Humano a bordo
As histórias contadas na Academia Imperial sobre os humanos eram tão conflitantes e perturbadoras, que quando fomos informados de que um membro daquela espécie seria incorporado à tripulação, uma onda de apreensão nos atingiu. Pelos corredores, circulavam os boatos mais disparatados, particularmente sobre a letalidade dos humanos.
- Ouvi dizer que quase destruíram o próprio planeta numa guerra nuclear - comentou meu amigo To'agh, certo dia no refeitório da nave, enquanto ingeríamos nossa tigela matinal fervilhante de larvas de kl'ava. - E nem mesmo a descoberta do motor de dobra, que os espalhou pela Galáxia, parece ter diminuído esse impulso assassino.
- Seria bom se só fosse dirigido aos membros da espécie deles - ponderei.
- Não é, e você sabe disso - redarguiu To'agh, as antenas erguidas em sinal de ansiedade. - Aliás, foi justamente por isso que o Alto Comando decidiu recrutar esse humano: são bons demais em táticas de combate para abrirmos mãos do seu talento natural.
Uma colega, a alferes Ym'lan, sentou-se ao nosso lado com a sua tigela de kl'ava e uma caneca de mo'ovh fumegante.
- Podem relaxar, rapazes - informou ela, despejando o mo'ovh na tigela e matando as larvas instantaneamente. - Meu contato na Administração garantiu que o humano que vão nos mandar é uma fêmea; e as fêmeas humanas são bem menos agressivas do que os machos.
- Isso é controverso - retrucou To'agh, que se considerava um expert em humanos, embora jamais houvesse visto um pessoalmente. - As fêmeas humanas também participavam de guerras, inclusive no comando de naves de combate.
- Comandar uma nave é bastante impessoal - argumentou Ym'lan, enquanto ingeria colheradas de papa de larvas. - As humanas provavelmente não matam seus inimigos com as mãos nuas, como dizem que os machos fazem.
- Eu não gostaria de dividir um dormitório com uma delas - replicou To'agh, mastigando ruidosamente suas larvas. - Mas você provavelmente terá essa honra... duvidosa.
- Eu aposto que vocês estão enganados sobre a humana - afirmou altivamente Ym'lan, tomando um gole de mo'ovh.
Uma das larvas fugiu da tigela de To'agh e ele a esmagou com o punho, antes de comê-la. Ym'lan fez uma expressão de desgosto, as antenas na horizontal:
- Modos, alferes!
* * *
Ksenija Radum - era esse o nome da humana - surpreendeu a todos. Primeiro, porque era mais baixa do que qualquer um de nós, e segundo porque possuía uma silhueta arredondada; dificilmente alguém seria capaz de imaginá-la lutando artes marciais ou o que quer que fosse os humanos faziam quando queriam matar seus congêneres. O uniforme imperial cinzento lhe caíra bem, e fazia um vivo contraste com a pelagem cor-de-rosa que lhe cobria a cabeça.
- Não se iludam com sua aparência inofensiva, agradável até - alertou-nos nosso comandante, o capitão Ru'man, antes da humana ser trazida a bordo. - Ksenija Radum já provou ser uma criatura fria e sem piedade quando seus colegas de tripulação estão em perigo.
Todos, é claro, quiseram imediatamente tornar-se amigos da humana. Ela parecia sentir-se bem em nossa presença, embora confessasse que preferia tomar o desjejum sozinha em sua própria cabine.
- Não quero ofendê-los com hábitos alimentares humanos que podem parecer desagradáveis aos seus olhos multifacetados - comentou, parecendo acanhada.
Segundo To'agh, nosso expert em humanos, um desses hábitos envolvia comer vivo um pequeno roedor da Terra, denominado "hamster". Eu e Ym'lan erguemos nossas antenas num ângulo de 45º em sinal de asco, mas To'agh nos recordou que comíamos larvas de kl'ava vivas. Portanto...
- É apenas uma outra cultura - ponderou. - Temos que aprender a conviver com as diferenças...
- Desde que eu não tenha que tomar o desjejum com ela... - redarguiu Ym'lan.
* * *
Um ciclo completo havia se passado, e a humana já era considerada parte da tripulação, mesmo com toda a sua estranheza e feiura. Todavia, alguns dos nossos começaram a ficar preocupados com a saúde de Ksenija Radum.
- Vocês lembram quando ela veio a bordo? Os pelos da cabeça eram de um tom bem vivo... agora, estão descorados - disse Ym'lan, que reparava nesse tipo de detalhes.
- Acha que ela pode estar ficando doente? - Indaguei.
- Eu não sei... não entendo nada de fisiologia humana - ponderou Ym'lan. - Talvez seja uma deficiência alimentar?
- Será que ela não está comendo hamsters bastantes no desjejum? - Sugeriu To'agh.
Nos entreolhamos; seria indelicado perguntar isso diretamente à interessada, portanto, fomos ao capitão Ru'man, que nos ouviu com atenção.
- Desculpem, mas a humana não solicitou estes tais hamsters como parte da dieta - informou-nos o capitão. - Disse que rações humanas básicas seriam suficientes para ela.
- Talvez ela não quisesse nos perturbar com uma requisição que poderia ser encarada como exagerada, numa nave de combate - disse Ym'lan.
- De fato, talvez ela esteja apenas sendo tímida - ponderou o capitão em atitude reflexiva, segurando as antenas à altura do cefalotórax. - Vou pedir ao médico de bordo que fale com ela e descubra o que está havendo.
* * *
Ksenija Radum ficou surpresa ao ser convidada a ir ao ambulatório da nave, falar com o doutor Ho'jin.
- Como se sente, humana Ksenija Radum? - Indagou sem rodeios o médico. - Está consumindo suas doses diárias de nutrientes recomendados?
- Estou bem, doutor - replicou a humana, aparentando surpresa. - E sim, tenho consumido minhas rações nas quantidades prescritas... talvez, exagerando um pouco no chocolate...
E inclinando-se em direção ao médico:
- Algum problema com os estoques da nave? Sei que estamos em patrulha e que vai ser difícil reabastecer nos próximos seis meses... principalmente chocolate.
- Não, não, os estoques da nave estão em perfeita ordem - assegurou Ho'jin. - Mas chegou aos meus ouvidos que talvez tenhamos omitido um item essencial da sua alimentação... achei melhor chamá-la aqui para confirmar a veracidade do fato.
E narrou a história que correlacionava o suposto consumo de hamsters com a descoloração da pelagem que cobria a cabeça dela. Ksenija Radum ouviu a explicação até o fim, e depois cobriu a boca com as duas mãos, seus olhos estreitando-se e seu rosto ficando vermelho. Depois, baixou a cabeça e começou a tremer convulsivamente, emitindo ruídos roucos.
- Está passando bem, tenente? - Indagou o médico, preocupado.
Finalmente, Ksenija Radum aprumou o corpo, retirou as mãos da boca e aspirou o ar profundamente, lágrimas lhe correndo dos olhos.
- Desculpe, doutor - murmurou ela, enxugando o rosto com as costas da mão. - Hamsters vivos, o senhor disse? Não, não é nada disso...
Correu a mão pela pelagem capilar.
- Minha tintura de cabelo acabou... e não sei onde vou encontrar nessa região do espaço. Talvez, se houver algum mundo colonizado por humanos na nossa rota...
- Vocês pintam o próprio pelo? - Indagou incrédulo o médico.
- Nós humanos, somos... diferentes - admitiu Ksenija Radum com um sorriso.
E prometeu solenemente que iria pintar da mesma tonalidade, para não confundir ainda mais os demais tripulantes.
- [14-05-2021]