JESUS CRISTO
UMA VIAGEM NO TEMPO
O estalo da chibata se ouviu acima do barulho da multidão hostil a flanquear, de ambos os lados, o caminho por onde Jesus, em andar trôpego, penosamente carregava o patíbulo, a trave horizontal superior da cruz. O rosto, coberto de sangue, por causa da coroa de espinhos, se contraía a cada vergastada do chicote a lhe fustigar às costas. Albert Heisenberg conhecia bem todos os elementos do contexto dramático à sua frente. O martírio de Cristo estava registrado no livro mais lido do mundo e, por mais que estivesse preparado para enfrentar as crueldades do flagelo de perto, nada se poderia comparar com a brutal cena a se desenrolar a 30 metros de onde estava, em meio à turba ensandecida motivada pelos maus tratos violentos ao condenado.
Madrugada escura encoberta por nuvens. Despiu-se de suas roupas e vestiu a túnica branca. Jogou o manto cinza, uma espécie de capa de lã adornada com franjas amarelas, por sobre os ombros. Colocou um lenço na cabeça e calçou as sandálias de madeira. A barba que deixara crescer por seis meses, somadas a vestimenta típica do período, deram-lhe o aspecto de uma figura comum da região da Galileia.
Havia estudado com persistência o aramaico, dialeto local falado por Cristo, muito parecido com a língua judaica. Sentiu-se confiante. Conferiu o local das imediações com cuidado. Olhou para o computador de pulso, digitou alguns comandos para ativar o gerador do campo de camuflagem da Máquina do Tempo. Qualquer camponês ao passar pelas estradas próximas não iria ver uma bola de titânio de dois metros de circunferência, mas apenas uma enorme pedra em meio a paisagem desértica.
A Esfera de Locomoção Temporal o levara para o ano 30, em algum lugar ermo nas cercanias próximas às Muralhas de Jerusalém. Em seguida, conhecedor profundo do lugar, faltando ainda uma hora para o sol surgir por de trás das montanhas, tomou caminho para a Torre Antônia, a enorme estrutura adjacente ao principal templo da cidade. Esperava ter chegado no dia da crucificação.
Jesus estava cansado, mas obrigava-se a continuar andando porque qualquer parada era logo acompanhada de fortes chicotadas. Albert pôde observá-lo com mais detalhes! Não se surpreendeu ao ver a fisionomia do Messias ser completamente diferente da imagem renascentista, da qual é retratado de pele clara, cabelos bem escovados e olhos azuis. Muito pelo contrário! O nazareno era um homem moreno, queimado de sol, de estatura mediana, cabelos crespos revoltos e curtos, nariz e lábios grandes, barba comprida, enfim, um homem que se afigurava comum como tantos outros presentes a acompanhar o sofrimento de sua via crucis.
Embora o momento fosse tenso, muito por consequência dos motivos de estar ali, o historiador não conseguiu reprimir as lembranças ocorrida há sete anos, antes de sequer cogitar a possibilidade real se meter naquela aventura.
A pergunta veio de uma repórter muito bonita, sentada nas primeiras fileiras do auditório da Universidade de Oxford.
— Professor Albert, o senhor nunca acreditou nos milagres de Jesus Cristo?
— Quando eu era jovem, sim, acreditava. Hoje não mais. Os estudos do Jesus histórico são cada vez mais precisos, pois trazem à luz do conhecimento analítico o que realmente aconteceu no contexto daquela época, desmitificando esta áurea divina entorno dele.
— Na sua opinião, qual é o milagre mais difícil de acreditar?
O historiador pensou um pouco por alguns segundos, olhou a plateia de centenas de estudantes, professores, repórteres e disse:
— O fato de ele ter carregado a cruz sozinho, sem ajuda de ninguém, como diz a bíblia. No estado debilitado em que se encontrava, com o corpo submetido a tortura do chicote, o medo, a fome, ele não poderia levar o patíbulo, uma peça de quase 60 quilos, nos ombros por 600 metros. Sabemos, através de estudos, que Cristo era um homem de constituição frágil.
A moça ficou admirada pela resposta.
— O senhor está dizendo que ele recebeu ajuda para carregar a cruz?
— Sim. Com certeza ele foi ajudado.
Um murmúrio de comentários se elevou da plateia. A moça deixou o burburinho diminuir para lançar mais uma pergunta, antes do historiador indicar outra pessoa para questioná-lo.
— Professor, me perdoe, mas não entendi a sua escolha. Qual a razão do senhor achar impossível Jesus ter carregado a cruz sozinho? Não devemos considerar tratar-se de um fato até mais factível à luz da ciência do que, por exemplo, ele ter curado cegos, andado sobre as águas, ou multiplicado os pães?
— Estes outros milagres citados por você foram narrados pelos seus apóstolos muito tempo depois, há coisa de 40, 50 anos após sua morte. Não havia provas. Eram relatos. Mas o documento de um escriba descoberto nas ruinas do templo de Jerusalém, em 2035, dando conta de que Jesus conseguiu esta façanha para mim não é verdade. Ponho em dúvida a veracidade do documento.
Antes que a moça voltasse a insistir no assunto, um jornalista do New York Times levantou a mão.
— Professor, mudando um pouco de assunto. O que o senhor pode nos dizer sobre a Teoria da Locomoção Temporal lançada na revista de maior prestígio científico internacional por seu irmão, o físico quântico Nikola T. Heisenberg? É verdade que ele está construindo um protótipo de máquina do tempo em segredo?
— Se é segredo, por que eu iria lhe contar? – Disse o historiador revelando um sorriso discreto.
Alguém da plateia se levantou e falou alto.
— Vai ver que ele quer que o senhor volte ao tempo de Jesus e descubra os milagres por conta própria, há, há, há.
Todos caíram na gargalhada, menos Albert.
O nazareno novamente tropeçou numa pedra. Desta vez, ele perdeu o equilíbrio, ajoelhando-se no chão. Levantou-se tão rápido quanto as suas forças debilitadas lhe permitiram. O soldado romano achou débil o esforço do condenado e lhe aplicou o violento castigo pelo atraso. A chicotada veio de lado atingindo parte das costas, ombro, pescoço e o rosto. Ouviu-se o lamento de dor mais alto emitido até então pelo condenado.
A força da poderosa chibatada, aplicada na hexagonal, fez com que Cristo perdesse o equilíbrio, levando-o a virar-se de lado em relação ao caminho que o conduziria ao monte Gólgota. Sob o impacto da mesma arqueou-se, sendo lançado em direção a multidão. Curvado, de cabeça baixa, atropelando as próprias pernas foi de encontro ao historiador.
Albert, sem pensar, deu um passo à frente, levantou as duas mãos e amenizou o avanço da canga de madeira e impediu a queda do açoitado.
Amparado pelo professor, Jesus buscou o ar com dificuldade e levantou o rosto coberto de hematomas, um dos quais lhe fechava completamente o olho esquerdo. A fisionomia de Cristo, contorcida pelos maus tratos, vermelha em sangue, atingiu os sentidos de Albert de tal modo que, ao levar uma das mãos à boca para reprimir o lamento, quase derrubou os dois ao chão.
Eles se olharam frente a frente!
Então, naquele momento singular que mudaria uma das passagens mais dolorosas do livro sagrado dos cristãos, o Messias olhou diretamente dentro da alma de Albert Heisenberg!
E, por conseguinte, o professor de história presenciou o milagre!
O tempo se dilatou numa lentidão impossível no entorno deles!
A cena surreal tomaria conta das memórias do historiador para o resto de sua vida até a lucidez se lhe escapar pela idade avançada. Jamais esqueceria aquele momento! O tempo desacelerou! Menos para os dois! A multidão ao derredor, que acompanhava o suplício do condenado, pareceu-lhe fazer parte da cena de um filme em supercâmara lenta. Jamais, em tempo algum, deixaria de lembrar o braço do soldado romano levantado a segurar o chicote em pleno ar a descer lentamente, numa morosidade angustiante.
Houve um momento de calma. De silêncio. De expectativa. “Isso é impossível”, pensou estupefato. Antes de Heisenberg absorver o evento insólito na sua complexidade científica, ou divina, Jesus, com a voz rouca, arfante, entrecortada pela respiração cansada, tomou a palavra em um aramaico rudimentar.
— Homem do futuro, aceitais o que lhe vos pedirei.
— Eu... eu... não consigo compreender... – tartamudeou o professor sem argumentos para contestar o fenômeno, enquanto sustentava o peso do patíbulo.
— Quando o soldado romano vos lhe perguntardes quem sois vós, dizeis que vós sois Simão, de Cirene.
— Simão? Quem é Simão? Jamais ouvir falar nele. Eu... não entendo...
— Façais como lhe digo, homem do futuro. Tenhais fé!
Albert tencionava falar alguma coisa importante para Jesus, porém a emoção parecia lhe sufocar as palavras. Queria dizer-lhe que...
Não conseguiu!
O chicote desceu com força e as engrenagens do tempo voltaram a funcionar como antes. Cristo desabou sob os joelhos em frente a Albert. Ele, como que desperto de um transe, assustado, não sabia como contornar a situação. Estava paralisado. Hesitava em se mexer por medo das consequências. Um dos soldados romanos se aproximou irritado.
— Quem és tu? – Perguntou em latim.
Albert entendeu a pergunta no idioma romano, mas preferiu responder em aramaico sem sequer cogitar outro nome. Então, a história bíblica mudou!
— Sou Simão, de Cirene
— Tu, Simão, ajudas a carregar o patíbulo do rei dos judeus, temos pressa de terminar logo com isso.
Os soldados desamarraram a trave superior da cruz dos braços de Cristo e a colocaram em um dos ombros do professor, que suportou a carga com firmeza segurando-a com uma das mãos. Em seguida, deu a outra mão para ajudar Jesus a levantar-se. Quando se voltaram a olhar , Albert, com o rosto coberto de lágrimas de emoção, lhe disse, num murmúrio discreto, longe dos ouvidos da soldadesca romana, o que estava a lhe corroer por dentro:
— Perdoe-me por não acreditar!