LENDAS DO PRÓPRIO FUTURO

Traduzido do idioma geral de Lanetareria. O uso de qualquer outra forma de comunicação no planeta representa um ato de rebeldia passível de punição.

O calendário geral marcava o quinto período do ciclo 10.197 PR, na chamada era contemporânea, Pós-Revolução. O início da contagem começara com o marco da insurreição que determinara o fim do longo período de instabilidade social e econômica no terceiro corpo celeste a partir da estrela amarela daquele sistema solar.

Lanetateria era a designação que os habitantes, em seu idioma comum, utilizavam para se referir ao próprio lar, ignorando quaisquer outras representações, fossem elas de dentro ou de fora de sua galáxia.

Muito se falava sobre a era de trevas, onde a fome, o desespero e a pestilência abraçavam o mundo. Não havia projeção de esperança, até que a Revolução libertou a todos de tamanha opressão. Assim estava gravado nos cristais sagrados. Cada habitante do planeta, não importando se fossem esses das áridas terras do sul, dos gélidos rincões centrais ou das terras temperadas do norte seguia os desígnios das escrituras. Até mesmo a grande colônia mineradora, que ainda resistia na exploração das ruínas que sobraram do satélite natural, acreditava e seguia com o coração e a mente os ensinamentos de igualdade e prosperidade para o bem comum nano gravados naqueles fragmentos de quartzo.

As diferentes raças e etnias compartilhavam o mesmo ambiente. Remptilisenes, com sua rígida e natural proteção sobre a derme e suas órbitas oculares grandes e de íris verticais se destacavam fisicamente das demais, não que houvesse uma homogeneidade nas outras, mas espécies como Cinzoderminicos, Subterrienes ou Senrisumanius se assemelhavam mais no aspecto físico em geral. Diferiam um pouco na coloração da pele ou no formato dos membros e caixa craniana, mas, basicamente seguiam uma mesma estrutura corporal.

A miscigenação era uma característica marcante no meio em que viviam, fato que deveria ajudar a diminuir um problema que, por mais que fosse negado, ainda resistia na sociedade: a discriminação específica. Esse conceito era pouco discutido abertamente, pois o que a natureza biológica não fora capaz de resolver ao longo das eras, a ciência genética tratou de moldar no que se referia às diferenças corpóreas que impediram, no início dos tempos conhecidos, a reprodução interespécies. Entretanto, obviamente, existiam aqueles que defendiam, ainda que de forma velada, a pureza de sua própria representatividade. Digo velada, pois, qualquer afronta ao equilíbrio civil era passível de punição, seja com o exílio nos desertos escaldantes, nas tétricas geleiras, ou, até mesmo, com um decreto de morte por imersão nalgum mar de lava ou por desintegração através de fachos fotoplasmáticos.

No entanto, mesmo com tais advertências, havia aqueles que conspiravam a favor da própria espécie, ainda que fosse raríssimo encontrar um só indivíduo que pudesse afirmar ser realmente puro em sua designação. As ideias segregacionistas eram mais recorrentes entre os Senrisumanius. Ao longo das eras não foram raras as tentativas de golpe ao Governo Central, como a que estava senda tramada naquele momento, com o discurso inflamado de Archmed Ianiquis, o terceiro nome a liderar sua casa familiar.

- É o que estou lhes dizendo meus irmãos de sangue. Nós, Senrisumanius, somos os verdadeiros donos desse planeta. Desde o início dos tempos. Tivemos nosso lar roubado por essas subespécies invasoras que nos corromperam com suas abduções e manipulações genéticas. Nós seguíamos nosso curso evolutivo da única maneira eticamente possível: a natural.

- Saibam vocês, meus irmãos, que houve um tempo imemorial em que não precisávamos manipular moléculas para conseguir alimento. Vejam, a proteína sintética que ingerimos hoje não pode ser comparada à fartura fornecidas pelos imensos rebanhos que criávamos. Sim, irmãos, havia, ao nosso dispor, um sem número de seres cujo único propósito existencial era o de nos servir de alimento. Imaginem os raríssimos tecidos protéicos que vêm hoje dos longínquos rincões selvagens da galáxia, e que são consumidas unicamente pelos privilegiados do palácio, à disposição de cada Senrisumaniu? Vislumbrem os limbos verdejantes e suculentos, ou as doces e nutritivas infrutescências que hoje vêm do solo estrangeiro ao alcance de cada um?

- Pois lhes digo, nosso mundo era assim. O sumo vital que hoje é produzido nos grandes engenhos liquorosos e que nos custam quase todos os recursos percorriam longas e infinitas terras. Não havia fome ou sede. O sumo salgado preenchia nosso mundo, abrigando alimento para cada um de nós.

- Hoje temos o que? A Guarda Governamental protegendo as geleiras? Deixando o sumo natural para os abastados? As raras proteínas naturais que percorrem os cursos gelados apenas para os invasores? Não se esqueçam que quem habita o palácio há longas gerações são os Pleiadiasis, aqueles malditos que iniciaram a nossa desgraça.

- Na época do nosso paraíso, eles chegaram de forma sorrateira, se fizeram passar por loucura e devaneio, enquanto capturavam os nossos e os devolviam como dispositivos prontos para serem inicializados no momento da invasão. A Revolução é uma fraude! Trata-se de um acordo entre essa escória invasora para ficarem com o que é nosso!

- Isso não passa de baboseira, de lendas que nos enchem a cabeça, Archmed. - Interferiu um homem de cabelos e barba brancos.

Seu nome era Telonidus Ishimiditi, o primeiro líder de sua família, e o mais velho da reunião, o que não lhe conferia o direito de tomar a palavra sem que lhe fosse dada permissão.

- Você deveria honrar o posto que lhe foi cedido pelos outros que vieram antes de você e não levantar ideias estúpidas baseadas em fábulas contadas ao redor do fogo. Nosso mundo abrigou, abriga e sempre abrigará os elementos que o compõe. Cada espécie que habita esse planeta sempre esteve aqui.

- Não seja tolo, Telonidus. As diferentes civilizações que ocuparam esse planeta atingiram seu ápice e sua ruína, e as que vieram a seguir também. As histórias que nos restam são orais. Se para você soam como lendas, que assim elas sejam. Mas a realidade é essa. Você querendo ou não estamos prestes a tomar o que é nosso por direito.

- Fique sabendo que nesse mesmo instante, enquanto discutimos inutilidades, nosso agente infiltrado está agindo para o que será considerada, num futuro próximo, a verdadeira Revolução.

A afirmação de Archmed Ianiquis correspondia às ações do jovem Irinieus Klabin, o único de sua família. O rapaz há muito se infiltrara nas cortes governamentais dos Pleiadiasis, os quais, pela legislação vigente, ditavam os rumos do planeta. Era raro um representante de outra espécie participar do dia-a-dia do palácio, pelo menos alguém fora do Conselho, onde poucos membros escolhidos de cada espécie despachavam. Até um passado recente, Telonidus Ishimiditi era um dos representantes dos Senrisumanius nas mesas de discussão, até ser aposentado, por assim dizer.

Entretanto, Irinieus conseguira o direito de circular como bem quisesse pelos corredores do palácio por um motivo diferente do político e, digamos, inapelável. O rapaz tornara-se noivo da filha do Governador Geral de Lanetateria, uma bela Pleiadiasi chamada Ohara. Os representantes dessa espécie ostentavam apenas um nome, o qual jamais era repetido por outro semelhante. Ohara só existiu e somente existirá uma. O casamento firmado funcionaria como uma celebração de igualdade entre todos, como diziam os sagrados cristais de quartzo.

Mas, apesar dos sentimentos legítimos da Pleiadiasi Ohara, o propósito do rapaz era o de conseguir informações que fossem capazes de viabilizar o golpe de estado planejado pelos Senrisumanius.

Basicamente, a ordem no planeta era mantida pelos imensos canhões de plasma espalhados por pontos estratégicos por todo o globo. Os equipamentos apontavam para o espaço e mantinham-se como sentinelas para proteger a população frente a alguma atividade hostil vinda da orla exterior. Algo que não acontecia desde o distante ciclo de 7.135PR, quando uma esquadrilha vinda da constelação de Orion cruzou os céus do hemisfério norte.

As armas Lanetaterienas existiam para a proteção contra uma força extraplanetária, mas o pensamento dos Senrisumanius era a de que nada impediria uma ação interna contra uma insurreição, caso necessário. Irinieus detinha a missão de obter um meio de desativar as lanças energéticas no momento exato numa ação coordenada.

O dia D para a chamada retomada de poder estava marcado para a grande confraternização mundial, onde seria celebrado o início de um novo ciclo, 10.198PR. O feriado religioso era a data mais importante do calendário. Cada habitante em suas respectivas casas celebraria e honraria as tradições e os ensinamentos dos cristais. Seria o momento perfeito.

No entanto, a uma semana da data combinada, a Guarda Governamental irrompeu pelos corredores espelhados do palácio levando consigo Telonidus Ishimiditi à presença do Grande Governante Ohium. O velho insistira para ser ouvido, pois tinha uma revelação valiosa a fazer. Por ter pertencido durante muito tempo à elite da corte, não fora difícil conseguir uma audiência.

- Meu amado Governador Ohium, o que lhe tenho a dizer é grave, muito grave. Uma imensa traição se avizinha. Por muito tempo estive aqui ao seu lado e não posso me calar diante do que estar por vir. Este homem - apontava para Irinieus, que estava postado ao lado na noiva - conspira contra a nossa boa ordem.

Ohium olhou por alguns instantes para o velho sem alterar o semblante altivo e impenetrável de sempre, até que disse:

- Nós já sabíamos que você viria, Telonidus. Irinieus, que logo será um membro da família, me alertou sobre seus planos. Ele me disse que você tentaria encobrir suas intenções. Pois, enquanto estivéssemos preocupados com uma inexistente insurreição, seus amigos da orla exterior investiriam contra nós. Seu crápula! Mostre a ele, Irinieus.

O rapaz retirou do cinturão uma pequena placa de quartzo e disse que todos do conselho já tinham visto os planos do velho de entregar os detalhes das defesas Lanetaterienas aos estrangeiros. Informações valiosas, coletadas ao longo do tempo pelo cargo de confiança e vociferadas pela amargura da rejeição.

- Meu bom Irinieus, prove sua lealdade às espécies irmãs desse planeta. Faça o que é certo.

O rapaz, com um leve sorriso no canto do rosto, sacou o bastão fotoplasmático e, sem hesitar, acionou o gatilho, transformando o corpo do antigo conselheiro numa gelatina de odor fétido.

O plano traçado pelos Senrisumanius havia funcionado. Eles sabiam que o velho Telonidus entregaria a conspiração visando uma recolocação no palácio. A ação de Irinieus de entregar um dos seus soaria como prova de lealdade junto ao Governador. Bastava agora aguardar pela data combinada.

E o dia D chegou acompanhado dos festejos. Em cada canto do planeta cantigas eras toadas, histórias eram lembradas, feitos marcantes e fé no futuro marcavam todos os lares, tudo regado a muita comida e bebida, com suas devidas proporções, obviamente. Nos céus, lampejos de energia multicolorida e espirais de poeira sonora alegravam os corações com seu show. No palácio de governo, uma grande festa se realizava.

Paralelo a todos os eventos e festividades, em cada ponto dos recantos habitados do planeta, diversos grupos de Senrisumanius, ou daqueles que assim se definiam, preparavam-se para um ataque sincronizado, ao sinal de comando de Irinieus.

O rapaz, fazendo uso de seus encantos, conduziu Ohara até a sala de defesa, ambiente que ficava permanentemente lacrado biologicamente. O acesso até o local era impossível fora da alta cúpula do Conselho e a porta só poderia ser aberta pelo fluxo sanguíneo governamental.

- Minha querida, minha amada Ohara. Eu sempre quis ver as luzes de comemoração da passagem de ciclo pelas potentes lentes das lanças energéticas. Vamos, será incrível.

A jovem Pleiadiasi, esguia e alta, de pele tão pálida quanto à própria incompreensão, olhou com seus olhos vítreos para o rapaz e assentiu, ela era incapaz de lhe negar qualquer coisa.

Então, seguindo o protocolo de inicialização, colocou o seu longo dedo indicador da mão direita num receptáculo protegido por uma esfera de energia sólida. Uma negativa na autorização significava a amputação do membro. Mas ela sabia o que fazia, e, logo, com um rápido clique, uma gota do seu sangue quente desbloqueava as travas biológicas da câmara.

O som, embora ínfimo, pareceu ribombar pelas paredes metálicas de modo estrondoso. Mas o que eles e todos no palácio e ao redor do globo ouviram não fora causado pelas engrenagens de segurança da porta.

Naquele mesmo instante, explosões incorriam em diferentes partes da abóbada celeste. Eram imensas naves surgidas não se sabia de onde. As estruturas brotavam num piscar de olhos. Elas saltavam de um local desconhecido para os céus do planeta.

Alertas sonoros e luminosos soavam em cada parte do globo, concorrendo com os dispositivos explosivos que iluminavam os céus, independente do fuso horário. As legiões armadas dos Serinsumanius, por um momento, não sabiam o que fazer. Porém, perceberam que aquele era o momento mais do que apropriado para tomar o poder, ainda que os canhões não fossem desativados, pois de qualquer forma as ações estariam fixadas nos céus.

Assim, as principais cidades do planeta eram invadidas por terra pelas tropas dos senrisumanius e pelo ar pela armada desconhecida. Os gigantescos painéis de projeção, que até então transmitiam as festividades ao redor do globo, passaram a relatar ao vivo a sucessão de cenas de horror e morte.

A Guarda Governamental combatia com afinco as tropas que invadiam o Palácio, mas sem conseguir conter uma fileira armada que seguiu decidida até as salas de defesa. O líder Archmed trazia sob seu jugo o próprio Governador, utilizando o seu sangue para desbloquear as barreiras biológicas.

Ao chegar à cabine de comando correspondente ao do Governador de Lanetareria, no exato local onde estavam Irinieus e a noiva, o insurgente, ao ultrapassar a tranca de bloqueio, disparou contra a cabeça do refém, pois não precisaria mais dele.

- Vencemos, vencemos - Bradava com euforia - deixe-me tomar posse dos canhões para debelarmos a invasão estrangeira.

A jovem Ohara, com seus grandes olhos de coloração translúcida, mirava o amado com um semblante de medo e desesperança. Ela sabia que seria a próxima. Que logo seu sangue mancharia o assoalho metálico ao lado do corpo do pai.

Foi só então que Irinieus Klabin percebeu o que seu coração já lhe dizia, mas o que a sua mente revolucionária insistia em negar: ele não conseguiria mais viver sem aquela Pleiadiasi. E, para isso, seria preciso vencer a ameaça que surgia em todas as suas formas. Não apenas a que vinha dos céus, mas, sobretudo, a que se instalava diante dos seus olhos.

Decidido, sacou mais uma vez o bastão de energia fotoplasmática e efetuou uma rajada tripla e certeira, colocando seu antigo líder e os dois soldados sem vida no chão. Em seguida, correu para os painéis de controle a fim de contratacar.

Com os acessos neurais acoplados à sua mente por um capacete infraencefálico, ele conseguia perceber em seu interior cada estrutura hostil que disparava contra as cidades Lanetaterienas. Ele também via membros de diferentes espécies morrendo abraçadas enquanto as chamas vinham dos céus.

Ali, naquela cabine de comando, ele entendeu a razão do seu próprio existir. Ele não seria mais o único da sua família, pois estava convicto de que ao lado de Ohara uma nova dinastia teria início.

Assim, da cadeira de controle que seria do Governador Geral, suas células conectaram-se aos comandos cibernéticos da máquina e, de acordo com sua vontade, as gigantescas lanças fotoplasmáticas de energia crua despejavam sua ira não só contra as estruturas que manchavam o céu de escuro, mas também contra as hordas de seus semelhantes que ainda insistiam em tentar a revolução.

As imensas telas do palácio, as placas de transmissão mundial a, até mesmo, os receptáculos individuais passaram a transmitir, ao vivo, a maior batalha que Lanetateria já tinha visto.

A ação de Irinieus permitiu que os outros conselheiros, representantes de suas próprias espécies, chegassem até as cabines de comando que lhes correspondiam e manipulassem os demais canhões de energia, tornando o contragolpe efetivo em sua totalidade. Os cidadãos do mundo, irmãos em igualdade de espécies, testemunharam a mais perfeita exibição de defesa que a história já havia registrado.

Assim, no fim do terceiro dia, um novo mundo surgia. Um mundo livre da dominação interna, externa ou das próprias convicções. Os cristais de quartzo certamente guardariam para as vindouras gerações os registros da história. Mas o que não era passível de garantia correspondia à incerteza acerca da capacidade de leitura, de interpretação ou mesmo de tecnologia para uma correta reprodução dos fatos nesse futuro próximo, afinal de contas as civilizações surgem e desaparecem. Evoluem e mínguam. Atingem o seu máximo e encontram a inexistência, deixando apenas um rastro da lembrança do que um dia foram. Tornam-se lendas do seu próprio futuro.

Sávio Feudazol
Enviado por Sávio Feudazol em 15/02/2021
Reeditado em 15/02/2021
Código do texto: T7185212
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