O Fim do Império

I

Um pensamento veloz atravessou a mente de Lídia, imediatamente desaparecendo. Sou um boa cidadã, ela pensou, família, pátria e ordem... Meu líder é Guntvar. Esses últimos pensamentos, ela fazia questão de repetir mentalmente, do contrário poderia haver consequências ruins.

Ernidas Guntvar era um homem com ideais megalomaníacos e sanguinários, ele acreditava que a guerra o levaria a ser lembrado como o grande salvador da humanidade. Tendo iniciado sua carreira militar como um engenheiro de ciborgues altamente promissor, rapidamente transformou seus conhecimentos em uma poderosíssima e lucrativa indústria de armas, ganhando o prestígio dos políticos e militares. Quando ocorreu a primeira guerra intergaláctica, Guntvar se destacou como um general habilidoso. A União Europeia o condecorou com a mais alta homenagem, a de Marechal do Espaço, embora, ao fim da guerra, com a Terra saindo vitoriosa, ficou evidente a extrema crueldade de Guntvar para com os perdedores. Ele escravizou planetas inteiros após exterminar boa parte da população. De volta à Terra, ele aproveitou sua popularidade, principalmente entre os mais ricos, para galgar o poder supremo na Europa, logo estendendo sua influência por todo o globo.

Agora voltemos à Lídia, ela era uma jovem de vinte e dois anos, nascida na União Sul-americana, tinha apenas três anos quando da guerra intergaláctica e sete quando Guntvar assumiu o controle do globo. Seus pais foram forçados a implantar em seu cérebro um micro dispositivo desenvolvido pelos cientistas de Guntvar. A função desse objeto de menos de um milímetro era ler os pensamentos e detectar qualquer desvio que pudesse prejudicar a "paz e a ordem" estabelecidas pelo ditador. Cada pessoa era obrigada a implantá-lo sob pena de prisão; os que se recusavam eram detidos, lançados em horríveis prisões e, amiúde, mortos. Tudo era fiscalizado pelos soldados ciborgues de Guntvar, líder a quem Lídia, em pensamento, reverenciava todos os dias, embora indo totalmente contra ao seu coração.

Lídia parou em frente ao semáforo, os carros flutuavam velozes cerca de cinquenta centímetros acima do solo. Quando os faróis se fecharam, ela atravessou a avenida apressada. Em questão de minutos, alcançou seu destino, um local secreto e subterrâneo conhecido como O Ponto. Ela desceu num elevador por uns trinta metros... A porta se abriu, dois rostos conhecidos sorriram com a sua chegada:

— Lídia, nós estávamos lhe esperando, que bom que voltou!! — disse um homem grisalho com longos cabelos e barba.

— Olá, Apolônio, estou aliviada... finalmente posso ser eu mesma!! — respondeu Lídia.

— Ninguém te seguiu? — indagou a outra pessoa da sala, uma mulher negra e de meia-idade.

— Não Valéria, eu me precavi.

Valéria sorriu.

— Muitos de nós já foram presos, minha jovem, mas a batalha está chegando ao fim. Logo, a democracia retornará com a paz tão desejada. — disse Apolônio.

— Aquela pela qual meus pais tanto lutaram? — perquiriu Lídia.

— Sim, seus pais lutaram pela paz universal e justiça entre todos os povos e pagaram com a vida por causa disso.

A jovem lembrou da injustiça que atingia a muitas famílias, inclusive a dela, e deixou cair uma lágrima.

— No entanto, — prosseguiu Apolônio — eles estariam orgulhosos por você lutar também por esse ideal.

Apolônio e Valéria já eram um casal de cientistas proeminentes antes da ditadura de Guntvar. Eram dois dos muitos que ousaram resistir as imposições arbitrárias do tirano e, se haviam sobrevivido até então no submundo da sociedade, era graças a persistência resoluta do casal e de sua extrema inteligência. Eram amigos dos pais de Lídia, e cuidaram dela desde os seus dezesseis anos, quando os pais foram raptados e mortos.

— Queremos lhe apresentar um visitante muito especial, querida — disse Valéria — Apareça Mundrixintak!

Nesse momento, uma figura esbelta, porém não humana, apareceu na sala. Era de uma outra humanidade, pode-se dizer. Mundrixintak era o seu nome. Ele não tinha a frescura juvenil de Lídia nem a beleza das duas mulheres negras da sala, também não tinha a barba distinta de Apolônio. Não se parecia com um humano. Sua pele era esverdeada, não tinha pelos na parte visível do corpo, coberto por um manto prateado, seus braços e pernas eram curtos e sua cabeça, grande e alongada. Seu olhar revelava uma consciência racional.

— Olá, Lídia, prazer em conhecê-la, falaram-me muito sobre você! — disse a estranha criatura.

— O prazer é meu — respondeu Lídia, curiosa para saber o motivo da visita de Mundrixintak.

— Sou do planeta Epzilan, — continuou o extraterráqueo. — que perdeu a batalha para as forças malignas de Guntvar. Os sobreviventes foram escravizados, assim como em outras partes do Universo. Mas essa tirania cósmica está prestes a acabar!

Apolônio, Valéria e Lídia olharam perplexos para Mundrixintak, que continuou:

— Quando Guntvar se apossou dos mecanismos de vigiar os pensamentos das massas, para punir qualquer "desvio da verdade", não se deu conta de que seus próprios pensamentos eram vigiados. A União Fraternal dos Povos do Imenso Cosmos nasceu dos esforços conjuntos dos mais diversos seres racionais do Universo para combater a injustiça e a discriminação, que legitimam a conquista e a violência contra os povos mais fracos. Essa organização também agia, esperando o momento certo, para pôr fim a desfaçatez de Guntvar. Ora é o momento, Lídia iniciará a revolução!!

II

Quando partiu para O Ponto, Lídia jamais esperava ouvir essa revelação. Antes de Guntvar, havia viagens interestelares, que agora eram proibidas. Ela nunca tinha conhecido um extraterrestre, mas seus pais biológicos, os quais eram cientistas proeminentes como Apolônio e Valéria, sim. Tendo travado conhecimento com inteligências intergalácticas, eles, de certa forma, já sabiam dos perigos da ambição e crueldade humanas, personificadas em Guntvar.

— O mecanismo implantado em seu cérebro, — disse Mundrixintak — cuidadosamente disfarçado pelos seus pais, foi dado a eles pelo conselho da União Fraternal dos Povos do Imenso Cosmos. Esse pontículo é uma janela para todo o Universo. Durante toda a sua vida, era como se ele fosse um mecanismo comum para os ciborgues que monitoravam a frequência dos seus pensamentos. No entanto, trata-se de uma tecnologia muita a frente daquela dominada pelo império de Guntvar. Esse micro dispositivo é capaz de reverter todo o sistema informacional da Terra, manipulado pelo ditador, fazendo com que as pessoas voltem a pensar livremente e que os ciborgues se voltem contra Guntvar. Isso, porém, precisava de um certo tempo, e, após quinze anos, finalmente chegou o momento.

Mundrixintak parou de falar, Apolônio e Valéria, que já estavam cientes de tudo isso, buscaram encorajar Lídia. A jovem sentia que chegara no instante mais importante de sua vida.

— Sinto-me honrada — disse Lídia. — por ter sido incumbida dessa missão, estou disposta a dar minha vida para pôr fim a essa tirania.

— Tenho fé de que não será necessário perdê-la, querida, — falou Valéria. — eu daria a minha vida para poupar a sua, mas o mais importante é que você poderá salvar bilhões de pessoas.

Todos estavam esperançosos. Lídia foi orientada a se concentrar. O mecanismo agiria, sob o comando dela, como que quebrando as correntes mentais de bilhões de seres racionais; por fim, o grande exército de ciborgues de Guntvar se voltaria contra o ditador.

— Muito bem, Lídia, — disse Apolônio. — logo as forças do império perceberão que há algo de errado com o sistema. Mas não tenha medo. Liberte todos os trabalhadores escravizados pelo Cosmos. Quando os ciborgues passarem a lhe obedecer, não restará mais nada a Guntvar. Seus generais não terão exército para comandar.

Lídia começou a sentir que estava sendo levada para um outro lugar, ouvia inúmeras vozes em sua cabeça, dizendo frases como: "Guntvar é o nosso salvador" ou "família e ordem, morte aos traidores!". Então, ela começou a rebatê-las pensando:

— Irmãos, Guntvar nos escravizou. Seu poder é exercido pela violência. Ansiamos pela justiça e liberdade. Quebremos as correntes!!

Então, outras vozes começaram:

— Quem é essa traidora, como ousa? Morte aos traidores!

Ao passo que outras:

— Tem razão, irmã. Basta de tirania!! Abaixo Guntvar!!

Lídia sentia-se como que entrando numa outra dimensão. Gigantescos exércitos desfilavam a sua frente. Via seus pais sendo levados para a frente de um pelotão de fuzilamento. Homens, mulheres e crianças, magros e esfomeados, sendo abandonados a própria sorte. No espaço, poderossímas bombas sendo lançadas em planetas rebeldes.

— Isso chegou ao fim, — pensou Lídia. — nós queremos paz, cada um de nós têm direito de ser feliz, livre dessa opressão cruel!

— O que está fazendo, garota? — bradou uma voz metálica.

Lídia se viu frente a frente com um homem alto e de uniforme militar. Ele usava cavanhaque e tinha um olhar arguto e sinistro. Era Guntvar.

— Ernidas Guntvar, seu tempo de maldade chegou ao fim! — exclamou Lídia.

— Até que você é corajosa para uma garota, mas não sairá viva dessa. Se o meu império for destruído levarei todos comigo para o inferno. — redarguiu o tirano.

Vários ciborgues apareceram, eram uma mistura de aparência humana com robótica, portavam armas e, geralmente, eram extremamente violentos, sob as ordens de Guntvar.

— Prendam ela!!! — ordenou Guntvar.

Os ciborgues não obedeceram.

— Não adianta, você e os seus asseclas é que serão presos — afirmou Lídia. — A Terra e os planetas escravizados serão libertos.

Os soldados ciborgues por todo o Cosmos passaram a libertar os prisioneiros. Guntvar pareceu desesperado.

Então, subitamente, uma espécie de raio atingiu Lídia e ela sentiu que havia retornado para O Ponto.

— Você conseguiu, Lídia — disse Mundrixintak. — A revolução começou!

Apolônio e Valéria não continham as lágrimas.

Nos meios de comunicação já se começavam a veicular notícias sobre a queda de Guntvar, algo inconcebível até então.

— Lídia, querida, muito obrigado... Nós lutamos muito por esse momento, mas sem você não teria sido possível. — falou Apolônio, chorando de felicidade.

— Eu me sinto muito feliz — disse Lídia.

Nesse momento, a jovem começou a sentir que desfalecia.

A felicidade que já começava a pairar nos quatro cantos do globo e além se converteu em tristeza naquela sala. Lídia estava morta.

— Desculpem-me, eu não contava com isso — disse Mundrixintak . — É muito triste.

— O maldito usou a sua cartada final antes de ser derrotado... e levou o nosso anjo... — balbuciou Valéria.

— Não conhecíamos essa arma — disse Apolônio, referindo-se ao raio que atingiu Lídia.

O império maligno, no entanto, havia terminado. Guntvar e seus generais foram lançados na prisão, na qual haviam condenado inumeráveis seres inocentes. Pessoas de todo o mundo comemoravam, ao mesmo tempo em que lamentavam as centenas de milhões de vítimas por todo o Universo.

Apolônio e Valéria viveram ainda por muitos anos e mantiveram viva a memória de Lídia. Mundrixintak voltou para o seu planeta natal.

Um novo sistema de governo passou a existir, uma verdadeira democracia, onde os trabalhadores não precisavam mais ser escravizados ou se vender para enriquecer uma minoria. O direito à vida plena era garantido a todos, e as pessoas eram felizes sem necessitarem do supérfluo.

Além da Terra, a paz e a fraternidade entre todos os povos passou a reinar de forma nunca dantes vista. A União Fraternal dos Povos do Imenso Cosmos conseguiu aproximar os seres racionais dos pontos mais distantes do Universo.

Muitas eras depois... Quando a nebulosa Quinlus, localizada na galáxia de Juliakz, deu origem a uma nova estrela, os seres do planeta Epzilan a batizaram de Lídia.