condição de “sem raça definida”. A competição entre as espécies desenfreou-se da mediação humana e os animais exóticos outrora da estimação de alguém tiveram de enfrentar a natureza nativa sem a mão protetora dos antigos tutores, de memória já perdida.
Os vestígios mais fugazes da humanidade, tais como os papéis de seus livros e a carne de seus corpos, se foram primeiro; em seguida, foram sumindo os mais perenes, como os plásticos e materiais compósitos. Carros rebaixaram-se a sucatas habitadas por toda sorte de ervas e plantas. Ratos, baratas e o exército de bichos escrotos saíram dos esgotos, saudosos dos ricos resquícios que desciam pelos canos e ralos; mas deram seu jeito de prosperar. Conforme o tempo foi passando, espécies desapareciam, se transformavam ou evoluíam; certa raça de macaquinhos espertos ficou um pouquinho mais hábil, mas nada que remontasse ao antigo engenho humano que inventou vidros translúcidos, metais purificados ou braços robóticos, entre outras maravilhas.
Florestas cresciam e desapareciam, desertos se expandiam e retraíam, bem como as águas dos mares. Geleiras, tundra, cerrados; tudo ia surgindo e sumindo sob o testemunho acrítico da Criação que subsistiu. O Sol numa era esquentou, noutra esfriou e a tudo foi formando, transformando, reformando e deformando. Sem alguém com intelecto para criar um lápis e uma folha de papel, segurá-los em suas mãos e anotar tais fatos, temperando-os com doses generosas de opiniões e emoções, a marcha dos dias seguiu veloz no longo relógio cósmico.
Do espaço sideral, nada chegou além de pedregulhos de tamanhos variados, onde alguns bem grandes acrescentaram vírgulas e pontos finais aos parágrafos desta história jamais narrada. Naves e raças alienígenas? Ninguém veio. Talvez estivessem ocupadas ou longe demais para chegar ao pálido ponto azul — ou mesmo sequer existissem. O fato é que as estrelas do céu noturno dançaram, desfazendo velhas e formando novas constelações com seus pontos brancos, azuis, amarelos e vermelhos, sem que um único cosmonauta se lançasse a elas em aventuras ou mesmo na rotina de um dia cansativo de trabalho.
Milagrosamente ou não, o terceiro planeta do Sistema Solar chegou mais ou menos incólume até o derradeiro dia onde seu Astro Rei o engoliu, antes de arrotar suas camadas exteriores para o Universo, repousando em seguida numa lenta digestão que apagou de vez a luz de sua vizinhança. Se algum astrônomo ou astrólogo estivesse onde antes o Planeta Azul esteve, e olhasse para o profundo céu por bilhões de anos, veria aquela profusão de luzes maravilhosas se afastar e esvair lentamente. As estrelas e toda sua gigantesca energia se foram sem que delas alguém extraísse o potencial ou, sob seu brilho, vivesse histórias fabulosas e as narrasse aos descendentes. Nebulosas coloridas e galáxias radiantes dissiparam-se sem que alguém visse e cantasse odes à sua ímpar e passageira beleza. Quasares e pulsares desapareceram sem deixar rastros detectáveis à curiosidade de alguém que, decerto, escreveria intrincados artigos científicos sobre tais objetos misteriosos. Potentes buracos negros evaporaram para o nada sem que algum tresloucado se lançasse ao seu horizonte de eventos buscando saber se havia vida após a espaguetificação.
E assim o Universo morreu, após milênios de milênios de preservação.