O Dia de Vitinho

A nossa história começa em uma pequena vila chamada de Samambaia, nome originado em função da presença dessas plantas na região. Vilarejo pequeno, composto de três ruas que desembocavam em uma pequena praça, onde havia também uma igrejinha, composta de uma torre e um sino. Tudo muito simples, parecia um lugar esquecido por todos. Nada acontecia por ali digno de nota. A rotina dos seus moradores se restringia as atividades da pequena agricultura local, o cuidado de alguns animais de pequeno porte e as idas à igreja para a missa matinal das sete horas que ocorria todos os dias da semana. Apenas nos domingos e dias santificados que a rotina da pequena igreja era alterada – Passavam a ter duas celebrações, uma pela manhã e outra pela tarde.

O comercio da vila também se concentrava no entorno da praça. Havia uma pequena construção onde funcionavam os correios, o cartório e a prefeitura. Na posição contraria, estavam a delegacia e um posto avançado dos bombeiros. Tomando conta das unidades apenas duas pessoas: o cabo Tião que era a autoridade local e seu auxiliar, o soldado Damião.

Em uma das esquinas, bem próximo da delegacia, o posto bancário, um armazém que comercializava de tudo, além de ser o único restaurante da região.

Mais próximo da igreja, um pequeno posto de saúde que funcionava também como farmácia e ao fundo da igreja o cemitério da vila.

A praça era o grande ponto de encontro das pessoas. Ali ocorriam as resenhas do dia a dia. Se conversava de tudo e sobre todos ali. Queria notícias? Era só ir à praça que, após a missa, atualizavam entre conversas os assuntos do dia. A rotina da vila ficava entre as rodas de bate papo na praça, no armazém ou na igreja. O diácono, responsável pela condução das atividades religiosas, também participava desses bate papos e era seu principal incentivador.

Todos ali se conheciam. Nasceram e viviam na região. Raramente saiam. Quando alguém precisava ir a um centro mais desenvolvido, era motivo de festa, tanto na partida quanto no retorno.

Tinha a casa do seu Alberto e de dona Tiquinha que eram os professores da região. Ali, na sua casa, era improvisada aulas de letramento para a população local.

O tempo ali, parecia estar parado. Nada ocorria de novidade na região, até o aparecimento de um pedinte de nome Vitor. Não se sabia de onde vinha e nem para onde ia. O fato era que ele havia aparecido na vila e, no primeiro momento, cativou as pessoas com o seu jeito alegre, descontraído e muito solicito. Caiu nas graças da população local e logo, logo se tornou personagem marcante na região sem muito esforço.

Tomava café na casa de dona Leda, almoçava na casa de seu Bastião, jantava na do seu Osorio. Todos os dias, levava as compras de dona Quindinha e ajudava com a cerca do seu Teobaldo. Ajudava a todos sem distinção e com bom humor. Dormia no pequeno coreto da praça e estava sempre alerta para as necessidades das pessoas. Passou a tocar o sino para as missas das sete, ajudando o velho diácono nos preparativos diários das missas. Tomava banho no pequeno riacho perto da velha ponte, único acesso para a vila.

Participava ativamente das rodadas de conversa como se houvesse nascido ali. O pessoal costumava dizer que Vitor era prata da casa ilustrando assim o vínculo forte com a comunidade. Seus feitos era digno de nota. Uma certa vez, o gato de dona Filomena se prendeu num galho de arvore próxima à casa. E lá foi Vitor retirar o animal da situação em que se encontrava. Era uma mão na roda para o Cabo Tião que utilizava da boa vontade do Vitor, para resolver as questões de resgate de pequenos animais e de informes sobre a região.

Assim a vida seguia no tempo e na hora da população, com o Vitor realizando um reparo aqui, um salvamento ali, um serviço acola sempre com bom humor e muita dedicação. Mas, grande tempestade um belo dia, se avizinhou da região. Trouxe com ela ventos fortíssimos e muita chuva. O fenômeno nunca visto pelos moradores da região, assustou a todos. A tormenta durou dias, com o céu encoberto por grossas nuvens e com os dias parecendo noite. No final, grandes estragos ocorreram com sua passagem. Telhados quebrados, árvores arrancadas, até a velha ponte não resistiu a ferocidade dos ventos e ruiu em um dos lados, isolando parcialmente a Vila. Mas, o grande estrago se fez acontecer na torre da igreja. Parte dela não resistiu e desmoronou deixando o sino suspenso como por milagre, preso pelos escombros que caíram, ameaçando desabar sobre o telhado da pequena igreja.

Após vencer o assombro causado pela tempestade, todos os moradores saíram em auxílio uns dos outros reparando telhados, concertando as cercas, retirando arvores tombadas no caminho, recolhendo animais perdidos, enterrando outros. Ao final, restavam apenas os reparos da ponte e a torre da igreja. Para a ponte, foi usado pedaços das arvores caídas. Reergueram-na e escoraram suas bases de forma a restabelecer o fluxo normal da vila. Restava apenas a torre da igreja. A visão era impressionante. Parte da torre ruiu e o sino ficou escorado por pequeno escombro que o impedia de vir abaixo sobre o telhado. Ficaram horas pensando em como realizar a tarefa. Entre opiniões, alguém informou a falta do Vitor. Durante todos os dias que antecederam a tormenta, ninguém havia notado sua ausência. Por onde Vitor foi parar? O rebuliço foi geral. Todos passaram a procurar sem sucesso. Não havia lugar em que não houvesse sido revirado na busca do paradeiro do Vitor. Enfim, foi dado como desaparecido. Apenas os mais próximos acreditavam que ele havia ido em bora ao perceber a tempestade. Acreditavam que ele estava bem e não havia se machucado. Nutriam a esperança de um reencontro assim que as coisas voltassem ao normal. Por certo, ele se abrigou em algum lugar e logo, logo estaria de volta ao convívio. Haviam construído vínculos de amizade que o colocava na condição de um parente querido.

Passaram então a estudar a logística para chegar à torre em ruinas sem correrem riscos e nem provocar mais desmoronamento e a queda do sino sobre o telhado da igreja. Montaram, aproveitando o madeiro das arvores caídas, estrutura de sustentação para ter acesso à torre em ruínas. E qual foi a surpresa ao chegar no nível da torre. Encontraram o corpo de Vitor, imprensado entre o sino e a parede que restou da torre. Graças a isso, o sino não caiu sobre o telhado. A comoção da população foi grande. As pessoas choravam igual criança ao saberem da notícia. Todos que o conheciam vieram para a praça para acompanhar o resgate do corpo, que foi feito num clima de muita tristeza. O próprio diácono organizou o velório como última homenagem ao ser querido amigo.

Providenciaram o caixão e as flores e, no saguão da igreja, formou-se a visitação pública. Todos vieram para prestar-lhe as últimas homenagens do herói que, no anonimato, deu a própria vida para salvar o acervo da vila. No caixão, o corpo envolto em uma bata do diácono, parecia sorrir de tão sereno que se encontrava. Após a visitação, as pessoas foram para a praça conversar sobre os feitos de Vitor. Lá ficaram até a saída do corpo para o pequeno cemitério. Não havia espaço no local. Todos queriam de alguma forma prestar sua gratidão e reverencia àquele ser humano de alma nobre.

Após o sepultamento, novamente a praça se fez cheia. Algo inesquecível, nunca visto na região. Histórias foram contadas, causos e muitos feitos em que o valoroso amigo se fez protagonista.

A lápide feita de madeira, constava além da data do óbito, os nomes de todas as pessoas da vila que haviam se afeiçoado ao rapaz. Não deixou bens, mas deixou inimagináveis laços de afetividade que o credenciava como uma pessoa de grande bondade e amor no coração.

Após os reparos da torre da igreja, a vida retornou quase a sua normalidade. Não se tocava mais o sino nas missas das sete horas. Viam-se nos rostos dos que ali iam, profunda melancolia. Era comum ao passarem pela praça, pararem e olharem para a torre reconstruída, como se buscando respostas para o ocorrido. Havia claramente nos semblantes, um misto das saudades e lembranças daqueles momentos felizes vividos.

Mas uma coisa que não mudava era a reunião na praça após a missa para o bate papo rotineiro. Só que, depois da morte do Vitor, as conversas terminavam em histórias e causos ocorridos com ele. Esse movimento se tornou cotidiano entre todos até que, em um dado dia, o próprio diácono, propôs o dia de vitinho. Seria o dia em que haveria além da missa, uma caravana onde todos os envolvidos, sairiam pela região, em mutirão para ajudar os irmãos em estado de necessidade. Seriam doados alimentos, roupar, utensílios e serviços diversos. Foi ideia aceita por todos sem restrição. Começaram os preparativos e elegeram o dia de sua chegada à vila como o marco inicial para o dia de vitinho. A comissão se formou e os preparativos começaram com grande empolgação. Assim foi feito, e no primeiro dia de vitinho, realizou-se a missa às sete horas como de costume, sendo que o sino tocou, chamando os fiéis para o evento. Após a missa, se reuniram na praça e foram em caravana desenvolver as atividades propostas. Ao final do dia, nova missa e após, as resenhas e histórias das experiencias vivenciadas por todos.

A alegria voltou a reinar na vila e, a cada ano, o número de pessoas interessadas em participar crescia. Vinha gente de muitos locais próximos para dar também sua contribuição. Havia também romeiros que passaram a atribuir ao rapaz, algumas conquistas solicitadas ao criador em suas orações.

Os anos se passaram ate que o velho diácono passou o posto para outro mais novo.

Esse, no seu primeiro ano de celebração, participou do planejamento do evento junto à comissão, para entender as fases da organização. O mistério começou em uma das reuniões onde o jovem diácono perguntou ao grupo, quem no dia da missa, era responsável por tocar o sino.

Todos que se encontravam ali, se olharam e não sabiam como responder...

Quem tocava o sino mesmo? Será que.... era o Vitor?? Cruz Credo... Mistério a se desvendar...

Mas isso é uma outra história...