Ano 3026

Victor K, duzentos e seis anos vividos eficientemente, até dormindo a criatura produzia. Enchia-se, sempre, de trejeitos e ruborizava com uma falsa modéstia quando os indivíduos ao seu redor comentavam, perplexos, os seus feitos acima da média. BEM acima.

Uma moça, ao lado direito do ilustríssimo, ao ouvir o honroso feito, que ele já teve o prazer de contar tantas vezes, levou a mão à boca petrificada. “É possível fazer isso mesmo ainda no período de gestação?” Questionava a mulher. Hipnotizada.

Com uma nota de grande orgulho na voz, o homem respondeu com um “Sim” e prosseguiu: “A partir do final do primeiro trimestre eu já auxiliava minha querida mãe a atender ao telefone”.

“E ainda no útero!?” disse um senhor que estava atento a conversa. Como se repetir aquilo ajudasse a deglutir tão notáveis feitos.

“Exatamente”

Mais alguém, no fundo da sala, ainda bradou em tom audível e tristonho “Eu comecei como todo mundo, no dia do nascimento, uma hora depois”.

Ao passo que outros, em uma sucessão de comentários, responderam. “Eu também” “Eu também” sempre num tom apagado e de autocensura.

Victor K era mesmo a frente de seu tempo. Mesmo que o “tempo” de que lhes falo seja o magistral ano 3026.

Pode parecer pavoroso, até ficção, para uma pobre alma dos tempos antigos, mas na época que vos digo, 3026, a eficiência e a eficácia são o grande lema da nação. “A Eficiência e eficácia nos levam rumo ao progresso e afastam o mal espírito do desperdício e da preguiça”. A frase está impressa, incrustada, moldada e até rabiscada em todo canto que os olhos possam repousar neste mundo de maravilhas.

As antigas maternidades do século velho já não existem mais, oh gloria. A medicina avançou absurdamente em aparatos e princípios ativos. As doenças degenerativas, mutações maléficas e microrganismos, já não são mais a causa de óbitos. Com o avanço, para ser mais específico, da terapia genética, agora é possível viver em média mil anos. Um milênio de vida de pura produtividade. A morte só se avizinha, normalmente, por efeito do consumo, dentro de cada indivíduo, de algo chamado: Ciclo de ação natural. Mas isso é assunto para outra ocasião.

O mais jovem desafortunado de que tenho notícia morreu aos seiscentos anos. Em cima da esteira de produção trabalhando, pelo que soube. Morreu com honra. seiscentos anos de labuta sem perecer um só momento. Pena que viveu pouco sabe? Mas enfim, voltando à questão das maternidades.

Uma nova vida, que floresce e ganha a luz, não seria boa se, ao nascer, atrapalhasse a produtividade da boa alma que lhe concebe correto? Pois bem, não mais. Agora, as mães dão à luz enquanto labutam. E devido ao avanço da ciência, sem dor, incomodo ou qualquer outro constrangimento. Afinal, quem tem tempo a perder para bisbilhotar ou empregar em qualquer coisa que não seja em suas abençoadas atribuições?

E o mais importante e emocionante: o bebê já nasce fichado e produzindo, com crachá e tudo o mais, podendo até trabalhar no mesmo departamento que a mãe. Que maravilha!

Normalmente, os bebês começam suas carreiras com ofícios de digitação simples. Mas soube, numa época que não era a minha, de um talento que possuía tanta força mecânica, provavelmente de alguma boa mutação no ciclo de ação natural, que no dia em que nasceu já ocupou o cargo de responsável adjunto de materiais pesados. Assombroso.

Mas voltemos ao nosso prodígio único, inigualável, até presente momento, Victor K:

Victor k, agora no púlpito, fez um gesto gracioso com as mãos para que todos silenciassem e se acomodassem em seus respectivos lugares. Era o responsável geral de admissões de talentos da firma. Recolheu os chips de carreira dos candidatos e iria, também, realizar uma pequena dinâmica (Algumas coisas nunca morrem afinal?) com os concorrentes à vaga em questão.

Victor fitava graciosamente a todos com um sorriso no rosto. A mão, flexionada no impulso de apontar alguém para que fosse o primeiro a falar. O homem era admirável, como bem puderam comprovar, mas havia um “q” também de zombeteiro em seu espírito. Gostava de entrevistar, primeiramente, àqueles que, por ocasião, demonstrassem mais angústia e nervosismo. Enfim, achou sua vítima.

A moça estava no terceiro assento, da esquerda para direita, da primeira fila. De blazer cinza, saia bastante adequada e sapatos combinando. A testa porejada e o corpo tremendo todo ele.

Victor a enquadrou com o dedo e disse “Você! Comesse por favor” depois o homem sentou-se em sua cadeira, com as mãos sob o colo pôs-se a esperar, diligentemente:

Todos fitaram a moça:

Victor sustinha na mão o chip da candidata, mas não escaneou as informações dele, gostaria de ouvi-las da própria. Era mais eficiente e edificante.

Ele baixou a cabeça momentaneamente - e disse “Hum, senhorita Joane, correto?”

Joane estava mesmo nervosa. Pobrezinha.

Ela empertigou-se na confortável cadeira da sala de admissões e, finalmente, redarguiu: “Certo, eu mesma”.

Victor sorriu na direção dela e baixando novamente a cabeça, enquanto revolvia os chips, prosseguiu: “Quantos anos possuí a senhorita?”

“90 anos s.r. Victor!” proferiu Joane. A moça ainda pôde captar alguém atrás dela gracejar: “Que jovem!”

“Muito bem Sra. Joane, me confirme por gentileza sua contagem de registro de atividades?” indagou o brilhante homem.

Nesse momento Joane mudou de cor. A mulher ficou lívida à olhos vistos. Alguns dos candidatos, que conversavam baixinho, discretamente cessaram seus assuntos. Joane sentiu, em seu cerne, que todos, afinal, voltavam as atenções para ela. Clamando por ouvi-la.

Ela não ousou olhar para trás ou para os lados, mas sabia que várias orbitas curiosas lançavam lhe uma energia palpável.

A moça tossiu, engoliu em seco, raspou a garganta e finalmente retorquiu numa voz, agora, mais aguda e quase inaudível: “89 anos de registro senhor” e baixou a cabeça, envergonhada.

Foi possível ouvir, nesse instante, vários suspiros e sobressaltos. As pessoas não puderam conter-se. Chiaram de espanto e ouso dizer que alguns até de horror. Joane pôde escutar, entre seus concorrentes, cochichos do tipo: “Isso é realmente possível?” e um tipo mais ousado blasfemou: “Querida, ela não deveria nem estar aqui” entre outras coisas dolorosas.

Victor K saltou involuntariamente de sua cadeira estofada, como se caranguejos lhe fisgassem o traseiro. Sem querer deixou cair alguns objetos que estavam em cima da mesa tamanho foi seu espanto. Tratou de recompor-se.

Incrédulo, fulminou a candidata com um olhar de fera: “Perdão, não devo ter captado corretamente, a senhorita falou 89 anos de registro?”.

Joane continuou muda. Apenas assentiu com a cabeça.

Victor, com os olhos fincados na moça, precipitou-se ao seu lado. Os outros candidatos, agora em silencio, formavam uma plateia indignada. Encarando-os.

Ele afirmou “Mas a senhorita não tem 90 anos? O olhar do homem era quase magoado - "Estas a me dizer que ficou um ano em ociosidade?" Censura e acusação impregnados em suas palavras.

Ela levantou os olhos, que ameaçavam anuviar-se, na direção do homem e tentou explicar-lhe: “Sou um caso raro. Uma exceção. Nasci com uma deficiência nutricional que me impossibilitou de trabalhar logo em meu ano de nascimento, era por demais fraquinha”

Nesse instante todos ofegaram, encolerizados. Uns levaram a mão a boca. Estavam descorados e enojados. Alguns chegaram, de fato, a fazer comentários ofensivos, em alto e bom tom, sem se oprimir pelo fato de que o objeto de suas indiscrições estivesse ali. Ouvindo tudo.

Olhares escarnecedores a ladeavam. O clima inicial, caloroso e fraternal, havia escorrido ralo a baixo.

Victor a fitava, repugnado, com um olhar implacável. Suas expressões diziam que ele não estava crendo ser possível tal situação. Ficou por um tempo, bastante constrangedor, ainda calado.

Para depois vociferar, exasperado: “Querida....., hum...., Joane, creio que a Sra. veio ao parque de edifícios errado. Este é o prédio central” e o mais secamente possível continuou “O prédio para pessoas como a senhorita, e devo reforçar; raríssimos tristes casos, fica na área periférica da cidade, à margem do lago Class".

E logo depois, como se não houvesse obrigação de mais nada esclarecer, calou-se novamente e cruzou os braços. Esperando.

Alarido:

"É isso mesmo!"

"Exatamente!"

"Pobre alma!"

Joane se levantou de súbito. Chorava, agora, copiosamente. Mas esse fato não pareceu emocionar ninguém ali naquele recinto. E saiu, derrotada, com todos os olhos cruéis e frios em seu encalço acompanhando o trajeto de sua vergonha.

Leonardo Castro
Enviado por Leonardo Castro em 18/05/2021
Reeditado em 23/02/2022
Código do texto: T7258599
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