CORPOS CELESTES

Por Rogério S. Malta

A nave para quando chega ao destino. Seu ocupante de olhar multifacetado, boca fina, e sem uma orelha aparente, desperta do sono iniciado a parsecs de distância em busca do lendário “pontinho azul habitável”, que tanta esperança despertou em seus irmãos de enxame.

Ele tenta se levantar, mas não obtém sucesso. Os controles se acenderam depois de dezenas de mélions (medida parecida com os anos de nosso tempo terrestre) de viagem. Os disruptores neurais entraram em ação, injetando vilizulim que lhe permitiu despertar em total forma física depois de éons de inatividade muscular e orgânica. Essa substância se origina dos Drigons, uma espécie de planta simbionte de seu mundo de origem, cujas propriedades foram melhoradas pela tecnologia semi-orgânica dos morfélions.

Seu primeiro pensamento racional materializou-se na mente, trazendo a recordação da missão como o primeiro batedor interestelar de seu povo a se aventurar em busca do esperado mundo habitável, situado no segundo braço exterior da Via Láctea. Mais um dos mundos supostamente habitáveis para sua espécie, trazendo a tão esperada salvação!

Ainda um pouco grogue e com a tontura causada pelo trauma da viagem longínqua, ele tenta se levantar pela segunda vez, conseguindo, com um pouco de dificuldade, se pôr sentado no casulo de alimentação que durante tanto tampo o nutriu e protegeu.

Seus olhos multifacetados lhe permitiram ter um panorama geral de toda a belonave ao seu redor. Consoles, ok! Controle de habitabilidade, ok! Luz solar artificial, ok! Lembrou que esse último item, fundamental para o seu organismo biológico, o manteve nutrido em grande parte por algo muito próximo à fotossíntese, que sua espécie muito necessita em seu mundo, cujo sol mostrou sinais de colapso após mais de 08 bilhões de mélions - medida de tempo de sua cultura que corresponde a mais ou menos 06 bilhões de anos terrestres.

Mas mesmo assim, sentiu fome. Um leve sorriso o fez lembrar que esse era um sinal evidente de saúde bem preservada. Levantando-se ainda com um pouco de dificuldade e de forma titubeante, saiu apalpando pelo casulo de alimentação e à câmara fria adjacente, avançando em direção à sala de controle, cujo aspecto em nada se assemelhava a algo desse porte, se fôssemos nós, seres humanos, a contemplar tal tecnologia; um misto de nanotecnologia inorgânica e orgânica, com “animais semi-mecânicos” e cheios de bactérias e vírus semi - orgânicos zunindo em cintilância e repleto de diversos ruídos estranhos. O bacteriont, uma espécie de controle em forma de alavanca feita de luz sólida, luziu à sua aproximação ao captar a assinatura dos pensamentos de seu dono.

Há muito tempo os morfélions, alcançaram um alto grau tecnológico/biológico, dando sequência à sua expansão para a colonização de todos os mundos do seu sistema solar, efetuando terra-formação até mesmo nas luas de seus gigantes gasosos e se espalhando por todo o seu sistema. Além disso, descobriram num tempo relativamente recente, como manipular através das descobertas recém adquiridas pela sua magnífica ciência, a energia do próprio pensamento e, ainda mais recente, as energias dos “mundos espirituais” mais próximos de seu orbe, iniciando assim uma grande revolução no avanço moral, intelectual e espiritual desse povo, lembrando um pouco a sociedade de nossas abelhas e formigas. E esse intercâmbio constante entre os seres encarnados e desencarnados de sua espécie os levaram à troca de experiências e ideias até mesmo com aqueles seres de seu povo que já haviam falecido. Uma verdadeira troca de experiências entre universos de dimensões totalmente diferentes ou até mesmo, em algumas circunstâncias, opostas.

Movimentos incompreensíveis de seus seis braços e mãos pênseis, cada vez mais rápidos e precisos, fizeram projetar no ar à sua frente a imagem do planeta azul de sua próxima colônia. Imediatamente, milhares de informações diferentes, diversas imagens e sons de várias línguas estranhas, inundaram os circuitos da belonave, numa frequência de rádio há muito abandonada pelos tecnólogos de sua espécie, mas cuja existência foi prevista pelos seus cientistas.

- Não pode ser! – soltando uma espécie de guincho de espanto que para nós seria interpretado mais como um zumbido estridente, cambaleou para trás indo cair direto na primeira cadeira que encontrou. – Esse mundo já é habitado por uma espécie inteligente! – disse para si mesmo numa língua que, para nós humanos, seria interpretada como simples estalos e guinchos agudos.. E, com espanto, percebeu num relâmpago, que todos os planos de colonização desse setor estavam definitivamente comprometidos.

- Isso muda tudo! – pensou.

Não esperava por isso! O Conselho das Rainhas ficaria tremendamente decepcionado. Eles haviam colonizado todo o seu sistema solar e tinham que expandir! Anteriormente, seus instrumentos haviam captado indícios de vida neste mundo, mas de uma vida primitiva e não de vida inteligente! É verdade que haviam captado, em estudos recentes, estranhos ruídos de rádio vindos deste planeta, mas, talvez, - pensou - devido à imensa distância e às interferências de todo tipo, além das diversas possibilidades de bloqueios desses sinais, teriam chegado muito fracos aos aparelhos de seus pesquisadores, que não puderam interpretá-los corretamente.

- Deve ser devido aos muitos anos luz que separam este mundo do nosso. Afinal, são exatamente trezentos mil mélions luz de distância! Nesse período, essa espécie deve ter se desenvolvido ao ponto de criar uma civilização – falou para si mesmo ao observar as diversas imagens da civilização humana que eram transmitidas pelo bacteriont.

Seus quatro cérebros oblíquos trabalharam febrilmente e, graças a essa extrema rapidez de raciocínio e também à uma grande adaptação de sua espécie aos maiores problemas imagináveis, concluiu que toda a missão de colonização desse setor teria que ser, no mínimo, adiada.

Acionando com um gesto o painel à sua esquerda usando uma de suas mãos pênseis, e emitindo um forte pensamento telepático à IA (Inteligência Artificial) da nave, liberou três sondas triangulares para estudar mais de perto o planetinha azul abaixo e entender melhor a espécie inteligente que havia dominado tal orbe.

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O Capitão James Ross Mardem, não estava muito feliz. Acordar sempre às 4 da manhã todos os dias, vá lá, mas ser despertado pelo seu imediato as 2:30 da madrugada já era demais! - "Espero que aquele magrelo do tenente Stell tenha um bom motivo para me tirar da cama antes das três da matina, ou não vou responder por mim.” – pensou, chateado, mas um pouco esperançoso de que pelo menos o seu subordinado tivesse a sensatez de ter preparado o café. Estava visivelmente aborrecido por ter que passar por um processo protocolar de segurança exaustivo, até conseguir penetrar na sala dos sistemas de radar da base de Roswell, cujas instalações tinham sido construídas especialmente para estudar os três objetos voadores não identificados que foram encontrados no ano passado, em 1947, no Novo México.

- Que diabos, tenente! – falou no seu costumeiro sotaque do Texas, entrando na grande sala iluminada por muitas telas e onde diversas pessoas já estavam andando de um lado para outro, carregando papéis diversos, fitas magnéticas e vários comandos e ordens ditadas pelo tenente Stell - Já disse pra me incomodar somente em extrema urgência!

- Desculpe, capitão! – disse o tenente fazendo uma impecável continência – Mas depois que o senhor mesmo ver o que estamos captando no radar nesse exato momento, vai perceber que é um caso de extrema urgência! – pigarreou, parecendo um pouco aflito e com um suor frio surgindo nas têmporas – Três belonaves desconhecidas apareceram de repente nos nossos radares e estão paradas a pelo menos uns 10 km da nossa base, em uma formação triangular perfeita! É como se estivessem flutuando em pleno ar, senhor!

O tenente Stell era um sujeito muito magro, olhos verdes e cabelos loiros e ralos, onde já se mostravam as entradas de uma futura calvície. Ele tentava despistar penteando os poucos fios que restavam com vaselina em direção ao lado esquerda da cabeça, o que ressaltava ainda mais a sua futura e inexorável careca.

O capitão James Ross quase deixou a xícara do café quente cair das mãos ao lançar uma primeira olhada na tela do radar.

– Pelas barbas de Jesus Cristo, tenente! Parecem de aspecto triangular e estão numa espécie de formação de ataque! Quando foi que elas apareceram?

- Há mais ou menos meia hora, senhor! –disse o tenente falando mais baixo que de costume.

- Meia hora? – Esbravejou o capitão – E só agora você mandou me chamar? Pelo amor de Deus! Será que tenho que fazer tudo sozinho?

Todos ali já estavam acostumados com o jeitão truculento e às vezes cômico do seu capitão. Era bem típico ele reclamar de ser acordado cedo demais e depois ralhar com seus comandados por não tê-lo incomodado mais cedo. Essa atitude deixava os subordinados novatos enlouquecidos, mas o tenente Stell, que estava em Roswell a mais de ano e meio, já tinha se acostumado àquele sujeito corpulento e que parecia mais um gângster da máfia do que um capitão da Força Aérea dos Estados Unidos. A única diferença era o uniforme da Força Aérea, bem engomado e passado, que denunciava a férrea disciplina do militar americano, acostumado às mais duras provas. Uma delas, que para muitos seria a maior de todas, era ficar morando permanentemente na base do deserto de Nevada, a 130 km de Las Vegas.

O capitão começou a dar ordens e todos pareciam acordar de repente e a correr em direção ás salas de comunicação e a diversos outros lugares secretos da base de Roswell. Dois jatos da Força Aérea foram acionados para tentar interceptar as naves invasoras e o tenente Macwilliams, um afro-americano musculoso e sorridente, foi rapidamente escalado para a missão.

Os motores do caça F22 Raptor rosnaram com fúria e, numa explosão de suas turbinas, o majestoso avião alçou aos céus límpidos do deserto de Nevada. O piloto Macwiliams e seu outro companheiro de esquadra, receberam os dados das coordenadas das naves intrusas, e fizeram uma grande curva pelo norte para triangular a sua formação de ataque e dar o costumeiro ultimato ao inimigo numa situação de guerra. Quando se aproximavam das estranhas aeronaves em forma de triângulo, algo inusitado aconteceu! Elas começaram a se mover! No início bem lentamente, seguindo em direções opostas uma da outra e, sem o menor aviso, duas delas se deslocaram numa velocidade incrível (ou seria impossível?) em direção aos jatos! Quando estavam prestes a se chocar com eles, pararam de repente e se mantiveram com as velocidades sincronizadas com os dois caças.

- Águia Azul para base! Águia Azul para base! Estão vendo isso? – Disse Macwiliams num tom meio rouco devido ao espanto diante da manobra dos objetos não identificados à sua frente. Recebendo resposta de que sim, eles estavam vendo o que ocorria, o tenente pegou o microfone do jato e direcionou um comunicado via rádio aos estranhos objetos, esperando que seus pilotos (seriam espiões?) respondessem ou partissem, sem que eles tivessem a necessidade de usar as armas dos jatos. Afinal, Macwiliams sabia que teria de preencher um longo e entediante relatório da ocorrência e este ficaria ainda maior se tivesse que usar a artilharia.

Foi quando o inusitado se fez presente para Macwiliams! As duas naves estranhas começaram a brilhar intensamente em diversos tons de cores e intensidades, bombardeando os dois jatos com um intenso show pirotécnico de luzes. Assustado, mas ao mesmo tempo deslumbrado com o espetáculo, permaneceu durante uns bons minutos sem conseguir fazer mais nada, a não ser ficar admirando a beleza daquele espetáculo! Voltando a si de repente, balançando a cabeça e se sentindo meio atordoado, pediu instruções ao seu comando imediato sobre as suas próximas ordens, e qual não foi sua surpresa quando ouviu: - Atire, tenente! Isso parece um ataque! Derrube essas coisas, agora!

O capitão James Ross mal acabou de dar a ordem, quando o tenente Stell o interrompeu bruscamente e, muito excitado e nervoso, pediu permissão pra falar. – Diga, tenente! Apesar de você já ter percebido que não é uma boa hora para interrupções!

-Senhor! – principiou ele num tom mais respeitoso do que o normal – Tenho razões para acreditar que as naves alienígenas não querem atacar, mas sim, se comunicar. Por favor, peça aos caças que não abram fogo! Apenas diga a eles para piscarem os faróis dos caças pras naves, mas obedecendo a uma ordem lógica, como o sistema Morse, por exemplo. As luzes devem ser o modo como eles se comunicam!

O capitão James Ross olhou para o tenente Stell como se tivesse visto um papagaio pela primeira vez! Um leve sorriso se vislumbrou em seu lábio esquerdo, um sinal de que o tenente o havia feito mudar de ideia.

- Tenente Macwiliams! – repentinamente, o capitão gritou a plenos pulmões para dentro do microfone, fazendo o tenente Stell e todos na sala de radar estremecerem – O que está esperando? Atire, porra! Atire nessas malditas naves agora, ou vai ter que lavar as latrinas de toda a base Roswell pelo resto de sua carreira estúpida!!

Não tem como descrever a cara de perplexidade que o tenente Stell fez diante da ordem desmedida do seu superior! Boquiaberto, olhou para a tela do radar e ficou, como todos os homens na sala, a escutar os últimos comunicados do Águia Azul.

- Entendido, capitão! – falou Macwiliams lacônico, enquanto se preparava para atirar com todas as armas de que dispunha nas naves invasoras.

O Tenente Macwiliams era um soldado ideal a que todo capitão sonharia em dar ordens! Era capaz de obedecer prontamente e de seguir qualquer ordem ou comando de seus superiores friamente sem quaisquer questionamentos, por mais absurdas que parecessem tais desmandos.

Porém, quando ele e seu parceiro de voo estavam prestes a apertar o gatilho, as duas naves estrangeiras partiram numa velocidade impossível em duas direções diferentes e deixaram os dois caças F22 comendo poeira, literalmente! Pasmo diante do ocorrido, ele chegou a virar o pescoço em todas as direções procurando as naves estranhas, mas somente conseguiu vê-las se distanciando rapidamente ao longe, bem na direção do pôr do Sol, desaparecendo em seguida, sem deixarem vestígios.

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O morfélion número 588, cuja civilização tinha uma cultura em que não se usava nomes, mas números para se identificar, ficou tremendamente decepcionado! Tinha muita esperança de conseguir um contato inteligente e racional com a raça de Tributts (macacos - na língua morfélia) e, quem sabe, conseguir uma troca de informações e até de tecnologia entre as respectivas espécies.

O pobre alien de pele azulada passou o restante da tarde, no horário de seu mundo, emitindo minuciosos relatórios sobre o planeta lindo e azul que havia encontrado, mas que, infelizmente, devido a insuficiência de desenvolvimento intelectual, moral e espiritual da raça abaixo, não poderiam dar prosseguimento à uma reaproximação amistosa. Afinal, os morfélions são uma raça extremamente avançada, não só em termos tecnológicos, mas em tudo o que se pode imaginar de uma cultura estelar. Assim, tinham como princípio jamais prejudicar qualquer raça alienígena inteligente em qualquer dos mundos visitados, ainda mais se for menos avançada.

Usou seus vastos poderes telepáticos e com um simples pensamento a belonave de mais de 2 km de diâmetro, que trazia em seu bojo milhares de toneladas de equipamentos e alimentos, começou a se mover em direção à estrela que nós, terrestres, chamamos de Alpha Centauri.

FIM