Como se sabe, todas as formas orgânicas em nosso planeta têm sua base de existência e sustentação essenciais graças à água. Sem essa substância transparente e inodora, não há vida. E água no Sistema Solar é o que não falta. Ganimedes, por exemplo, uma das luas de Júpiter, possui um oceano subterrâneo que pode conter até seis vezes mais água líquida do que todos os oceanos da Terra juntos.
Mas você consegue imaginar um bioma inteiro baseado em outra substância completamente distinta da nossa?
Minha imaginação corria solta pensando sobre isso enquanto eu contemplava a grandiosidade de Saturno e seus inconfundíveis anéis de detritos. A espessa atmosfera de Titã não permitia uma visão límpida do gigante gasoso, mas, mesmo após duas semanas ali, eu ainda não me acostumara àquele cenário fantástico.
— Vocês já conseguiram localizar a origem desses sinais de radiação eletromagnética? — perguntou Jota Alves, o Cientista Sênior na estação de pesquisa, através do comunicador interno dos nossos capacetes.
— Ainda não, chefe — respondeu Hector, já demonstrando um pouco de impaciência.
Caminhar naquele solo lamacento de metano, com visibilidade reduzida, era exaustivo. O traje térmico acolchoado, essencial para suportar a temperatura letal de 180 graus abaixo de zero, não oferecia o conforto desejado.
Titã, uma das mais de cem luas conhecidas de Saturno, é o único outro corpo celeste do Sistema Solar que reúne semelhanças com a Terra no que diz respeito à atmosfera e à presença de líquido em rios, mares e lagos. Sua superfície é coberta por dunas de hidrocarboneto, grãos finos da cor de café, e vastidões planas salpicadas por aglomerados de rochas de água congelada.
Diferente de outras luas e planetas, ali havia menos crateras e poucas formações montanhosas imponentes. Nossa equipe de cientistas viera até o satélite saturniano para estudar essas características únicas.
No entanto, logo após a nave pousar e se transmutar na estação de pesquisa, algo extraordinário aconteceu: um sinal eletromagnético potente começou a ser emitido de algum ponto de Titã, rompendo sua densa atmosfera e se lançando ao espaço. No mesmo instante, todas as nossas comunicações com a Terra foram interrompidas.
Depois de muitos debates, chegamos a uma conclusão inquietante: havíamos, possivelmente com a nossa presença, acionado algum tipo de alerta interestelar para alguém lá fora.
A prioridade agora era localizar e desativar a fonte da transmissão, fosse ela um fenômeno natural ou um artefato tecnológico. Não sabíamos quais implicações aquele alerta poderia ter. Recuperar o nosso contato com a Terra tornara-se uma questão urgente.
Eu e Hector fomos os sorteados para resolver aquela encrenca.
Depois de um passeio exaustivo de quase vinte quilômetros a bordo do hovercraft, havíamos estacionado perto da borda de uma cratera de baixo relevo, mas com um diâmetro colossal. Os sinais vinham dali. O solo ao redor era escuro e irregular, formado por um mosaico de gelo endurecido e depósitos de hidrocarboneto. O ar, denso e alaranjado sob a atmosfera espessa de Titã, deixava tudo com um aspecto enevoado, assim como se estivéssemos imersos em um crepúsculo eterno.
— O que você acha disso tudo, Max? — perguntou Hector, movendo-se à minha frente com lentidão exagerada. Seu corpo parecia mais leve, no entanto cada passo exigia esforço, dava a impressão de estarmos andando debaixo d’água.
A pressão atmosférica de Titã, 50% maior do que a da Terra, mesmo considerando a baixa gravidade, tornava os movimentos um exercício de resistência. O traje de proteção até compensava parte do esforço, porém a sensação era de se deslocar dentro de um fluido invisível, denso o suficiente para prender os corpos em seu abraço pesado.
— Não sei o que pensar — respondi, ajustando a visão do capacete. — É a primeira oportunidade real de obtermos provas da existência de vida inteligente fora do nosso planeta. Mas isso não adianta de muita coisa se não conseguimos transmitir essa informação pra Terra, não é?
— Você acha mesmo que, se desativarmos esse dispositivo, poderemos retomar as comunicações?
— Essa é a ideia.
Hector ficou calado por alguns minutos, o que era raro. Enquanto subíamos a encosta menos acentuada da cratera — de onde julgávamos vir as emissões de radiação eletromagnética —, eu me perdia em admirar a paisagem inóspita de Titã. Rochas de gelo se espalhavam em escombros naturais naquele mundo congelado. No céu, o manto espesso de névoa laranja filtrava a luz distante do Sol, criando aquela iluminação fantasmagórica difícil de ignorar.
A ideia de um ciclo líquido gerador de vida sempre nos fascinava. Na Terra, a água evapora, forma nuvens, chove e sustenta a biosfera. Em Titã, esse ciclo se repete, mas com metano no lugar da água. Chove metano, evapora metano, rios e mares inteiros são feitos dele. E se… alguma forma de vida tivesse evoluído para depender desse ciclo exótico? Nossa missão era justamente explorar essa possibilidade. Quais microrganismos, ou algo além disso, poderiam surgir num ambiente tão extremo? Aquela premissa não era algo impossível de ocorrer.
Só não esperávamos encontrar criaturas muito maiores... e inteligentes!
— Virgem Santíssima, olha isso! — exclamou Hector assim que alcançou o cume da cratera.
A tensão em sua voz me fez apertar o passo. Quando cheguei ao seu lado, precisei de um momento para assimilar o que via: um imenso lago de metano líquido se estendia dentro da cratera. Seu espelho negro refletia a pouca luz que atravessava a atmosfera densa. Do centro do lago, erguia-se uma estrutura colossal, uma torre com uma terminação côncava voltada para o céu, semelhante às antigas antenas parabólicas da Terra.
O céu acima do lago estava carregado, com nuvens escuras formando sombras espectrais no firmamento alaranjado. A névoa era espessa. Tornava a visibilidade limitada, mas os sensores térmicos do meu capacete captavam sinais distintos vindo da estrutura.
— Max… É de lá que vem o sinal. E não é nada natural — murmurou Hector, a voz carregada de inquietação.
— Vamos descer pra ver mais de perto — sugeri, já saltando sobre as rochas mais abaixo. Estranhamente, naquele momento, não senti medo. Nem cautela.
— Tudo bem — disse Hector, relutante. — Mas já vou avisando… eu não entro nesse lago nem ferrando!
Antes que eu pudesse responder, começou a chover.
Gotas enormes e escuras de metano líquido começaram a cair em câmera lenta, desenhando rastros efêmeros no visor do capacete. Ao tocarem o solo gelado, sem som perceptível, o único indício do impacto era o brilho viscoso que ia se acumulando sobre as rochas de gelo.
Desativei a visão infravermelha e liguei os holofotes do traje. A luz branca e intensa rasgou a penumbra alaranjada, revelando melhor o ambiente hostil. Minha respiração soava alta no capacete, um lembrete involuntário da tensão crescente. Algo lá embaixo parecia desafiar o silêncio absoluto de Titã.
Descemos com cuidado, passos afundando levemente no terreno escorregadio, uma mistura de gelo e compostos solidificados. A pressão atmosférica densa tornava a descida mais cansativa, os movimentos imprecisos, mas, aos poucos, alcançamos o fundo da cratera. O lago negro estendia-se à nossa frente. Um espelho opaco sob a chuva de metano.
Ficamos em silêncio por um longo momento à beira do lago, fascinados pela estrutura alienígena. Há momentos na vida em que simplesmente não há palavras para descrever o assombro. A mente se enreda em algo de maneira tão intensa que tudo ao redor desaparece, reduzido a um ruído distante.
Eu e Hector estávamos hipnotizados pelo artefato, que enviava ao espaço alguma mensagem impossível de decifrar. O que dizia? E para quem?
Então, de repente, a voz surgiu dentro da minha cabeça. Clara. Direta. Como se fosse minha própria consciência sussurrando um segredo proibido:
"Titã é nosso. Chegamos primeiro."
Meu olhar se voltou para Hector. Ele arregalou os olhos através do visor. O espanto que eu via nele, certamente se refletia em mim. Falamos ao mesmo tempo:
— Você ouviu isso?
A curta mensagem carregava um tom bizarro. Cada palavra parecia recortada de vozes humanas diferentes — um homem idoso, uma jovem, um locutor de rádio antigo — parecendo um mosaico sonoro de eras distintas.
— Isso é telepatia! – Hector deu um passo para trás, a respiração acelerada.
— Parece. — Uma tensão súbita tensionou todo o meu corpo. Sem perceber, fiz o mesmo: comecei a recuar da borda do lago, o instinto exigindo que eu me afastasse.
— Max, vamos embora. — Hector murmurou, já virando o corpo.
"Esperem."
Desta vez, foi um único tom. Feminino. Suplicante.
E então, as sombras se moveram!
A princípio, não vi de onde vieram. Um instante antes, estávamos sozinhos; no seguinte, dezenas de entidades negras e ovóides nos cercaram. Algumas emergiam do lago, formas indistintas deslizando para fora sem respingar. Outras já estavam ali, escondidas pela escuridão, revelando-se lentamente à luz dos nossos holofotes.
A superfície deles era brilhante, parecia obsidiana molhada, mas mutável, pulsava levemente. Alguns “indivíduos” esféricos mantinham-se imóveis, outros ondulavam sutilmente, deformando-se e retornando à forma original. Pequenos esporos flutuantes dançavam no ar ao redor deles, girando em um padrão invisível.
O medo veio de golpe. Ficamos chocados. Até aquele momento, Titã era um deserto silencioso e inóspito. Agora, não estávamos mais sozinhos.
"Titã é nossa casa. Vocês não são bem-vindos."
A frase reverberou dentro da minha cabeça, múltiplos timbres e cadências intercalando-se em chiados. Lembrava estática de rádio mal sintonizado.
Por alguma razão irracional, ao invés de fugir, tentei argumentar.
— Não sabíamos que havia habitantes aqui! — Minhas palavras saíram rápidas, quase atropeladas. — Todas as sondas enviadas à Titã nunca detectaram sinais de vida. Nem mesmo a Dragonfly, que pousou aqui em 2034, detectou qualquer sinal!
Os esporos flutuantes avançaram um pouco, movendo-se com uma graça perturbadora na baixa gravidade.
"Não registraram porque não permitimos."
A resposta me atingiu de imediato.
— Quem... quem são vocês? — Hector tentou perguntar, mas sua voz saiu falha, vacilante
"Isso não importa."
Uma das entidades maiores se adiantou. Sua forma pulsava lentamente com fluidez e suavidade. Irradiava uma presença quase orgânica e dentro dela algo se retorcia, uma luminescência azul-esverdeada fraca, mas perceptível.
"Viemos de um mundo distante. Este satélite é nosso paraíso. Parte da nossa constituição orgânica é baseada em metano, assim como a de vocês é baseada na água."
O ruído de estática entre as palavras era quase hipnótico. Carregava o peso de algo antigo, fragmentos de transmissões há muito tempo dispersas no espaço. Certamente, haviam aprendido a linguagem humana captando os sinais radiofônicos lançados por nossa civilização.
"Nossas naturezas não podem coexistir. Vocês precisam de seus trajes para sobreviver aqui. Nós morreríamos no mundo de vocês. Não há nada para compartilharmos."
O tom era factual, quase... triste.
— Nossa presença neste lugar é apenas científica. — Respondi, aliviado ao perceber que Hector não mencionara os interesses de mineração.
"Os sinais cessarão assim que forem embora."
Hector franziu a testa.
— E se não formos?
Houve um breve silêncio. Depois, a resposta veio, baixa e definitiva.
"Vocês teriam muito a perder — a ameaça não estava na voz, mas na certeza absoluta da afirmação. — "Somos poucos aqui, mas nossas forças imperiais nos protegem. Se o alerta continuar, eles virão. Eles sempre vêm."
— Mas... mas... as transmissões eletromagnéticas levariam séculos para alcançar qualquer civilização distante. Milênios, até. — Hector argumentou.
"O tempo não é um obstáculo. Nós o dobramos, o manipulamos, do mesmo modo que vocês fazem com suas máquinas primitivas. Se necessário, eles chegarão logo." — A certeza na voz me deixou muito preocupado.
Respirei fundo e abaixei a cabeça levemente em um gesto de rendição.
— Falarei com meus superiores. Vamos embora. — Olhei para Hector. Ele hesitou por um segundo, então assentiu, aliviado, já começando a subir a encosta.
"Esperem, um de vocês deve ficar."
O impacto da frase nos paralisou. Aquela sentença foi um baque. Um arrepio rastejou pela base da minha nuca. A voz fragmentada de tons que soara em minha mente não parecia admitir contestação.
Os olhos de Hector arregalaram-se. O medo era quase palpável. Vi um músculo tremer em sua bochecha. Meu instinto me mandava dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas as palavras fugiram.
Olhei para o enorme esporo negro suspenso diante de mim. Ele pairava imóvel, sua superfície pulsando de maneira hipnótica. Encarei-o por um longo instante, como se desafiar sua existência fosse o bastante para fazê-lo mudar de ideia, ou fazê-lo sumir.
"Não podemos perder a oportunidade de estudar a fisiologia da sua espécie” — a voz reverberou dentro da minha cabeça, fria, irrevogável. Parecíamos animais indefesos.
Senti a garganta apertar. O instinto de sobrevivência nos faz tomar decisões desesperadas. Fiz um leve movimento com a cabeça, como se dissesse sim, no entanto, por dentro, tudo em mim gritava para não aceitar aquele destino.
Foi então que olhei para Hector e percebi: a expressão dele não era só pavor. Era decisão. Mal tive tempo de reagir. Ele me empurrou com força. Tropecei à frente, tentando me equilibrar, mas antes que pudesse me firmar, ouvi sua voz explodir pelos fones:
— Ele é de vocês! Podem ficar com ele!
O impacto da traição foi engolido pelo choque do que veio a seguir.
A pressão ao meu redor mudou. Algo viscoso deslizou sobre a camada exterior do meu traje. Ovoides negros me envolveram. Seus corpos se misturaram, aglutinando-se numa massa pegajosa que me sugava para dentro. Lutei, mas cada movimento era inútil, esforçava-me contra uma parede de areia movediça. O aperto aumentou, e por um instante, tive a impressão de que o cheiro do ambiente conseguia atravessar a barreira do traje. Comecei a entrar em pânico.
Acima de mim, a esfera negra flutuava, observando. Seu pulsar irregular lembrava uma respiração cardíaca contida. A criatura parecia analisar minha resistência antes de decidir o que fazer comigo.
Então, por entre as sombras e os vultos, enxerguei Hector fugindo.
Seus holofotes tremulavam no breu enquanto ele subia o aclive da cratera, tropeçando nas pedras geladas, correndo como se sua vida dependesse disso, porque de fato dependia.
— Me perdoa, Max! Me perdoa... mas eu não posso ficar aqui!
O medo dele transbordava nas palavras nos fones do meu capacete, mas isso já não importava. De repente, houve uma mudança. A atenção dos “metanóides” agora se voltava para ele.
O aperto ao meu redor diminuiu. O peso dos corpos negros sobre mim afrouxou. Meus braços ficaram livres. Então, antes que eu pudesse entender o que acontecia, ouvi novamente a voz na minha mente.
"Diga ao seu superior... que foi um acidente" — não havia ameaça, mas um aviso.
A massa a me envolver se desfez, fragmentando-se em dezenas de corpos escuros. Eles deslizaram ao redor de mim, fluindo em líquido vivo de um azul escuro, mas não mais para me conter.
Eles estavam indo atrás de Hector.
O brasileiro ainda subia o declive, já perto do topo. Por um segundo, pensei que ele realmente escaparia. Mas os alienígenas eram mais rápidos. Os primeiros vultos começaram a persegui-lo. Não mais do que dois minutos, as luzes do traje dele piscaram, sumindo na escuridão.
A princípio, só ouvi sua respiração ofegante no canal de comunicação. Depois vieram os primeiros gritos.
— Não... por favor... não! Eu... eu não mereço isso!
O horror na voz dele me apertou o peito.
— Max! Max! ME AJUDA!
Tentei responder, mas o sinal foi cortado.
Levantei-me atordoado, pois perdera o equilíbrio assim que fora libertado. Tentei me comunicar com o traje de Hector. O sinal fora cortado. Antes de iniciar à subida daquela ladeira escura e gelada, vi o visor do meu amigo flutuando naquela argamassa de metano, deitado, de olhos esbugalhados a gritar alucinado sem se fazer ouvir. Enquanto era carregado, o aglomerado negro aglutinava-o como se fosse um casulo.
Levaram-no para as profundezas do lago!
Nada mais eu podia fazer por ele! A voz telepática ecoou mais uma vez na minha mente, agora de frequência baixa e definitiva:
"Vá embora."
Tremendo, me pus de pé. Então, sem olhar para trás, escalei com pressa, correndo do jeito que dava na baixa gravidade de Titã.
A expedição em Titã foi cancelada. O cientista-chefe, Jota Alves, depois de relatar o ocorrido, incluindo a morte “acidental” de Hector, recebeu ordens para voltar à Terra.
Muitos anos se passaram, mas ainda hoje, de vez em quando, eu acordo assustado em meu quarto, lembrando-me daquele pesadelo vivido em Titã. E quando isso acontece, fico introspectivo por dias seguidos, a ruminar pensamentos sobre uma mensagem insistente a repercutir dentro de mim, mas proveniente de lá, uma mensagem entrecortada de tons e falas humanas variadas que me suplicam:
“Max, eu ainda estou vivo, venha me buscar, por favor!”