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Ela continuou em frente somente porque acreditava que o término pelo qual estava passando seria seguido por um novo começo.
- Essas coisas não duram para sempre, Janette - pessoas bondosas tinham lhe assegurado. - Quando menos esperar, já terá superado a crise.
Seis meses depois, ainda não havia nenhum sinal de que a situação seria superada rapidamente. Na verdade, os indícios que estava captando eram de que aquela anomalia viera para ficar.
- O seguro-desemprego está quase acabando - comentara angustiada com uma das poucas amigas por telefone. - Eu realmente não sei mais o que fazer.
- Talvez eu não devesse lhe dizer isso, mas já ouviu falar do Movimento Humanista? Parece que estão recrutando. Não pagam grande coisa, mas é melhor do que ficar sem trabalho...
Janette nunca havia se envolvido com política, e o que lhe chegava sobre o tal Movimento através da mídia, era que se tratava de radicais envolvidos com uma pauta de reivindicações que envolvia, claro, direitos humanos. Mas, como as contas estavam se acumulando, resolveu arriscar.
- Você trabalhou como falante para a Human Data Corp.? - Indagou a entrevistadora no escritório do Movimento. Era uma mulher magra, que usava óculos e roupas antiquadas.
- Sim, fui falante durante dez anos - confirmou Janette. - Mas seis meses atrás, demitiram todos nós. Os caminhantes já haviam sido dispensados há um ano e substituídos por drones de superfície.
- E qual foi a justificativa? - A entrevistadora a perscrutou atentamente, aguardando pela resposta.
- Oficialmente, redução de custos. Eles agora têm um novo sistema de inteligência artificial que substitui os falantes, ou assim nos disseram...
- E você tentou recolocação e descobriu que nenhuma outra corporação está mais contratando falantes, não é?
Janette encarou a entrevistadora surpresa. Como ela sabia disso?
- Sim. É tudo muito estranho... como uma profissão pode desaparecer assim, de repente? Nós, falantes, éramos muitas vezes o único contato humano que os idosos que moram sós ainda tinham.
- É porque agora estes idosos não podem morar mais sós, a legislação mudou - explicou a entrevistadora. - E aqueles com posses, que insistem em residir sós, foram obrigados a aceitar a implantação dos sistemas de inteligência artificial... estes que extinguiram o seu emprego. Entende agora onde isso vai parar?
Janette balançou negativamente a cabeça.
- As corporações estão extinguindo o trabalho humano - afirmou a entrevistadora. - Em breve, poderão começar a limitar nascimentos e até mesmo a abreviar a vida dos que não forem considerados produtivos.
- Eles podem fazer isso? - Perguntou Janette assustada.
- Eles controlam o sistema político e as forças de segurança. Poderão fazê-lo, certamente... a não ser que encontrem resistência.
- E é aí que o Movimento entra? - Indagou Janette preocupada.
- Sim. Mas, não se preocupe, não promovemos ações violentas ou terrorismo - a entrevistadora parecia estar se divertindo com o medo dela. - Na verdade, o que queremos é justamente pessoas com o seu perfil: falantes. Queremos que usem seus talentos de conversação para entrar em contato com pessoas, levando à elas a nossa mensagem. Quanto mais apoio conseguir para nossas propostas no conselho administrativo, mais créditos terá em sua conta.
- Isso parece um trabalho de relações públicas - avaliou Janette.
- É um trabalho de venda porta a porta - corrigiu a entrevistadora. - Algo que desapareceu há muito, muito tempo, e que nós reciclamos.
E diante da expressão indecisa de Janette, finalizou:
- Só que o que você vai vender, serão ideias.
- [05-10-2020]