Religião das Estrelas

(Para o melhor entendimento recomendo ler primeiro "planeta paraíso")

1. A Igreja Imperial.

Local: Terra. Capital: Vaticano. Ano: 2643. Salão principal de reuniões. 398 pessoas.

Todos se calaram com a entrada do chefe do priorado da Igreja Imperial Galáctica. A imensa sala semicircular em forma de anfiteatro comportava toda a elite da igreja. Doze cardeais, cento e vinte oito prelados referente a cada planeta do Imperium Dei, também cento e vinte e oito arcebispos, cada qual acompanhado de um bispo auxiliar. A atmosfera era de austeridade. Uma pesada mesa circular estava localizada no centro da sala com treze cadeiras de ébano de espaldar alto e nenhum conforto. São os lugares reservados ao prior e ao colégio cardinalício. Os demais membros do clero tomavam lugar nas cadeiras do anfiteatro. Ao lado do sumo pontífice, e um pouco trás, fica a pequena mesa de seu secretário particular. Em perfeita adequação ao ambiente, o sumo pontífice veste-se com uma túnica de algodão grosseiro tingido de negro. Seu único adereço é um pequeno crucifixo de ouro preso ao pescoço por um cordão de couro. Seu porte é altivo com dois metros e cinco centímetros de altura e uma musculatura que não condiz com seus oitenta e dois anos. Mas, o que impressiona ainda mais são seus olhos, negros, argutos como de uma águia e impassíveis como de uma serpente. Todos juntos se levantam em sinal de respeito (e temor). Andrea, com vinte e oito anos, um dos mais jovens bispos, acompanhava mecanicamente os movimentos de seu arcebispo e do prelado. Seu cabelo escarlate sobressaia entre as cãs. Sua face tomou a cor do cabelo quando o Prior olhou diretamente em seus olhos. Por alguns segundos sentiu-se invadido, devassado. Quando todos se sentaram, suas mãos estavam encharcadas de suor. Pietor, seu arcebispo, era baixo, gorducho e calvo. Jamais se comprometia e o prelado por sua vez, não inspirava força, mas apatia e desânimo decorrente da avançada idade. “Um bom ganho é um ganho sem suor”, era seu lema.

- Nós somos a elite da galáxia, - bradou o supremo sacerdote, - nós somos os representantes da verdadeira religião. – Aguardou alguns segundos para todos absorverem o impacto das afirmações e continuou. - Quase duzentos anos se passaram da transferência do poder do Conselho Planetário Colonial para a Igreja Imperial Galáctica. Isso aconteceu apenas com política, sem derramamento de uma gota de sangue.

“Isso se não contar os assassinatos orquestrados de milhares de opositores em quarenta e cinco mundos, que aconteceram na noite negra, pensou Andrea, ciente que isso não constava nos documentos históricos”.

- Em duzentos anos, quase triplicamos o número de planetas do Imperium Dei. – Prosseguiu o sumo pontífice. O segredo desse sucesso não é a aculturação dos nativos, mas a aceitação da verdadeira Fé. Só a Fé leva ao pleno convívio com o Criador e sua Igreja. E é isso que eu venho pedir a vocês... pedir não, exigir. O que o Salvador quer é o que eu quero e o Salvador quer mais planetas no Imperium Dei. O Salvador quer o crescimento do império do seu pai. Todos receberam o documento explicativo. Leiam e dúvidas serão dirimidas até amanhã. Estejam com Deus. Um retorno em paz aos seus planetas. – Levantou-se e saiu seguido de seu secretário.

Assim que a porta fechou atrás do prior, a balburdia tomou conta do salão. Todos discutiam, falando alto. Andrea, abstraído do barulho que reinava na sala, abriu o envelope pardo com as instruções e imediatamente notou um convite, que na realidade era uma intimação. Reunião com Prior hoje – dezoito horas. Outros papéis mostravam as metas de crescimento juntamente com propostas e normas para tal objetivo.

Andrea piscou seu relógio ocular, eram 17h15min não havia tempo sequer para ir ao dormitório e tomar um banho. O prelado resolveu aguardar o horário da reunião no refeitório. E com grande ansiedade chegaram as 18h00min no gabinete do Prior. Foram atendidos por uma secretaria bastante jovem que os convidou a sentar no vestíbulo e aguardar. Passaram-se trinta e cinco minutos quando o próprio sumo pontífice abre a porta do gabinete e os convida a entrar.

- Por favor, sentem-se, - indicou três confortáveis poltronas e ele mesmo sentou-se à frente dos três. - Imagino que estejam se questionando sobre o motivo desta reunião, prelado Galmori, arcebispo Pietor e bispo Andrea, planeta Nova Roma, quadrante 45.

Todos assentiram com a cabeça.

- Vocês ouviram a preleção. Todos sairão daqui hoje com grandes incumbências, mas a de vocês será a mais importante. Vocês devem estar a par do planeta Paraíso. Fica no seu quadrante a apenas algumas centenas de anos-luz. O planeta está em quarentena há duzentos anos. Mas chegou a hora de trazê-lo ao império. Essa é a sua missão.

- Vossa Santidade fala do planeta dos mentais? Achei que fossem apenas lendas, - murmurou o prelado. – Se são verdadeiras as histórias, será impossível executar a colonização. - Imediatamente arrependeu-se da afirmação, diante do olhar glacial do prior.

- Vossa Excelência questiona os desígnios do Priorado Imperial?

- Não, claro que não Vossa Santidade. – Balbucia tremendo, o prelado, com suor escorrendo em bicas pela sua testa.

- E você bispo Andrea, também pensa como o prelado?

Ele hesitou por alguns segundos, novamente o olhar do prior o intimidou.

- Então bispo, não tem opinião a respeito? – Repetiu o prior.

-Tenho, Vossa Santidade. Acredito que todos os ditames do Criador são possíveis. – Inicialmente vacilante, à medida que falava, Andrea se tornava mais confiante e eloquente. - Com o desenvolvimento da neuroglioproteina (NGP), talvez possa ser mais simples do que parece. A inoculação, embora perigosa, equilibraria a situação, teríamos homens com a mesma conexão mental que poderíamos chamar de telepatia básica, com a capacidade de saber as aspirações e desejos dos nativos e a partir daí trazê-los à verdadeira religião.

O Primeiro Prior mantém-se calado por alguns instantes e pergunta de chofre: - Qual a taxa estimada de mortalidade com a inoculação?

- Em torno de oitenta e oito por cento, Senhor.

- Aceitável. Tome as providencias. Seu trabalho será supervisionado pelo Prelado Galmori e por um cardeal que designarei para acompanhá-los. Não haverá problema com despesas. Terá mil monges guerreiros voluntários, o suficiente para a criação de um esquadrão de cento e vinte mentais. Em um ano, eu quero a solicitação do planeta Paraíso para ingressar no Imperium Dei, em cima da minha mesa. – Falando isso ele levanta-se, sinalizando que a reunião terminou.

Da passividade e submissão diante do Prior, o prelado passou à fúria assim que saíram do gabinete. Seu corpo senil tremia de ódio. – Andrea, seu imbecil. Sua carreira acabou aqui. Você não terá nem uma paróquia quando isso acabar. O Prior não tolera fracasso.

- E quem disse que fracassarei? – Replicou o jovem bispo. – O Prior foi muito esperto, Santidade, ao colocá-lo como um dos supervisores, o Senhor estará diretamente ligado ao sucesso ou fracasso da missão. E, prometo, o senhor receberá a glória desse triunfo.

Galmori engoliu em seco e nada respondeu.

2. De Volta à Nova Roma.

Do alto da torre da abadia, Andrea observa o pôr do sol. A cidade do Carmo, capital de Nova Roma, é banhada pela luz escarlate com reflexos dourados. O entardecer é uma das poucas horas em que está livre da presença (ou vigilância) do “cão de guarda” do prior. O cardeal Maximiliam tornou-se sua sombra nesses últimos seis meses, desde que retornaram da Terra. Volta sua atenção para a janela de madeira grosseira com grandes cravos. O quarto espartano é seu refúgio. Apoiado no peitoril, pode observar ao longe, como um cancro, a construção negra do centro de pesquisas, que se destaca da cidade colorida. Pensa no que vai fazer amanhã. Sua rotina foi totalmente mudada. Acorda com os primeiros raios de sol e após um frugal desjejum, caminha até o centro de pesquisas. Por onde passa é saudado pelos cidadãos, porém sua irritabilidade começa quando na porta do centro, invariavelmente, o espera a figura esguia e pálida do cardeal Maximiliam. Seu rosto é anguloso e com o cabelo loiro cortado à escovinha, mais parece um oficial militar do que um clérigo. Seguido pelo cardeal passa o dia supervisionando os trabalhos e retorna à abadia ao final da tarde. A beleza da vista não tira a preocupação de Andrea, que se afasta da janela e senta-se na única poltrona confortável do quarto/escritório. Aproveitando a serenidade do momento, repassa os planos. “Estamos bastante atrasados”, pensa. Ao contrário dos estudos, a taxa de mortalidade da NGP está em torno de noventa e cinco por cento. Dos primeiros quinhentos monges voluntários, sobreviveram apenas vinte e quatro. A nave que será usada para o contato está saindo do projeto para o departamento de produção. A maior dificuldade foi a concepção do bloqueador mental, ainda não concluído. Os tripulantes não inoculados precisarão ser protegidos quando estiverem no planeta. Enquanto faz o possível para acelerar a produção da NGP, o jovem bispo aproveita para estudar relatos sobre o planeta paraíso. Pilhas de relatórios encontram-se em suas prateleiras. Paraíso é um planeta sui generis. Extremamente rico, porém sem exploração mineral em escala industrial. Agricultura e pecuária de subsistência. Os nativos têm uma capacidade mental jamais encontrada em nenhum povo na galáxia. A habilidade de perceber os desejos de outras pessoas, associados à sua disposição de realizá-los, em conformidade com sua crença espiritual, torna-os extremamente perigosos. Além disso, “aparentemente sem desejos”, esse será o maior entrave para sua doutrinação. O que podemos oferecer a quem não deseja nada?

3. Últimos preparativos.

Terminadas as últimas inoculações, Andrea está com um esquadrão de quarenta e nove monges guerreiros mentais. É muito menos do que o esperado, mas foi o máximo possível e terá que bastar. A pressão e cobrança do Cardeal Maximiliam e do prelado Galmori, deixam Andrea casa dia mais tenso. Pelo cronograma restam apenas quinze dias e os monges mentais ainda precisam ser treinados.

Dez dias se passam e apenas quarenta e cinco monges sobreviveram aos treinamentos. A nave batizada de “Dio Cane” encontra-se concluída no espaçoporto. O bloqueador mental foi instalado em toda a nave, mas é apenas um protótipo que não foi testado.

Na véspera da partida, o Cardeal apresenta ao Bispo um documento que o nomeia comandante da expedição.

- Não, - vocifera Andrea, - nem pensar. Ou eu comando a expedição, ou eu não participo dela. Me dediquei a esse projeto desde seu início, não é justo entregar-lhe agora o desfecho da missão. Seu rosto lívido de raiva encarava o cão de guarda do prior e este sem emoções, ciente do seu poder, apenas entregou o papel timbrado do Imperium Dei.

- Leia o documento bispo. A ordem é direta do Sumo Pontífice. Vai desobedecê-la?

- Não, não desobedecerei. Andrea engole sua ira e continua: - A nave é sua, cardeal. Faça uma boa viagem.

- Não leve para o lado pessoal reverendíssimo. Leia o documento. Sua presença é exigida. Apesar de eu ser o comandante da nave, o senhor será o coordenador chefe da empreitada.

Definidas as posições, só resta ao bispo aceitar sua derrota e iniciar os preparativos da viagem. No dia seguinte a nave decola e cinco dias depois está pousando no planeta Paraíso.

4. A Catequização.

Sentado em sua poltrona predileta, com o escritório à meia luz, o Sumo Pontífice, primeiro prior da Igreja Imperial Galáctica, começa a ler dezenas de relatórios recebidos nas últimas horas.

Uma nova igreja, intitulada “Servos da Luz” espalha-se por toda galáxia. Estima-se que ao menos um “servo” tenha sido enviado a cada planeta do Império. Os relatórios que chegam de todos os planetas do Imperium Dei são similares e pedem instruções. Os servos são persuasivos, ninguém resiste aos seus ensinamentos. Espalham paz e caridade. Doam-se a quem deles precisa sem esperar retorno ou aceitação de seus dogmas. E por isso mesmo, expandem-se como um vírus. Nada pedem, vivem de doações espontâneas e, diga-se de passagem, não são poucas. Aparentemente um servo ruivo comanda as operações planetárias, correm boatos que já pertenceu à Igreja Imperial. A Inteligência estima que em seis meses terão convertido noventa e oito por cento do Império.

Quinze dias antes: A nave Dio Cane pousa em Paraíso e é alegremente recebida pelos nativos. O contato com os monges mentais é imediato. Calados, trocam informações psiônicas. Dentro da nave, protegidos pelo bloqueador, Andrea, Maximiliam e os pilotos observam sem poder agir. Trinta minutos se passam e os monges voltam à nave. A ameaça não é mais externa. Os servos deram o que os monges sempre desejaram, a verdadeira religião. E os monges deram o que os servos queriam, a possibilidade de disseminar a verdade. Os quarenta e cinco monges “mostram” a verdade a Andrea e Maximiliam. Telepaticamente não se pode mentir. Assim os monges receberam a verdade dos servos, e assim partilharam com o bispo e o cardeal. Do planeta Paraíso partem para a Galáxia.

Nilo Paraná
Enviado por Nilo Paraná em 10/02/2021
Reeditado em 11/02/2021
Código do texto: T7181313
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