O Julgamento

Estamos no quinto dia do julgamento.

A voz monótona do computador central soou no ambiente. – Todos em pé para a entrada do meritíssimo juiz. O robô servo-judice entrou flutuando a aproximadamente trinta centímetros do chão, durante o movimento entortava um pouco para a direita como se fosse virar.

- Podem sentar-se, - ordenou com sua voz grave e metálica. – Está aberta a continuação da sessão do império contra João Antônio Marmeleiro, vulgo Toinho come-quieto. Sei que todos estão cansados e tentaremos ser breves. Já ouvimos as acusações e a defesa, fica definida a acusação fundamental que o Sr. Marmeleiro, oriundo das Minas Gerais, no terceiro planeta de um sistema solar dos subúrbios da via láctea, acusado de atos libidinosos contra o (a) herdeiro (a) da dinastia Har, de Rigel IV. Levamos em conta as diferenças de culturas, tradições, costumes e leis, o que torna bastante complexo um veredito justo, buscamos a jurisprudência do referido ato.

Toinho sentindo, num acesso de clarividência, a possibilidade de uma sentença negativa, perde a compostura e grita:

- Jurisprudência meu ovo.

- Como? - Indaga o juiz robô.

- Essa bicha louca, que não é homem nem mulher, foi ela quem me atacou.

- Está claro que os herdeiros da dinastia Har são hermafroditas, não entendo onde isso muda a questão.

- Muda tudo, não dá para entender? Ela lambeu minha orelha e eu passei a mão na bunda dela. E como funciona essa jurisprudência? Já tiveram outro mineiro sendo julgado.

- Na verdade não Sr. Marmeleiro, o (a) herdeiro (a) o cumprimentou com a maior formalidade que é a lambida auricular e o sr. desrespeitosamente apalpou seus reais úteros e sobre a jurisprudência, nunca julgamos um... hãn...mineiro, seja lá isso o que for, mas tivemos um altariano gelatinoso, que expunha suas antenas dorsais em público. Quase a mesma coisa. – E também o vegano que saia na rua sem as escamas, fala rindo o computador central.

- E o que aconteceu com eles, foram inocentados?

- Não, foram julgados culpados, cortamos as antenas do altariano e colamos com superbonder as escamas do vegano.

- humm...isso não é bom. Principalmente esse lance de cortar.

- Deseja dizer suas últimas palavras antes do veredicto final Sr. Marmeleiro?

- Claro meritíssimo, - fala Toinho, engolindo em seco e planejando com a velocidade do pensamento como enrolar o metálico magistrado.

- Tudo começou num dia sem luz quando o Senhor disse: - Fiat Lux!

- Menos Sr. Marmeleiro, menos - interrompe o robô juiz.

- Certo, certo, o início do problema atual foi pelos idos de 1970. Estava em minha chacrinha nas Minas Gerais, num corguinho, dando um banho na minha cabritinha Zuleica, quando fui abduzido pelos malignos zurkiss. Das Minas Gerais voaram direto ao planeta Zurk onde eu seria submetido às piores torturas e possivelmente vivisseccionado.

- Consta na sua ficha que quando chegaram ao planeta Zurk, após a referida abdução, o Sr. já havia tomado posse da nave, ganho em transações ilícitas com jogo de azar, denominado truco.

- Verdade meritíssimo, eles eram uns verdadeiros papalvos, nem existe a palavra blefe em seu idioma. Então, continuando. Do planeta Zurk vim para Rigel IV.

- Consta em sua ficha que roubou uma astronave de passeio, ultra luxo, para essa viagem.

- Mas meritíssimo, os Zurkiss recusaram a pagar o que me deviam, e a justiça lá é ainda mais atrasada que o próprio planetinha.

- Segundo o catálogo jurídico planetário, a justiça em Zurk é realizada por um robô servo-judice da minha serie; quase um irmão gêmeo meu.

- Bom, acho que isso não é tão importante, não é mesmo? Deixemos esses detalhes e voltemos ao que importa. Chegando em Rigel lV, meus pilotos me abandonaram a minha própria sorte no deserto Kaagolp, quilômetros de distância da capital e fugiram com minha nave.

- No seu relatório policial, foi referido o pouso da nave numa praça central da capital, incorrendo em uma multa que não foi paga, visto todos evadirem-se do local do delito. Sendo a nave confiscada pela administração local.

- Exatamente magistrado, era o que eu dizia, minha nave me foi tomada. Fiquei nesse planeta ao acaso, sem sequer ter ideia de onde estava, por sorte os pilotos zurkiss antes de fugirem haviam me dado um tradutor universal para que pudéssemos conversar, ou estaria como um surdo-mudo num planeta estranho. Felizmente acabei encontrando uma comunidade que me socorreu.

- O Sr. se refere aos antros de jogos do submundo rigeliano?

- Pode ser Sr. Juiz, isso é questão de semântica. Fui bem aceito pelo grupo. Aprendemos muito juntos. Iniciei o truco estelar e recebo proventos dessa modalidade junto ao Bordeis & Jogos Inc., com isso nada tenho a reclamar. São pessoas honradas e pagadoras de seus débitos.

- O Sr. deve ter ouvido as acusações secundarias Sr. Marmeleiro, ganhos com jogos de azar não registrados junto a administração...

- Isso é inverídico meritíssimo, - interrompe Toinho, - tentei regularizar o registro, mas não existe formulário para truco...

- Por favor Sr. Marmeleiro, se continuar interrompendo serei obrigado a expulsá-lo do recinto. E também como acusação secundaria, consta zoofilia.

- Protesto meritíssimo. Tudo que aconteceu com Zuleica, minha cabritinha, foi consentido e por vontade dela.

- Não estou me referindo a essa... hãn... Zuleica, mas aos atendimentos particulares que passaram a ocorrer na Bordeis Inc. depois da sua chegada, com a utilização sexual de seres incapazes, os polvos rigelianos, não dotados de inteligência.

- Em minha defesa meritíssimo, os polvos rigelianos tem mais inteligência que qualquer morador de Capinzal Seco, que é o município onde fica minha chacrinha, nas Minas Gerais. E com aqueles oito tentáculos levam qualquer um a loucura... fiquei impressionado de nenhum rigeliano ter pensado nisso antes, sabe, no fundo vocês são bem primitivos. E voltando a acusação, a bicha real estava nas instalações da Bordeis Inc., então, o que esperava?

- O (A) herdeiro (a) de Har é juridicamente dono (a) do planeta, logo tem todo direito de encontrar-se em qualquer local do mesmo, sem ser questionado (a). Declaro então o veredito final: Considerado culpado da acusação primaria. Considerado culpado de todas as acusações secundarias. Considerado culpado de desrespeito junto a esta suprema corte. O Senhor João Antônio Marmeleiro, vulgo Toinho come-quieto, está condenado a reclusão perpétua no sistema prisional rigeliano, sendo imediatamente conduzido à ilha dos espectros, para que seja executada a sentença.

Ao bater o malhete, o ferroso juiz aciona todos seus bancos de dados para identificar o significado do gesto, apontando o dedo médio, executado pelo Sr. Marmeleiro ao ouvir a sentença, sem chegar a uma definição plausível do mesmo.

Encerrado o julgamento, jamais passou pelos filamentos cerebrais do servo-judice que logo essa situação seria totalmente revertida. Em menos de um ano recebe um documento com o seguinte teor:

“Meritíssimo servo-judice

Eu, abaixo assinado, João Antônio Marmeleiro, vulgo Toinho come-quieto, ditador supremo da ilha dos espectros, legalmente eleito pela população ex-carcerária, atualmente cidadãos insulares, venho através desta, reivindicar a independência desta ilha do governo planetário de Rigel lV, passando a seguir ser denominada Nova Minas Gerais, colônia do terceiro planeta do sistema solar do extremo da via láctea. Informamos também que as bombas de destruição planetárias encontradas no sub solo da ex-prisão, encontram-se em perfeito estado e funcionais e que teremos o maior prazer em mantê-las sob nossa guarda, evitando assim um possível acidente de nível planetário.

Atenciosamente,

Ditador Supremo João Antônio Marmeleiro, vulgo Toinho come-quieto.

Nilo Paraná
Enviado por Nilo Paraná em 12/02/2021
Código do texto: T7182408
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