Bate e volta

Hannor deixou que a pequena nave para dois ocupantes entrasse na atmosfera de Sottah como um bólido, protegido pelo potente campo defletor. As coordenadas gravadas no computador de bordo conduziram o veículo ao coração de um maciço montanhoso no centro do continente de Tah-Har. Ele pousou no fundo de um vale rochoso, sob a proteção de uma noite fracamente iluminada pelos cumes incandescentes de vulcões em erupção; os dois satélites de Sottah, aliás, diminutos e distantes, pouco contribuiriam para a iluminação noturna caso estivessem presentes.

Hannor usou o seu comunicador de pulso para entrar em contato com o homem que o convocara até ali, o misterioso Hu Than.

- Estou bem atrás de você - anunciou uma voz no aparelho.

Hannor virou-se bruscamente, mão na coronha do termoprojetor. À cerca de 20 m dele, parado entre duas rochas, viu o vulto de um homem encapuzado.

- Eu sou Hu Than - disse o encapuzado, removendo o capuz e revelando um rosto ascético e uma barba escura.

Hannor aproximou-se, com cautela.

- A sua identificação - solicitou a Hu Than.

O homem puxou a manga do manto escuro, exibindo o pulso esquerdo; nele, brilhou em vermelho um símbolo concêntrico, que Hannor reconheceu como a marca dos Heresiarcas de Dahlinn. Uma luz verde acendeu-se em seu comunicador: a identificação havia sido analisada e aceita. Hannor relaxou um pouco.

- Trouxe a nave, segundo as suas especificações - informou, indicando o pequeno veículo, pousado sobre três trens de aterrissagem atrás dele.

- Teve algum problema com as defesas planetárias? - Questionou Hu Than, aproximando-se da nave.

- Não; o governo de Sottah possui um bom sistema de detecção de longa distância, mas com o uso do meu programa de emulação de queda livre, devem ter registrado a minha entrada em sua atmosfera como a queda de um meteoro - avaliou Hannor.

- Programas de emulação... - murmurou o homem, braços cruzados. - Veremos do que são capazes de fazer quando estivermos indo em sentido contrário.

- Eu tenho um sistema de repulsão gravitacional - minimizou Hannor. - Vamos sair tão rápido que quando entenderem o que houve, já estaremos longe.

- Assim espero - replicou Hu Than. - Bom, vamos indo; é improvável que uma patrulha aérea passe por essa região remota, mas não quero ter que contar com a sorte.

Embarcaram no veículo, cuja cabine de voo mal comportava dois ocupantes de maior estatura. Felizmente, tanto o piloto quanto seu passageiro eram de compleição mediana.

- Coloque o cinto de segurança - alertou Hannor. - A decolagem será bem dura.

Cintos devidamente afivelados, deu a partida. Um punho invisível pareceu comprimir os dois corpos em seus assentos, enquanto a espaçonave acelerava loucamente até quase o limite da resistência dos corpos dos ocupantes. Quando recobraram a consciência, Sottah já não estava mais visível nas telas de observação.

- Eu lhe disse que não haveria problemas - comentou Hannor, inserindo as coordenadas para o primeiro salto pelo hiperespaço.

- Desagradável, mas rápido - ponderou Hu Than, esfregando a mandíbula.

- Em cerca de seis horas, estaremos pousando em Klasiva - informou o piloto, consultando o console de navegação. - Imagino que lá poderá professar livremente sua religião...

Hu Than balançou negativamente a cabeça.

- Não saí de Sottah por causa da religião - redarguiu. - Oh, de fato, é um maldito estado policial, mas eles não ligam tanto assim para as crenças privadas dos cidadãos, desde que estes obedeçam às leis e paguem os impostos em dia. O problema lá é que perseguem quem resolve recorrer à magia...

- Magia? - Hannor ergueu os sobrolhos. - Isso não é um tanto bizarro para alguém que precisou recorrer à tecnologia para sair do próprio planeta?

- Li em algum lugar que uma tecnologia suficientemente avançada seria indistinguível da magia - filosofou Hu Than. - É desse tipo de magia que estou falando...

Hannor abanou a cabeça, sorrindo.

- Se é tão avançada assim, porque não a usou para criar um portal dimensional e passar diretamente para Klasiva, sem precisar usar uma astronave? - Questionou, enquanto aguardava os acumuladores da nave prepararem-se para o salto.

- Creio que serei capaz fazer isso... quando chegar à Klasiva - replicou Hu Than. - E o governo de Sottah sabe dessa possibilidade; aliás, é por isso estou sendo procurado por eles.

- Está aí algo que eu gostaria de ver - assentiu o piloto. - Em meu planeta de origem, ninguém daria a menor bola para alguém que falasse em magia, desde que fosse no âmbito de uma religião.

- Em Sottah, isto também começou com uma religião... mas descobrimos que poderíamos potencializar a amplitude da nossa descoberta.

Uma luz verde acendeu-se no console de navegação. Hannor apertou um botão.

- Como? - Indagou.

- Atravessando o hiperespaço - replicou Hu Than.

Enquanto a nave mergulhava no hiperespaço, Hannor compreendeu que seu passageiro não estava meramente dirigindo-se à Klasiva: ele apenas iria aproveitar a viagem para ampliar seu próprio poder.

E, quando voltasse, a se dar crédito ao que acabara de dizer, sequer precisaria dele.

- [08-01-2021]