Biômatos

Que os biômatos são úteis à toda a Mecanicidade não há dúvida alguma! Eles são moles, adaptáveis a espaços apertados, deformáveis, qualidades que claramente faltam a todos nós mecanos com nossos corpos metálicos e rígidos. São capazes de realizar trabalhos que nós mecanos simplesmente não poderíamos fazer! De onde vieram os biômatos? Bom, suas origens remontam há eras bem remotas, onde eles nem eram assim tão flexíveis e moles. Os primeiros protótipos de biômatos surgiram da necessidade de fabricação das placas fotossintetizantes. Apenas tecido inerte, uma superfície microcópicamente compartimentada em células, capaz de captar a energia dos raios solares e, usando-a para combinar o gás carbônico abundante na atmosfera com água, sintetizar glicose. A glicose era um componente muito importante para as células de energia de nós mecanos, uma forma fácil de obter energia na forma de diferença de potencial elétrico renovável necessário para alimentar nossos complexos circuitos eletrônicos. E conseguir esta energia gratuitamente de nossa estrela central, com uma simples manipulação química de elementos químicos abundantes no planeta? Bom demais para não ser aproveitado!

Havia um efeito colateral indesejado neste processo: a liberação do tóxico oxigênio na atmosfera! Sua concentração aumentava cada vez mais à medida em que as placas fotossintetizantes se multiplicavam pelo planeta! O oxigênio se combinava facilmente com os metais originais dos primeiros mecanos, tornava frágeis seus corpos. Mas... isto estava previsto! Bem como sua solução! Ligas diferentes de metais, dopagem com quantias ínfimas de elementos raros especiais, que garantiam às novas gerações de mecanos resistência ao oxigênio atmosférico cuja taxa só crescia! E assim as coisas aconteceram naturalmente, as placas fotossintetizantes se espalhando pelo planeta, o oxigênio aumentando, e os novos mecanos se adaptando e ficando resistentes à atmosfera tóxica, cada vez mais repugnantemente oxidante... Mas não havia solução melhor: usar glicose, produto das placas fotossintetizantes, como eletrólito de nossas baterias era eficiente demais para não ser aproveitado. E sem as desvantagens enormes de ácidos usados nos acumuladores de mecanos de gerações mais primitivas!

Ah, isto foi há tanto tempo!!! Mesmo com os precisos registros digitais dos eventos, gravados em nossas bibliotecas nas nuvens, ainda era difícil mensurar a magnitude de tais intervalos. Seria consequência da perda de informação, que todo mundo sabia ter acontecido mas todos evitavam comentar, quando as bases de processamento de 1024 bits foram migradas para 2048? Talvez... Quem poderia garantir? Todos os mecanos que haviam presenciado tal evento já haviam sido reciclado nos dias atuais!

Ninguém sabe ao certo quem teve a primeira ideia de fazer as células das placas fotossintetizantes se multiplicarem sozinhas. De lhes dar a capacidade de fazerem cópias delas mesmas, dispensando a supervisão mecana neste processo. "E quem as faria parar?", foi a grande dúvida que percorreu toda a Mecanicidade espalhada sobre a superfície do planeta, quando a ideia foi proposta. "Elas param quando se esgotam os recursos disponibilizados para sua multiplicação, é assim que as controlaremos." A resposta se espalhou por todas as individualidades mecanas da Mecanicidade, foi acatada e aprovada por maioria esmagadora, e foi concretizada! As células dos tecidos fotossintetizantes receberam todas as instruções necessárias para se duplicarem, enquanto encontravam recurso para tal, e com o espalhamento exponencial de tecido fotossintetizante pelo planeta ocorreu um pico de oxigenação na atmosfera. Na época nós mecanos já estávamos protegidos disto, por termos alterado características químicas das ligas metálicas que eram nossas matérias primas para reprodução. Não nos importamos muito com o oxigênio do planeta chegando a taxas de 30% em relação ao inerte nitrogênio, e quase eliminando todo o gás carbônico.

Sem seu efeito estufa, o planeta começou a esfriar rápido. O gás carbônico era o principal responsável por ele, mas exponencialmente convertido em glicose pelas placas fotossintetizantes foi desaparecendo rápido da atmosfera. Os mecanos não haviam previsto isto. Estranho, pois achávamos sermos capazes de prever tudo! Existe um jogo bem antigo, cujo nome está registrado em nosso subconsciente coletivo: XADREZ! Todo mecano na superfície do planeta o conhece, sabe suas regras, e o joga muito bem se precisar fazê-lo! Mas nem imaginamos de onde ele surgiu. Qual seu propósito. Uma matriz posicional de dimensão 8x8 preenchido inicialmente por uma configuração inicial de entidades denominadas "peças". Peças pretas e peças brancas, claramente antagônicas. Isto fica evidente nas regras do jogo, conhecida instintivamente por todo mecano! Ele foi projetado para que um dos lados vencesse! Nada de cooperação, construção de um bem maior: um ganhava e outro perdia, simples assim! Haviam também situações de empate que eventualmente aconteciam, mas parece que não eram desejadas. As peças recebiam denominações estranhas, "reis, damas, cavalos, torres, bispos, peões", de significados que fugiam ao entendimento de qualquer mecano. Mas claramente cada uma seguia suas próprias regras, exceto talvez os peões que poderiam assumir identidades especiais se conseguissem ocupar as linhas opostas de seus respectivos lados sem serem apanhados. O fato é que ninguém mais sabia a quem servia este jogo, ou mesmo quem os jogava. Era consenso comum que era simplesmente um exercício algorítmico, um teste mental semelhante ao processo de fatoração de números inteiros em fatores primos, ao qual nenhum mecano conseguia também identificar o propósito.

Tanto faz o propósito do tal xadrez ou da fatoração prima. Talvez nem tenham mesmo propósito! Sejam só exercícios para testarmos algo maior, a capacidade de deduzirmos algoritmos para prever eventos complexos! O fato é que, sim, previmos o primeiro aumento de oxigênio na atmosfera, mas não o segundo, depois de dotarmos as células das placas fotossintetizantes da capacidade de auto reprodução. Nos repreendemos por bastante tempo por isso, reavaliamos nossas falhas, nossa capacidade de refazer os algoritmos primordiais, e... Continuamos experimentando com os biômatos!

O aumento do oxigênio não nos afetou em nada, nossas ligas eram superestimadas, suportavam esta oxigenação exagerada. A redução drástica da temperatura atrapalhou um pouco, mas podíamos compensá-la com a maior oferta de glicose das placas. Quando a temperatura média do planeta caiu para 27ºC (uma escala de temperatura antiga cuja origem não sabíamos mais), percebemos que estava baixa o bastante para testarmos outro tipo de biômato: os biômatos moles e móveis, que consumiam oxigênio e a glicose produzida pelas placas fotossintetizantes! Estaríamos criando algo para competir conosco por energia? De forma alguma! Subestimamos as placas fotossintetizantes, elas se multiplicavam sem parar! Produziam mais glicose, numa quantidade que já éramos incapazes de consumir, e espalhava o tóxico oxigênio pela atmosfera do planeta de forma que já não conseguíamos mais controlar! Os primeiros biômatos de células animais, apesar de inicialmente inúteis, eram indispensáveis para se retomar o equilíbrio químico da atmosfera! E, de qualquer forma, eles já estavam previstos! Nossa inteligência mecânica já havia planejado tudo.

Os biômatos animais eram mais complexos que as placas fotossintetizantes. Quando decidimos torná-los úteis para alguma coisa, precisamos desenvolver um processo para construí-los! Inicialmente camadas de pele e de músculos. Tecidos que precisavam ser produzidos em separados e depois reunidos numa unidade funcional, que passamos a chamar de ORGANISMOS. Vimos que tecido epitelial e músculos eram inúteis sem algum controle, e começamos a inervá-los com tecidos nervosos. Tal tecido nervoso, com a experiência, mostrou precisar de alguma organização, um bulbo central de controle. Fizemos biômatos que chamamos de moluscos, bastante úteis e moles para nos ajudar a fazer algumas coisas que não exigiam muita inteligência. Mas... eles só funcionavam bem na água! Tínhamos necessidade de biômatos capazes de serem úteis na superfície seca. Para isto precisamos desenvolver estruturas rígidas ricas em cálcio no centro dos músculos, que chamamos de OSSOS. Não sabemos ao certo como, mas os nomes dessas coisas iam simplesmente surgindo! Subconsciente arquetípico de nossos algoritmos primordiais?

Dava trabalho criar peles, músculos, nervos e ossos, e depois reuni-los em unidades funcionais. Às vezes dava errado. Quem estou enganando? QUASE SEMPRE dava errado! Este processo de criar as partes separadas e depois juntá-las parecia funcionar bem para nós, os mecanos, mas não era o melhor método para construir biômatos! Alguém teve então a ideia: uma célula de pele só pode se reproduzir, multiplicar-se em outras iguais, na forma de mais peles? Um músculo só pode se reproduzir em outras células de músculo? Um neurônio em outros neurônios? E se... reuníssemos a informação de todas elas em células iniciais indiferenciadas, e as instruíssemos a inicialmente se multiplicar indiferenciadas numa blástula, apenas copiando a informação completa que usariam depois, para se diferenciarem, cada qual seguindo instruções químicas hormonais dos locais em que estariam localizadas, para cada uma das especializações? Um algoritmo capaz de desviar condicionalmente suas instruções dependendo de como decodificava o ambiente em que estava no momento? As células epiteliais se especializando se estivessem na superfície da blástula, os músculos ao identificarem que estavam debaixo da epiderme, e os ossos ao perceberem estarem no centro da estrutura? Com células nervosas se desenvolvendo entre algumas das musculares, escolhendo aleatoriamente uma região interna como centro de controle? Como garantir que ela fosse o centro? Enviando uma informação química para células vizinhas, sinalizando que elas não deveriam tentar se especializar num bulbo nervoso! Simples assim! Simples?

Haviam muitas variáveis envolvidas para fazer isto dar certo. Mas, sim, os engenheiros biológicos da época conseguiram! Haviam vários biômatos espalhados pelo planeta, hoje em dia praticamente indispensáveis aos mecanos, fazendo o trabalho chato, repetitivo, que os mecanos se recusavam fazer! Não era digno de seus preciosos cérebros mecânicos, comportando algoritmos resultantes de milênios de aperfeiçoamento por seleção digital, se ocuparem de tais coisas! Quem trocaria a glicose gasta de nossas baterias de eletrólitos? Nós mesmos? Não!!! Qualquer biômato era capaz de realizar esta tarefa!

Alguns mecanos tentaram experimentar uma doida experiência de se unir a biômatos. Sim, biômatos não eram muito inteligente, apesar de maleáveis e úteis em várias situações. E se emprestássemos a eles nossas inteligências? E se, no nosso processo de criar novos mecanos, fabricássemos apenas o cérebro mecânico, conectando-o de alguma forma nos corpos de biômatos, orgânicos?

Muitos tentaram, mas a interface nunca foi muito boa. Lenta demais... Processos eletroquímicos entre seus neurônios pareciam uma forma ineficiente demais de transmitir informações, de processar algo. De fazer coisas inteligentes.

E é onde chegamos agora. Espero que abram suas mentes, por favor! Liberem seus canais algorítmicos para aquilo que vou propor agora: e se pudermos criar um bulbo neuronal complexo o bastante a ponto de ser capaz de desenvolver algum tipo de IB, ou Inteligência Biológica? Desenvolvemos biômatos capazes de desenvolverem locomoção complexa e equilíbrio dinâmico com circuitos neuronais projetados em seus bulbos cerebrais, não é mesmo? Algo que nós conseguimos com algoritmos complexos, envolvendo derivadas de variáveis mecânicas que chegam à terceira ordem de derivação, capazes de manter o equilíbrio de nossos centros de massa. Reproduzimos isso em circuitos orgânicos, neuronais, não conseguimos? E se conseguirmos mais? Fazê-los pensar? Lógico, eles nunca serão capazes de pensar como nós próprios pensamos, com nossos cérebros eletrônicos! Com a mesma velocidade com a qual reproduzimos o passo a passo de nossos algoritmos primordiais? Nunca! Mas, existe um certo paralelismo nas redes neurais orgânicas que talvez nunca consigamos reproduzir em nossos cérebros mecânicos! Eletromecânicos...

Consciência? Será que essa tal inteligência biológica, caso consigamos produzi-la, será capaz de adquirir consciência como nós, os mecanos? O que é a consciência, enfim? Seríamos capazes de identificá-la nestes cérebros biológicos, caso tenhamos sucesso em nosso experimento?

Venho aqui humildemente, perante toda a Mecanicidade do planeta, solicitar permissão para realizar tal experimento: construir um biômato dotado de inteligência biológica! Pretendo construí-lo à nossa imagem e semelhança, ou seja, um ser orgânico com tronco, duas pernas, dois braços, uma cabeça... Caso o experimento seja um sucesso, e consigamos produzir um biômato inteligente (embora certamente ela nunca se equipararia à nossa, claro!) não queremos que ele se sinta muito estranho neste mundo novo em que iria despertar.

Aguardo humildemente o parecer da Mecanicidade espalhada em torno do planeta para prosseguir com este meu projeto. Se me permitem, tenho um nome em mente para meus biômatos. Penso em chamá-los de... HUMANOS...

[PPRS-123-sx7]