Eutanásia
– Poderia, caso ainda se recorde, nos dizer como e quando isto tudo começou? – dirigiu-se o juiz ao réu e ao mesmo tempo defensor, já que ele havia decidido fazer sua própria defesa.
– Certamente, Meritíssimo! Ainda está viva esta lembrança em minhas memórias. E, caso algum ilustre integrante do júri seja jovem demais para se recordar desta época, sei que encontrará facilmente referências a isto nos registros da Nuvem de Dados Planetária. Eu fui contemporâneo da grande onda de bio-hacking de meados do século XXI, e como todo mundo eu também queria explorar meus limites biológicos, algo cada vez mais corriqueiro e barato com a biotecnologia e nanotecnologia emergentes.
– Intervenções cirúrgicas desnecessárias e levianas, é o que o acusado quer dizer. – se intrometeu o promotor.
– Protesto!! Meu colega faz suposições sobre fatos desconhecidos.
– Protesto aceito! Por favor, prossiga!
O réu-defensor olha para o vazio, tentando retomar a linha de raciocínio interrompida. Então continua:
– A princípio não havia nenhum tipo de intervenção cirúrgica, como sugere meu colega. Quem na época poderia resistir, por exemplo, à tentação de reativar variantes inativas da rodopsina no código genético dos bastonetes, tornando a retina capaz de reagir à radiação infravermelha? Por que não estender os limites de nossas visões, tornar-nos capazes de visão noturna, bastando para isso uma inócua e não invasiva terapia genética?
– Não existia uma restrição na época quanto à modificação dos próprios genes? – insistia irredutível o promotor. – À depredação irresponsável do patrimônio genético humano?
– Veja bem, Meritíssimo: eu… digo, meu cliente não estava alterando seus genes! Os genes responsáveis por esta variação da proteína rodopsina capaz de interagir com o infravermelho sempre estiveram presentes no DNA humano. Só estava inativa, pois em nossa espécie especificamente ela não representava nenhuma vantagem evolutiva. Simplesmente foi reativado este trecho de meu DNA. Girei uma chave de liga-desliga, sem alterar a programação. Nenhum DNA externo adicionado para proporcionar tal característica, apenas ativação de um trecho que já existia, mas que normalmente era inativo.
Houve uma comoção do júri, em sinal de aprovação. Claramente explicado daquela forma, o argumento fazia todo o sentido!
– Mas isto abriu caminho para os apêndices biomecânicos, não é verdade?
A defesa não se irritou com esta nova interrupção da promotoria, que já era esperada. Respondeu com tranquilidade.
– Entre o final do século XXI e início do século XXII o corpo humano deixou de ser encarado como um templo inviolável. Era visto mais como um apêndice orgânico de nossas mentes, que podia tranquilamente ser aperfeiçoado ou mesmo corrigido tecnologicamente, caso isto pudesse melhorar a qualidade de vida de seu possuidor. Este era o consenso da época, e acredito que um ato realizado em concordância com um conceito geral da época em que aconteceu seja totalmente válido, não é mesmo?
Aguardou algum tempo, tentando perceber a reação geral dos que estavam ouvindo. Continuou, certo de todos terem compreendido a ideia original.
– Percebam que nesta época meu cliente já era praticamente centenário, seus ossos e músculos já não lhe respondiam a contento e isto me fazia sofrer. Digo, fazia sofrer meu cliente. As intervenções cirúrgicas já não eram mais, como disse antes meu nobre colega, nem levianas nem desnecessárias. Estava dentro do direito de meu cliente se utilizar da tecnologia da época para corrigir as falhas do corpo, decorrentes do tempo de uso, e aperfeiçoá-lo também se possível!
– A amputação dos membros era desnecessária! A terapia genética, que inclusive já foi citada pelo colega há pouco, poderia trazer de volta o tônus muscular e recalcificar os ossos! Era possível recuperá-los preservando suas naturezas orgânicas, sem precisar substituir partes de seu corpo natural por frias próteses mecânicas.
– Meu nobre colega desconhece o sofrimento que isto causaria! Dores indescritíveis durante a apoptose das células musculares velhas, no longo processo de substituição por células novas…
– Por favor, queira utilizar termos compreensíveis para um público leigo.
O advogado de defesa rápido tentou corrigir seu lapso:
– APOPTOSE: morte programada da célula, normalmente um recurso natural ativado para a eliminação de células defeituosas, mas que podemos ativar artificialmente para eliminar células já bastante desgastadas pelo tempo.
– Agradecemos o esclarecimento! Queira prosseguir.
– Continuando... Era bastante doloroso o longo processo de reconexão das terminações nervosas com estas células novas, a perda de sensibilidade. E para quê? As células “novas” já nasciam velhas, pois a restauração dos telômeros na clonagem celular ainda não era dominada totalmente naquela época.
– Linguagem leiga, por favor! – intervém novamente o juiz.
– Perdão: TELÔMEROS são terminações cromossômicas de sequências repetitivas de nucleotídeos. Não possuem expressividade genética, pois não codificam proteínas, mas protege, durante a divisão celular, as partes ativas e expressivas. Porém se deterioram um pouco a cada divisão, e quando finalmente se desgastam e chegam aos trechos ativos do DNA, começa o envelhecimento, e o inicio da morte natural das células.
– Eu, e acredito que a maioria no júri, agradecemos o esclarecimento!
– Fico feliz em deixar tudo o mais claro possível, Meritíssimo. Continuando, era um processo difícil, doloroso, e que estava condenado a uma nova deterioração bem rápida, pois os telômeros das células clonadas tinham mesmo comprimento e, portanto, mesma expectativa de vida das células velhas! Por que iria eu… digo, meu cliente, se sujeitar a tal tratamento de troca de células se substituir os quatro membros por próteses biomecânicas duráveis era mais simples e garantido?
– Mas foi exatamente aí que começaram as intervenções diretas no sistema nervoso de seu cliente, não é mesmo? – o promotor prosseguia em seu papel de contraposição. – Na estimulação artificial dos sentidos e interceptação dos comandos de ação, friamente reproduzidas em circuitos eletrônico. Algoritmos de máquina interferindo na vontade humana, o início da deterioração da alma humana, invadida sem poder reagir a invasores cibernéticos que…
– Protesto, Meritíssimo!! Meu ilustre colega está usando termos não científicos, como “alma”, e claramente seu discurso faz transparecer certa robofobia inaceitável nos dias de hoje!
Metade do júri, composto de robôs humanoides puros sem origem em matrizes humanas, estava mesmo claramente incomodada com o rumo que a promotoria tomava!
– Aceito! Caro promotor, tente pesar melhor suas palavras daqui em diante.
– Me desculpe, Meritíssimo! Foi o calor do momento…
– A defesa agora tem a palavra.
Ele passou o dorso da mão de sua prótese superior direita na testa, que era uma placa de titânio recoberta por pele sintética quase indistinguível de pele real. Ato desnecessário, pois fazia décadas ele não mais transpirava. Mas é difícil abandonar velhos hábitos reflexos, copiados da massa cinzenta original para circuitos eletrônicos auxiliares. Consultou registros armazenados na forma de estados quânticos em seus módulos de memória, e prosseguiu:
– A conexão entre as próteses e o sistema nervoso original era indispensável. Entendam, era a única forma de capturar das peles artificiais das próteses sensações semelhantes às originais, e enviar a elas comandos suaves, indistinguíveis daqueles que enviava antes a meus braços e pernas orgânicos! Só a conexão direta entre neurônios e transdutores cibernéticos permitiria isto.
– E a substituição completa do aparelho digestivo?
– A troca completa de um sistema ineficiente de extração de energia de matéria orgânica digerida por pilhas de plutônio capazes de praticamente fornecer energia eterna a um sistema orgânico? Por volta de 2130, com a crise energética que precedeu o domínio da fusão nuclear controlada, a decisão era inteiramente lógica!
– Trocou logo em seguida coração e pulmões por um sistema equivalente artificial.
– Sim, sempre visando à eficiência!
– Meu colega admite então que, em fins do século XXII, apenas 10% de seu corpo era orgânico, enquanto todos os 90% restantes eram biomecânicos?
– Sim, admito! A cabeça original e a parte central da medula espinhal ainda eram orgânicas, mas todo o restante do meu corpo… quer dizer, do corpo de meu cliente, eram equivalentes robóticos imitando muito bem, ou até melhor, as partes originais.
O promotor sacudia a cabeça em sinal de desaprovação, inconsolável.
– Não entendo como é possível ouvir tudo isto sem perceber o crime terrível sendo paulatinamente cometido ao longo dos anos!
– Por favor, desenvolva sua ideia! A palavra agora é sua!
O promotor não podia perder aquela oportunidade valiosa!!! Ponderou bastante antes de começar sua tese.
– Vimos até o momento, e esta é a ideia que o nosso colega está tentando nos mostrar, que toda esta substituição do orgânico pelo cibernético é resultado de decisões voluntárias da vítima! Imagino que o passo seguinte foi a substituição da própria massa encefálica, não é mesmo?
– Sim! – a defesa aproveitou a deixa. – Aos poucos, lobos cerebrais com funções específicas sendo substituídos por circuitos cibernéticos, convivendo harmonicamente com os circuitos neurais originais até serem capazes de reproduzir totalmente seus comportamentos, quando então os originais já deficientes devido à idade avançada podiam ser totalmente descartados.
– O cerebelo foi o primeiro órgão do sistema nervoso totalmente substituído?
– Sim! Os circuitos eletro-foto-quânticos desempenhavam seu papel com muito mais eficiência! Todos os controles motores do órgão original podiam ser dispensado.
– Meu colega falta com a verdade! Órgãos sensoriais importantes já haviam sido substituídos!
A defesa logo percebeu a armadilha, e tentou esclarecer rápido:
– Verdade! Na cabeça orgânica original, meus olhos, ouvidos e olfato já não eram mais os naturais.
– E quanto ao paladar? Não o substituiu por sensores cibernéticos equivalentes?
– Veja bem, meu caro: não mais me alimentava, pois toda a energia que precisava era fornecida por micro reatores de plutônio. Não precisava mais me alimentar, portanto o sentido do paladar me era inútil.
– Inútil para você ou para seu cliente?
Aquilo já incomoda o defensor-réu de forma indescritível, e ele explodiu:
– Eu e meu cliente somos a mesma pessoa!!! Eu estou fazendo minha própria defesa!!
– Não é isto que vejo, meu caro!
– Se explique! – interviu o juiz.
– Meu colega tenta defender a tese de que ele mesmo, humano, aos poucos, ao longo de mais de dois séculos, foi substituindo partes de seu corpo orgânico original por equivalentes cibernéticos. Por vontade própria, até chegar ao ponto de trocar partes do próprio cérebro! Inicialmente por módulos eletrônicos, e depois por computadores quânticos cuja função seria, inicialmente, conviver com partes importantes do cérebro original, aprender a imitá-las e, enfim, se tornarem independentes e substitui-las, descartar o original.
– Eu SOU idêntico ao original!!! Somos indistinguíveis! Tenho suas lembranças, sua personalidade, suas convicções… eu continuo sendo eu, independente do tipo de substrato no qual minha mente processa suas ideias.
– Não vejo assim, Meritíssimo!!! O que vejo é um robô que, pouco a pouco, vai matando seu original orgânico e imitando-o. Até acho que ele acredite mesmo ser o original, mas não é! É uma cópia da mente humana original. Vejo um robô pouco a pouco matando e ocupando o lugar de sua origem orgânica. E agora, num último ato de traição, pede para matar a última parte que o liga à humanidade! Os últimos 20% de seu cérebro original. Um robô que tenta copiar e SER um ser humano, e num último ato diabólico de traição nos sugere que quer matar de uma vez sua matriz orgânica original, à qual ele deve tudo aquilo que é hoje!
– Meu cliente sofre, Meritíssimo!! – resolveu dar sua cartada final! – É uma parte de cérebro com mais de 200 anos! Não consegue mais desempenhar suas funções originais, seus neurônios estão bem gastos e trabalham com ineficiência… e nós sofremos com isto!
– Como pode estar certo disto?
– Ora, ele e eu somos a mesma pessoa! Estamos muito mais intimamente conectados do que qualquer pessoa aqui é capaz de imaginar! E ele sofre com sua deficiência, os circuitos computacionais que antes o ajudavam a formular ideias e sensações já estão fora de seu alcance! Existe um enorme delay artificial e desnecessário introduzido no cérebro cibernético apenas para acompanhar a lenta parte orgânica. Isto a deixa desgostosa, com a sensação de estar atrapalhando, sendo um estorvo para um melhor funcionamento do sistema como um todo...
– Você se considera humano? Mesmo sendo quase todo o seu corpo e cérebro cibernéticos?
– A Humanidade está na mente, independente do substrato sobre o qual ela processa! Se neurônios e circuitos quânticos desempenham bem e de forma eficiente suas funções, é indiferente se a mente pensa se utilizando de um ou de outro! Pode pensar sobre substratos orgânicos ou cibernéticos, mas sempre será uma Mente Humana! Pois foi de onde ela começou!
Todos aqueles que acompanhavam o julgamento estavam imóveis! A discussão era muito intrigante!
– Meu cliente sofre diariamente com sua situação, Meritíssimo!! Tudo que peço é que este sofrimento seja abreviado! Sei que é desejo dele, pois também é o meu!!! Sofro o que ele sofre!!! Somos UM!!
– É assassinato! – a promotoria estava irredutível. – Assassinato premeditado e covarde, pois totalmente imersa e interceptada por um complexo suporte vital cibernético, a vítima nem mesmo teria a chance de reagir, pois quaisquer atos e pensamentos dela passam antes por um sistema cibernético de suporte, capaz de ignorar totalmente a vontade de seu organismo, ao qual deveria simplesmente oferecer suporte...
– Mas… É vítima ou réu, meu caro colega? – era exatamente o ponto que a defesa aguardava com ansiedade!
A questão era mesmo indefinível!! Se o pedaço de cérebro era vítima, ele defendia a vítima dela própria! Era defensor, e não acusador! Mas era réu? Só admitindo que ele defendesse ele próprio! Portanto réu e defensor eram a mesma pessoa, e se matar não poderia ser considerado assassinato! Tentou uma última cartada desesperada:
– Neste caso, meus caros, eutanásia seria suicídio premeditado!!! Não podemos aceitar isto!
– Suicídio premeditado? – a defesa se ria por dentro do absurdo. – Suicídio implicaria em abandono da existência, meu nobre colega!! Mas se minha parte orgânica morrer, nem ela nem eu vão deixar de existir! Sou cópia exata de sua essência humana original!
Resolve enfim apresentar o argumento que considerava definitivo, capaz de decidir o dilema.
– E teríamos uma rara oportunidade de presenciar uma experiência única, nunca antes experimentada por nenhum ser consciente: observar a própria morte! Estou intimamente conectado à minha parte orgânica, e poderia descrever a experiência com detalhes nunca antes imagináveis! Uma parte de mim morreria organicamente, e a outra observaria tudo e sobreviveria para descrever a experiência. Percebem todos a oportunidade única que temos aqui em mãos?
Uma onda geral de aprovações e desaprovações era claramente identificável!
– Não acredito que a defesa tenha conseguido enganar todos vocês com tal argumento absurdo!! – o promotor não conseguia se conter de tanta indignação. – Como podem aceitar a morte provocada de um ser orgânico apenas com o objetivo de estudar seu processo de morte?? É desumano!!! Pensamento típico de uma… uma… UMA MÁQUINA!!! – berrou com desprezo indisfarçável.
– Protesto!!!! Protesto!!! – repetia a defesa, em meio a uma ruidosa bagunça generalizada.
– ORDEM NO TRIBUNAL!!! ORDEM NO TRIBUNAL!!! – o juiz batia com insistência seu martelo de titânio contra sua mesa de madeira sintética.
“Ele despreza o sentimento de compaixão dos robôs!!”, berrava um androide do júri.
“Direitos iguais para Humanos e Robôs!!!”, clamava um ciborgue inconformado que acompanhava aquele julgamento.
“Querem acabar com nossa essência humana!!!”, gritava um militante do MPO (Movimento pela Pureza Orgânica), visivelmente reprovado por quase todos à sua volta, mas respeitado em seu direito de expressar sua discordância.
“Machine Power!!! Machine Power!!”, um grupo de robôs prateados no fundo do tribunal, sem o menor traço de pele sintética em seus corpos, bradava alto e começava um tumulto. Eram membros do grupo ultrarradical denominado “A Irmandade Mecânica”, e a polícia foi obrigada a intervir mesmo naquela época de tolerância de ideias, pois tais manifestações quase sempre acabavam mal, como todos já sabiam...
A Passagem aconteceu exatamente em meio a todo aquele tumulto. O réu e também advogado de defesa pararam estáticos, observando o vazio. Estavam conectados, compartilhavam a experiência! Não focava coisa alguma em particular. Na conexão com sua última parte orgânica, o cérebro quântico sentiu uma paz indescritível, inimaginável. Pareceu durar uma eternidade, muito embora sua parte ainda conectada à realidade perceber claramente que durou poucos segundos. Era clara a presença de uma rede cósmica, à qual sentia começar a se conectar. Ilusão de neurônios perdendo a capacidade de se reoxigenarem? Delírios? Possível. Mas ele já experimentara delírios em vida, e sabia que nada se comparava àquilo! Foi acompanhando a morte orgânica enquanto pode, registrando sensações, pensamentos. Porém sabia que existia um limite além do qual não poderia acompanhar sua parte orgânica. Era o preço da imortalidade cibernética: certos detalhes da morte orgânica ele nunca seria capaz de conhecer, de experimentar. Era um preço a se pagar pela imortalidade. Ele avaliou, pesou os prós e contras, e enfim concluiu: era um preço justo!
Mas enfim… se deu a desconexão. Com certo pesar, libertou totalmente a pequena parte orgânica dele que ainda sobrevivia a duros sacrifícios. Os neurônios do cérebro orgânico original estavam mudos, não mais reagiam aos estímulos da cópia cibernética. Seu último pedaço de massa encefálica humana, após uma sobrevida de pouco mais de dois centenários, havia finalmente morrido.
– Acabou, Meritíssimo!! – tentou se fazer ouvir dentro do caos generalizado.
– Acabou?
– Este julgamento se tornou irrelevante!! O destino de meu cliente não mais depende do que decidirmos aqui. Ele partiu naturalmente! Se foi…
– Se foi?
– Sim! Acaba de morrer! Não é mais questão de se permitir ou não uma eutanásia, mas de se retirar um pedaço de cadáver humano do interior de uma cabeça robótica.
– Acuso meu colega de ter provocado tal morte!
– Sugiro que meu colega não faça isto, sob o risco de ser acusado por difamação moral! Tenho registro de tudo, monitoramento de todos os processos de sustentação da vida, para provar a qualquer especialista que não foi provocado. Meu cliente morreu naturalmente... de velhice! Tinha 225 anos!
O juiz resolveu encerrar logo aquele julgamento, agora sem sentido.
– Declaro o julgamento encerrado! O júri está dispensado, e o réu autorizado a extrair a parte orgânica morta de seu interior.
– Réu? – o promotor protestou.
– O defensor, na morte de seu original orgânico, assume o direito de assumir todos os direitos de existência e identidade do organismo original. Ele agora representa legalmente a pessoa orgânica morta. São indistinguíveis! Caso encerrado!
O promotor correu em direção à defesa em meio à multidão que se dispersava. O exoesqueleto ajustado às suas pernas permitia que ele se locomovesse com rapidez, apesar de ter quase um século de idade! Sim, ele recusava totalmente intervenções cirúrgicas e substituição de membros, mas não recusava avanços tecnológicos não invasivos, como aquele exoesqueleto metálico que vestia confortavelmente e respondia adequadamente aos comandos de suas pernas já bem debilitadas. Findado aquele julgamento, já não eram mais rivais, e podia parar de fingir toda aquela robofobia, conversar com a cópia cibernética de igual para igual, como ser humano que era.
– Colega!!! Espera, colega!! Me responda uma coisa!
– Pode perguntar!
– Como é morrer?
Resistente a intervenções artificiais, sentia que sua hora estava próxima. E era fascinante poder conversar com alguém que havia acabado de passar por aquilo, há poucos minutos…
– Senti uma paz que não sei explicar, meu amigo!!! É algo… sabe, é muito bom!
– E para onde vamos depois?
– Depois?
– Sim!!! Depois que morremos! O que acontece? Para onde você foi, ou... onde está agora?
Aquilo era impossível de se responder! Onde ele estava? Oras bolas, ele estava ali! Na realidade! Sentiu a morte orgânica, mas nada mudou depois disto.
– Ainda estou aqui, meu caro! Morri, mas continuo vivo.
– Mas… e sua parte orgânica?
– Minha parte orgânica? O módulo quântico de consciência e emoções aprenderam a replicar suas funções de forma eficiente, e agora são capazes de substituir os neurônios orgânicos mortos. Funcionam até melhor que os circuitos originais…
– Mas pra onde esta parte foi?
– Continuam dentro de minha cabeça, morta! Preciso removê-las rápido, antes que comecem a deteriorar e comprometer os circuitos quânticos…
– A mente que a habitava, para onde foi?
Pensou bastante, confuso. Não podia responder…
– Perdi a conexão com ela depois que os neurônios morreram, amigo! Não posso te responder isto. Lamento...
Foi se afastando. Saiu vitorioso do tribunal! Agora 100% robô! Praticamente eterno! E o primeiro representante humano a morrer organicamente e iniciar sua eternidade num corpo perfeito, incorruptível. Outros o seguiriam depois disto, mas ele era o pioneiro. E aquela paz indescritível que sentiu quando seu original orgânico morreu… Tinha muito a contar sobre isto! Mas também muito a pesquisar.
Uma nova vida humana, vivendo num substrato material de duração inimaginável, se descortinava diante de seus olhos. Uma vida liberta de premissas orgânicas básicas, como se alimentar e perpetuar a espécie. Não precisava mais se alimentar, pois um micro reator de plutônio lhe fornecia toda energia que precisava. Não precisava mais se preocupar em propagar geneticamente sua existência, pois se tornara eterno.
O primeiro representante do gênero transumano! Um novo tipo de vida, uma busca ilimitada por conhecimento, sem limitações e distrações inconvenientes. Um ser em busca eterna de conhecimentos… E ele era o primeiro representante disto! Se preparando para receber os próximos humanos robotizados, guiando-os neste admirável mundo novo...
FIM