2050 – O ano da redenção
O som das pancadas na porta tirou-me das fantasias, cada vez mais comuns quando estou só. O pensamento indomável viaja onde o corpo alquebrado e abatido se recusa a ir. Tento desesperadamente jogar a culpa na idade, afinal sou um dos raros nonagenários do mundo, mas, minha mente lúcida rechaça o argumento. Volto a realidade com a repetição das pancadas na porta. O relógio da parede informa que são quinze para meia noite. Quem é temerário que está na rua, passadas quase cinco horas do toque de recolher?
Com a luz apagada, afastei a cortina e reconheci a boina de Caio. Entreabri a porta e fui empurrado, caindo com violência.
- Você está louco Caio?
Ele entrou e fechou rapidamente a porta, não sem antes observar se alguém havia notado a movimentação.
- Nessas horas que agradeço por morar em uma cidade pequena. A pouca iluminação, postes com lâmpadas quebradas. Pude me esgueirar até aqui.
Alguns minutos se passaram, ainda sentados no chão, no escuro, ouvimos a sirene da terrível SS (Supervisão Sanitária). Passaram direto. As doze em ponto soou a sirene da praça central. Bem mais alta, tocando a cada hora, e logo passa marchando em uníssono uma tropa da SS em seus uniformes negros e com os tacões das botas batendo nas pedras do calçamento numa música rítmica, desagradável e temível. Logo a seguir a noite retorna à quietude e harmonia.
Sentados na cozinha, às escuras, pudemos finalmente conversar. Apesar da idade, Caio Albuquerque era um grande amigo, um dos poucos em quem eu confiava. Beirando trinta anos, aparentava bem menos com a barba por fazer e o cabelo negro, curto, em desalinho. Magro, e usando roupas que pareciam ser um número maior, mesmo quando novas, não lhe caiam bem. Trabalhava na Supervisão sanitária, claro que não era um dos famigerados SS, era apenas um técnico auxiliar dos chipadores.
- Lando, desta vez me meti em uma grande enrascada.
Diante de meu olhar interrogador ele continuou.
- Arranquei o meu chip.
Não consegui falar nada, mas minha expressão de espanto era óbvia. Estou ficando bom em caras expressivas. Puxei seu antebraço direito e pude ver o corte recente ainda sujo de sangue. Tateei até encontrar minha caixa de socorro no fundo do armário, atrás da pilha de pratos. A cozinha espartana tinha uma mesa e duas cadeiras nas quais nos sentamos. Encostado na parede uma pequena geladeira, vazia no momento e uma bancada com alguns utensílios e um fogareiro. Mandei que ele segurasse a lanterna bem perto do ferimento enquanto suturava o corte. Levando em conta minha visão deficiente e a pouca luminosidade, pode-se dizer que fiz um bom trabalho, testemunhado apenas pelas baratas cada vez mais ousadas que viviam nas rachaduras da parede. Caio continuava com suas ideias absurdas.
- Você sabe o que dizem dos chips, não é?
- Claro, serve para o controle de doenças, o computador central está em análise permanente de toda população. Surgiu da ideia de controle dos chips telefônicos e expandiu-se para cuidados sanitários pessoais. Lembro-me muito bem, começou há uns trinta anos logo depois da primeira grande pandemia. Como o povo não se cuidava, o governo foi obrigado a medidas drásticas e o chip indicava o início de uma contaminação.
- E você engole essa balela toda? Eu vivo vendo isso, a colocação de chips, embora não tenha acesso aos computadores, sei que não é só sobre saúde, é controle.
- Já ouvi esse tipo de comentário em bares de terceira depois de algumas doses, mas me parece teoria da conspiração. Lenda urbana.
- Você é médico, já passou seu tempo de validade, - ele sorri sozinho com a piada desagradável - sabe que na sua idade não pode mais receber remédios. Quando ficar doente eles controlarão pelo seu chip.
- Até não reclamo, é preciso pensar no comunitário, nas crianças, não dá para gastar com velhos e faltar tratamento para as crianças.
- hunf - Porque não existem mais livros ou registros da história depois da primeira grande pandemia? Por falar nisso, ouvi dizer que ouve uma anterior, que chamaram de doença espanhola ou qualquer coisa parecida.
- Mesmo com meus noventa e três anos, essa foi anterior ao meu tempo, mas parece que foi apenas uma gripezinha, até o nome confirma isso: “gripe espanhola”.
- Claro que não vivi isso, retruca Caio, mas meu pai me contou muitas coisas, que chegou a votar para presidente. Imagine só, o povo escolhendo seus governantes.
- Veja a loucura que você está falando, um só homem governando um país, ainda bem que aquilo acabou. E se esse homem fosse um louco? Estamos muito melhor com o país sendo dirigido pela Corte Judicial, são onze cabeças pensantes. E quando um deles falece e abre vacância no cargo, eles escolherão outro de nível semelhante, ou seja, sempre teremos um grupo de elite na direção do país, não é à toa que se chamam Os Supremos.
- Mas a gente não pode escolher.
- Você pode escolher o administrador de quadra. Aí sim está certo, pois você realmente conhece as pessoas disponíveis para o cargo.
- Para com isso Lando, os candidatos são os indicados pela SS, só podemos colocar no cargo delatores colaboracionistas.
- Essa conversa não nos leva a nada Caio, estou preocupado com seu chip, como passará pelos leitores dos sanitas?
Eu roubei um chip vazio, venho guardando a muito tempo para uma emergência como essa, substitui o meu antigo pelo vazio. Trouxe outro para você. não precisará mais roubar medicamento do CRA (centro de reconhecimento e atendimento) para a sua hipertensão.
- Graças a esses pequenos furtos tenho anestesia, fio e agulha cirúrgica para poder tratá-lo agora.
- Não estou reclamando Velho, só constatando um fato, o sistema nos faz viver a margem da lei. Você sabe que temos um grupo de resistência, posso levá-lo até eles. Será muito bem-vindo. São gente boa, conhecidos aqui do bairro. Pessoas descontentes com o totalitarismo que vivemos.
Guardei meu material, lavei o sangue, terminei quieto o curativo do antebraço de Caio. Ele respeitou meu silêncio e um tapinha nas costas foi o agradecimento. Nem ouvi quando abriu a porta e se foi. Atirei-me no meu catre duro, mas mal consegui dormir. Não sei o que me incomodava mais, as dores que agulhavam meu corpo todo ou as palavras do garoto. Não que nunca houvesse pensado nisso, mas havia me recolhido a uma situação passiva e cômoda. Agora vem esse pivete desenterrar ideias e emoções a muito esquecidas. Conforme meu corpo gritava, enterrada no fundo das minhas memorias, vinha a imagem de uma cama com um colchão mole e limpo.
Acordei mal, uma dor leve e insistente na têmpora permaneceu mesmo após uma xícara de café. Acompanhei com uma bolacha seca, parte da cota mensal de alimento do cidadão. Vesti o jaleco negro de médico e sai para o CRA. Do bairro onde moro até o CRA dista aproximadamente três quilômetros. Passo por enormes conjuntos residenciais sujos, com vidros quebrados, de aspecto decrépito. Ruas esburacadas, placas caídas e mato crescendo pela calçada mostram o espírito da cercania. Como vampiros modernos, as pessoas escondem-se com a luz, a noite são violentas e a vida não vale um naco de pão. A aparência é de uma cidade bombardeada. Mas à medida que me afasto do bairro em direção ao centro da cidade, a aparência geral melhora, casas mais bem cuidadas, pintadas. Ruas asfaltadas, sem buracos. Estava nauseado, cansado de viver nesse mundo que infelizmente eu também ajudei a criar, talvez não de forma ativa, mas calando-me, deixando as injustiças evoluírem.
Entrei no Centro sem cumprimentar ninguém, fui direto para minha mesa onde já tinha uma fila me aguardando. Atendi cinco chips com defeitos, “nem isso mais fazem direito, ouvi dizer que vem do império oriental”. Encaminhei os cinco para assistência técnica. O sexto foi um senhor com um quadro de hipertensão (240/140 mm Hg). Infelizmente tinha passado dois meses do prazo de validade. Tinha cinquenta anos e dois meses. Não tinha mais direito a medicação de doenças crônicas. Ele ouviu minha explicação com um ar sofrido e quando terminei ele pediu: - não tem pelo menos um remédio para melhorar essa dor de cabeça, está me matando. Peguei duas cartelas de meus remédios de pressão e dei a ele. Assim que se levantou pensei comigo “como arrumarei outros? Parabéns, imbecil, mais um problema para resolver. Tenho sorte de ser um médico leitor, até agora eu sempre li meu próprio chip, mas quando acontecer de ser averiguado por outro e constatarem que sou hipertenso, a vigilância sobre mim será intensa. Talvez seja a hora de aceitar a ideia do Caio”. Ao final do dia, quando todos tinham deixado a sala resolvi fazer uma leitura minha. Passei o scanner pelo antebraço direito e na pequena tela apareceu minha foto, logo abaixo o nome Oriolando Neves, idade, endereço, e nesse momento o aparelho zuniu e a foto ficou tingida de vermelho e sobre a mesma apareceram duas informações em maiúsculas: IDADE EXCEDIDA, DOENÇA CRONICA. Desliguei rapidamente e guardei o scaner.
Demorei uma semana até decidir o óbvio e chamar Caio. Nessa noite, como criminosos esgueiramo-nos pelos conjuntos habitacionais abandonados até chegarmos ao grupo. Uma batida ridícula era a senha, como se fizesse a mínima diferença se os SS viessem. Entreabriram a porta e quando confirmaram que estávamos sós nos deixaram entrar. Uma sala nua e suja, piso de cerâmica de um padrão antigo, quadriculado, com uma mesa de fórmica quebrada e cinco cadeiras, três das quais ocupadas. Na parede, como lembrando que ali já fora uma residência, resistia um quadro amarelado de um pôr do sol. Todos os rostos conhecidos. Uma senhora idosa que toda semana passava no CRA pedindo analgésicos, os outros dois eu já havia visto também. Me receberam com certa desconfiança, hoje, nenhuma precaução é excessiva. Fizeram uma espécie de questionário, muito amadores. Nem trinta minutos haviam passado quando ouvimos a sirene estridente da ambulância blindada da Supervisão. Logo o ruído de freios de outros carros e pessoas correndo. Em segundos os SS estavam no corredor do prédio, enquanto corríamos para a porta dos fundo ouvimos o estrondo da entrada sendo arrombada. De relance pude ver a senhora que ficara para traz ser atingida e cair numa poça de sangue. Acabei me separando do grupo. No térreo ao sair avistei os carros cercando tudo. Ergui os braços esperando o tiro que não veio. Fui jogado na traseira gradeada da ambulância e seguimos em alta velocidade para onde ao sair reconheci como a Central Sanitária. O terrível prédio negro de três andares. Guardas, médicos e enfermeiros circulavam enquanto eu era levado a uma minúscula cela, sem móveis e escura. Perdi a conta do tempo que ali fiquei. Ouvia gritos, gemidos. Ao fundo reconheci o som de Mozart K525. Meus lábios já estavam rachados pela falta d’água quando fui levado para uma outra sala. Puseram-me diante de um oficial sentado numa mesa simples, que sem sequer levantar os olhos começou uma série de perguntas que eu procurava responder com presteza pois ao demorar era atingido pelo guarda atras de mim. Não me lembro o tempo que passei em pé. Caí algumas vezes, por fim fui carregado para uma maca. Na passagem pude ver Caio pendurado por correntes, desfalecido, com muitos sinais de contusões e cortes pelo tórax e membros. Enquanto preparavam o material cirúrgico ouvi dois chipeiros em seus uniformes negros comentando. – Acho que ele não causava problemas ao sistema. Disseram que foi o único sobrevivente da célula. Só vão trocar o chip.
Acordei em meu apartamento, com um cansaço mortal. O pessoal do hospital que me trouxe, disse que sofri um acidente e fiquei desacordado por dois dias. Parece que tive um pesadelo, algo como ser preso. Ainda bem que nunca lembro direito dos sonhos. Mas este parece recorrente. Ser acusado, estar em uma cela minúscula. Tinha um jovem que era meu amigo, tão confuso o sonho.
Preciso me arrumar para o trabalho. Tenho que agradecer muito por ter esse trabalho. A vida está melhorando, depois de tantas tragédias, pandemias, o mundo vai entrando nos eixos. Tomo um banho gelado para me reanimar. Visto-me rápido, observando a parede nua, exceto pelo calendário deste ano que recebi com propaganda do governo e da Sanitas. Ano 2050, nunca pensei que chegaria tão longe. Este será o ano da redenção. Tomo um cafezinho com um pedaço de bolacha seca e saio assobiando uma sinfonia de Mozart.