LUNAÇÃO



                                                      
                                           Estou do outro lado.



 
Um dia aqui na Lua equivale a duas semanas aí na Terra, assim como uma noite. Há que se aproveitar bem a luminosidade, quando presente, pois no período de escuridão e frio as baterias trabalham a todo vapor. A vantagem é ter aprendido o uso consciente da energia, sem a qual não haveria como se manter o sistema de suporte de vida, controle térmico e geração de oxigênio.

Saibam os senhores: a temperatura lá fora passa de 100 graus negativos até mais de 100 positivos durante o longo ciclo dia-noite. Portanto, as baterias precisam estar plenamente carregadas, até mesmo para simular um campo magnético. Caso contrário eu não passaria de um ovo frito.


De qualquer forma, como estou sozinho por estas crateras lunares há cerca de 2 anos terrestres, não preciso conversar em voz alta nem gastar demandas metabólicas com discussões inúteis. Quanto ao silêncio... ah o silêncio... este é brutal!

Ressalto ainda o fato da gravidade ser menor, permitindo-me atenuar o peso de minhas vestimentas espaciais com uma movimentação mais fluida, em saltos, como um canguru cósmico. Isso quando saio a passeio pelas planícies acinzentadas. Ainda consigo me emocionar com o nascer da Terra e sua coloração azulada, além de ficar maravilhado com os frequentes meteoros a cortar os céus daqui.

Quando estou dentro da estação espacial, sem o capacete, ainda tenho náuseas com o cheiro repugnante da poeira lunar aderida às botas e ao traje. Um misto de ovo podre com um odor rançoso. Assim que me dispo a cada retorno o olfato me castiga, mas aos poucos vai se tornando insensível. É isso mesmo: sou como um rato entocado aqui, neste ambiente assemelhado a um esgoto seco, privado de água e eterno em sua existência.

Como estou no chamado “lado escuro da Lua”, apenas sou capaz de me comunicar com a base do CEIA (Consórcio Espacial Interamericano) a cada período de 29 dias (daí de vocês), através de um convênio com um rover chinês e sua base, estacionados a quilômetros daqui, os quais retransmitem meu sinal a outra sonda oriental em órbita, e desta para os satélites interamericanos no lado conhecido de nosso corpo celeste coirmão. Foi a licença que conseguimos, sob a condição de não poder me aproximar da tecnologia vermelha e seus segredos.

O Consórcio é formado por nações das Américas Central e do Sul apenas. Estamos muito atrás das potências espaciais e temos poucos recursos financeiros. Tipo aquelas corridas antigas de Fórmula 1 lembram-se? Algumas equipes menores corriam teimosamente, mais para compor o cenário. Algumas de nossas unidades federativas, porém tem elevados recursos naturais úteis à produção de baterias, o que nos deu uma chance de participar, ainda que como coadjuvantes à corrida espacial.

Estas condições de submissão e escassos recursos quase fizeram por abortar a missão, mas conseguimos de última hora um financiamento a perder de vista do FEM (Fundo Exploratório Mundial), que diz ter como objetivo maior o estímulo à investigação de vida e recursos geofísicos espaciais, em que pesem minhas dúvidas sobre o que de fato visam explorar...

Fui enviado aqui em missão solitária, pois o CEIA não dispunha de orçamento para mais um tripulante. Minha missão seria explorar algumas crateras mais profundas próximas daqui, chamadas de “buracos de lava”, as quais poderiam abrigar humanos e os proteger das condições adversas de radiação e extremos de temperatura. Infelizmente nosso veículo de exploração lunar que seria enviado numa segunda missão não chegou.

Me parece que algumas empresas fornecedoras de componentes eletrônicos e peças abandonaram o consórcio e não cumpriram seus acordos. A Ford, Mercedes e a Geely foram as primeiras a abandonar o barco.

Desde então o objetivo científico da missão passou a ser o “estudo das reações humanas ao isolamento prolongado e condições meteorológicas adversas”. Envio meus relatórios a cada ciclo de 29 dias não lunares, correspondente aí no céu de vocês leitores ao intervalo entre duas Luas novas, também chamado LUNAÇÃO.

Me chamo Mello. Major Mello. Sou piloto e administrador de sistemas operacionais do CEIA. É minha primeira missão. Dependo da colaboração das agências espaciais internacionais para ser resgatado e retornar ao nosso pálido globo azul. Meu sonho é me inscrever como astronauta voluntário à exploração de exoplanetas. Estamos no ano terrestre de 2046. Tenho 25 anos e sou inexperiente, mas os mais graduados se recusaram a tomar parte nesse empreendimento, considerado de risco por possíveis falhas de logística.

A história é feita de aventuras e cobaias nada inocentes. Me sinto como os primeiros navegadores náuticos lançados ao mar desconhecido, sem certeza da chegada e muito menos da volta. A maioria pereceu, mas não estaríamos aqui hoje, sem seus grandes feitos, movidos por coragem e estupidez.

Amo a Lua e o espaço. Mas confesso me sentir meio abandonado, a conversar com as rochas lunares. Às vezes tenho a sensação de visões e de estar sendo observado, mas admito tudo ser fruto de minha mente muito privilegiada, submetida a condições de ociosidade. O lado bom é poder estar imune aos vírus disseminados no globo terrestre e à sordidez humana.

Gosto de estar só...





Texto originalmente publicado no blog FC BASE LUNAR.