Quarta Feira
Era quarta feira! Esse era o primeiro pensamento de Lucas naquela manhã.
Na verdade, todas as manhãs a primeira coisa que vinha a sua mente era o dia da semana em que estava. De certa forma continuar contando o tempo normalmente parecia ser a única coisa capaz de manter sua sanidade depois de tudo que acontecera.
Saiu da cama devagar, bocejou, esfregou os olhos e marcou mais um dia em seu calendário com um lápis mal apontado, antes de ir até a frente do espelho que mantinha no banheiro mal iluminado.
Seus cabelos estavam mais compridos do que sempre estiveram. Castanhos, ondulados e despenteados pelo contato com o travesseiro durante toda a noite. Mantinha a barba o mais alinhada que podia no rosto fino. A aparência comum também o ajudava com sua sanidade.
Esfregou novamente os olhos cor de mel e olhou mais uma vez para o espelho. Estava mais magro do que conseguia se lembrar, mas parecia saudável. Ironicamente essa simples constatação foi capaz de fazê-lo sorrir.
Voltou até a cama, apoiou a cabeça nas mãos ao se sentar, e mais uma vez lembrou-se de vários absurdos que haviam acontecido. Um turbilhão de imagens invadiu sua mente. “Como aquilo tudo acontecera tão depressa?”.
Quando a floresta começou a queimar o governo dissera na TV e nas redes sociais que não passava de um “ciclo climático comum”, mesmo com o céu de São Paulo ficando negro como a noite em plena tarde de quinta.
O tempo ficou mais quente e seco, mas era meio do ano. Nada fora do comum. Mas de repente as chuvas começaram. Um, dois, três, quatro, dez dias de tempestades infindáveis. O governo tentou explicar, os bombeiros também. Os meteorologistas, jornalistas, especialistas em clima, mas ninguém de fato sabia por que não parava de chover.
Dia após dia o noticiário mostrava grandes enchentes. Casas desabavam, pessoas morriam, hospitais perdiam máquinas e insumos, cidades inteiras tiveram de ser evacuadas. Mais mortes, mais catástrofes.
Donos e presidentes de grandes companhias fechavam as portas e deixavam o país, mas segundo as notícias, vários lugares do mundo pareciam perecer da mesma forma.
Ilhas do caribe ficaram completamente submersas. O clima nos trópicos esquentara a níveis críticos e um pouco atrasadas as tempestades também chegaram à África, Oceania e ao sul da Europa.
A NASA já não sabia o que fazer. Os maiores líderes mundiais discutiam diariamente formas de amenizar ou reverter essa situação, mas nenhuma solução parecia ser encontrada.
O mundo acordou em choque quando no trigésimo dia de chuvas o mar pareceu uma banheira inundada. Manhattan desaparecera em meio à água, toda a costa sulamericana, da Patagônia às Guianas sumira por completo. Dezenas de ilhas na Ásia também submergiram.
Em São Paulo os primeiros dias foram de comoção com todas as notícias de perdas e mortes. Lucas nunca tivera muito contato com família ou amigos. Não chorara por quase ninguém.
Depois o caos. A cidade tinha tantas áreas alagadas que mais parecia uma Veneza cheia de arranha-céus. Estradas fechadas, pessoas com fome, frio e pouca esperança. Uma onda de pequenos delitos havia começado. O próprio Lucas acabou se aproveitando disso. Não ousava deixar o apartamento alto em meio à tempestade, mas tinha que sair, caso contrário enlouqueceria.
Percorreu as escadas do condomínio. Havia portas abertas, casas vazias. Lucas arriscou abrir uma delas. Vários espaços vazios e cheios de pó deixavam claro que eletrodomésticos tinham sido levados. Foi até a cozinha, achou uma dispensa com latas de atum e pacotes de macarrão. Levou todos. Parara naquele momento para pensar. Valia a pena se precaver.
Foi de andar em andar e abriu cada porta que pode. Fez um estoque de comida, água, remédios, velas e itens básicos em geral. O racionamento de energia já havia começado. Dias depois, não resistiu, levou também roupas, dinheiro, livros e o que mais achou útil. Não tinha idéia se os donos daquelas casas voltariam ou não, mas não se importou.
A chuva então parou. O número de mortos se tornou incontável. Os sobreviventes, temerosos, mal saíam de casa. Os desesperados começaram uma onda de assaltos ainda maior. Lucas novamente se aproveitou. Saiu de casa cedo numa manhã, entrou em cada loja, shopping e mercado que conseguiu e levou tudo que foi capaz. O apartamento agora mal tinha espaço para que se locomovesse.
A cidade se tornava perigosa. Todas as forças do estado tentavam ajudar quem perdera tudo. Nem governo, nem ninguém era capaz de fazer parar a onda de saques. Além disso, com todos aqueles mortos, os sobreviventes começaram a ficar doentes. Lucas tomou a melhor decisão que pode. Encheu a caminhonete que tinha com tudo que conseguiu e foi para o centro do país.
Pegou gasolina de carros que encontrou abandonado nas estradas. Passou como pode. Achou uma casa vazia no interior do cerrado, perto de uma chapada famosa cujo nome não se lembrava.
As mortes continuaram. As plantações e animais também pereceram. Vários membros de alto escalão do governo foram encontrados mortos. Ninguém explicara o porque. Já não havia mais tv ou internet. Algumas poucas rádios davam notícias. Lucas demorava a sintonizá-las. Era difícil achar sinal de qualquer coisa.
Comunidades se formavam com os poucos sobreviventes que estavam desesperados. Pelo menos era o que o rádio dizia até que o sinal dele também desapareceu. Já havia um mês que Lucas não cruzava com outro ser humano. A paisagem se assemelhava àquela de filmes apocalípticos. Casas vazias e destruídas, ruas desertas. O bioma começava a mudar. Insetos, serpentes e pequenos roedores tomaram as cidades. O rapaz andava muito. Preferia economizar o pouco combustível que ainda restava.
Menos de um ano havia passado desde o primeiro dia de tempestade até aquela manhã de quarta feira.
Lucas se levantou novamente. Colocou uma camisa cinza de manga comprida e um jeans surrado. Calçou suas botas e trancou bem a casa antes de sair. Era um chalé em meio à chapada. Havia grama baixa por todo lado. O calor era forte, mas ele já tinha se acostumado.
Foi até o puxadinho que construíra nos fundos, Havia uma infinidade de geradores e freezers que ele havia juntado para manter a escassa comida e bebida. Abriu uma garrafa e bebeu grandes goles de água gelada, comeu um pouco de atum de uma lata já aberta, limpou a boca e seguiu sua caminhada.
Como já virara rotina, montou em sua bicicleta, engatou uma pequena caçamba a ela e pedalou por vários quilômetros, verificando se havia coisas uteis no caminho. Gritava quando chegava perto de casas para garantir que não havia mais ninguém a quem pudesse ajudar. A maioria dos corpos já havia sido queimada tempos atrás. Ele mesmo queimara alguns para evitar doenças. Falava sozinho sempre que podia. Aquilo o acalmava.
Chegou a uma cidade próxima. Há bastante tempo sua rotina se tornara ir até alguma das cidades vizinhas e arrumar as poucas coisas que lá havia. Pegava o que lhe era útil e enchia a caçamba, e quase como um jogo, arrumava casas e lojas deixando-as o mais normal possível.
Deixou a bicicleta e mais uma vez andou até o mercado da cidade. Já havia levantado as prateleiras e enfileirado, (quando entrou lá pela primeira vez, todas haviam sido jogadas ao chão. “Homens famintos”, pensara ele).
Organizou filmes, brinquedos e roupas infantis que haviam sobrado. Quando considerou o trabalho da manhã terminado, deu uma volta na cidade. Como tornara-se costumeiro, gritou pelas ruas dizendo ter comida, água e remédio. Faltava-lhe alguém para conversar.
Antes de pegar a bicicleta e voltar a seu chalé, decidiu passar na igrejinha da cidade. Há muito não acreditava em Deus algum, mas aquele lugar era um dos únicos intocado durante cada acontecimento bizarro. De alguma forma dava impressão de que ainda podia haver esperança.
Percebeu a porta entreaberta e como de costume quebrou o silêncio. “Alguém aí?” Abriu devagar aquela grande porta de madeira e a cruzou. O lugar permanecia claro como da ultima vez. Diferente das igrejas góticas que vira nas grandes cidades, não havia grandes vitrais que dificultavam a passagem de luz. As imagens santas no altar estavam iluminadas.
Não sabia mais as orações que aprendera quando criança. Também desistira de tentar encontrar explicações para tudo que acontecera. Mas fechou os olhos e pediu por uma chance de encontrar mais alguém vivo, de começar tudo de novo de algum jeito.
Ao abrir os olhos, percebeu um movimento à sua direita. Apurou os ouvidos. Algo de fato se mexera. Aquilo o assustou. O lado racional imaginava ser um rato ou capivara. Os roedores eram cada vez mais comuns por lá. Respirou fundo e foi até o lugar onde ouvira o movimento.
Caminhou com passos lentos e abafados, mesmo no hall cheio de eco da igreja. Quando chegou, a visão o surpreendeu.
Uma figura acanhada tremia abraçada aos próprios joelhos. De onde olhava só via cabelos negros e encaracolados que balançavam em meio aos soluços.
Olhou-a por um tempo, mas não resistia mais. Pensou em se aproximar e tocá-la, mas algo lhe disse que aquilo pareceria errado demais. Lucas então limpou a garganta e quebrou o silêncio:
- Olá! – Ecoou sua voz pela igreja.
A figura tremeu e olhou para cima. Estava assustada e cheia de lágrimas nos olhos. Parecia ter frio, talvez fome. O rosto estava sujo e com alguns cortes. Seu olhar permaneceu petrificado ao ver um homem adulto a olhando.
- Não acredito que tenha mais alguém vivo. - Ele sorriu inconscientemente, mas logo percebeu que aquele riso a assustaria mais. Tentou contê-lo e continuar a falar. - Me chamo Lucas! Há muito tempo procuro mais alguém. Eu não acredito. Não acredito.
A figura se levantou devagar, ainda o olhando fixamente. Era uma garota. A pele escura, os cabelos despenteados e volumosos passando um pouco da altura dos ombros. Suas roupas estavam sujas e suadas, algumas tiras pareciam ter sido rasgadas. Parecia tremer um pouco. Devia ter não mais de 20 anos, mas era difícil precisar.
Ela tentou falar, mas não foi capaz. Abriu e fechou a boca algumas vezes. Tinha lábios grossos e muito bonitos, pensou Lucas.
- Não precisa ter medo. – Tentou continuar cauteloso. – Não vou te machucar nem fazer nada demais. Você está perdida? Posso arranjar comida e remédios. E água. Sim, eu tenho água. Qual seu nome?
A garota o olhou novamente, dessa vez menos assustada. Um traço de descrença talvez? De esperança?
Ela deu um passo hesitante a frente e esticou a mão, tocando de leve o braço do rapaz. Ao senti-lo, hesitou novamente. Parecia não ter certeza se aquilo era real.
- Você está mesmo aqui? Ou é mais um sonho? Ou eu simplesmente morri e você é uma espécie de demônio?
Sem se conter, Lucas riu novamente.
- Sou real. – Disse ele. – E você também. Sei que é difícil de acreditar, eu mesmo acho isso surreal. Mas é verdade. E antes de te encher com milhões de perguntas que com certeza vou fazer, vou oferecer novamente. Tenho comida e água. Venha comigo.
Ele esticou a mão. Ela hesitou mais uma vez, avaliava a proposta ao que parecia. Então ela apertou-lhe a mão estendida e o seguiu.
Foram até a bicicleta. E no engate cheio de pequenas coisas, pegou uma garrafa de água de dentro de um isopor e entregou à garota. Seus olhos pareceram brilhar ao segurar aquela garrafa. Abriu-a de modo desajeitado, e virou-a contra os lábios. Bebeu grandes goles, derramou um pouco no queixo e no pescoço. De repente engasgou.
- Vá com calma. Tem mais de onde essa veio. Consegui um chalé que tem um poço artesiano. Não vou ter problema com água por um tempinho.
A garota limpou a boca e acenou com a cabeça. Novamente não disse nada. Apenas respirou fundo e bebeu mais alguns goles.
- Eu já estava mesmo saindo para ir até minha casa. Tenho comida. E podemos pegar algumas roupas novas para você. Há uma loja ali e...
Percebeu que estava falando demais. Rápido demais, sedento demais. A garota parecia novamente assustada, mas de repente sorriu. Lucas sorriu de volta, caminhou até o mercado rapidamente e voltou com o máximo de roupas femininas que achou lá. A garota sorriu de novo pra ele.
- Obrigado. – Disse ela, tirando dessa vez um imenso sorriso dele. Acho que vou aceitar o convite. Estou com fome. Bastante fome.
- Claro, claro. Pode subir na carroça. Eu pedalo até lá. Podemos chegar depressa, posso cozinhar algo e... Desculpe de novo. Faz tanto tempo que não encontro outra garota. Outro ser humano, na verdade. Estou mais empolgado do que sou normalmente.
- Também não vejo ninguém há muito tempo. E desculpe o mau jeito. Acho que perdi o costume, sei lá. A propósito, Meu nome é Alice.
Lucas sorriu novamente e pediu que ela entrasse no suporte. Não era muito pesada, e mesmo tendo que fazer algum esforço a mais para pedalar, a empolgação o impulsionava. Não falou nada durante o caminho até o chalé. Apenas pedalou o mais apressado que pode.
Olhou para a garota algumas vezes. Tentou ler suas expressões sob o sol. Seu rosto estava molhado de suor, e ela não sorria. Permanecia com o rosto voltado na direção do sol. Os olhos fechados, os braços apoiados atrás do corpo, os cabelos colados ao rosto. Lucas não parava de sorrir.
Finalmente chegaram ao chalé. Lucas rapidamente desceu da bicicleta e foi até o barracão em busca de mais água. Alice desceu da pequena carroça acoplada à bike e pegou a garrafa ainda gelada com um grande sorriso estampado no rosto.
Assim que abriu a porta do chalé, Lucas se sentiu mais feliz e mais aliviado do que achava ser capaz. Depois de todas as provações que o ultimo ano trouxera, achar outro ser humano estava além de suas expectativas. Ainda mais uma mulher...uma mulher linda.
- Você deve estar com fome. Vou preparar alguma coisa pra você comer. Tenho arroz, legumes, algumas coisas enlatadas. – Disse ele apressado.
- Com a fome que estou posso comer qualquer coisa. Mesmo. Vou adorar qualquer coisa que você puder cozinhar.
- Ótimo, ótimo. – Falou ele enquanto separava panelas e ingredientes.
- Mas tem uma coisa que eu queria te pedir antes. Chegar até aqui não foi muito fácil. E bem...- Ponderou ela franzindo o nariz voltado para o próprio ombro. - Eu já não aguento mais meu próprio cheiro. Posso tomar um banho?
Ao ouvi-la falando em banho o garoto pareceu emudecer por alguns instantes. Imagens de um passado muito longínquo vieram a sua cabeça. Mas logo se sentiu inconveniente. Errado em muitas formas. Percebeu estar parado há tempo demais a olhando sem dar resposta alguma.
- Claro. Claro. Tem um banheiro no fim do corredor. A caixa da água ainda está cheia. Vou pegar uma toalha. Vou pegar também as roupas que trouxemos da cidade.
Ela ainda o olhava. Sorria, como se achasse graça da hesitação dele antes da resposta. Acenou com a cabeça. E então, quando ele chegou com as coisas para o banho tocou sua mão.
- Muito obrigada. De verdade.
Alice pegou as coisas e se dirigiu ao banheiro. Lucas novamente ficou parado. Olhando para sua nuca enquanto ela ia até lá. Chacoalhou a cabeça como se tentasse afastar algum pensamento. Pegou de novo as panelas e voltou a cozinhar.
Assim que ouviu o barulho do chuveiro várias imagens voltaram à sua mente. Uma mulher completamente nua estava à uma porta de distância dele. Chacoalhou de novo a cabeça. Cresceu a vida toda tentando não pensar nas mulheres daquele jeito. Deu um tapa na própria testa e com todas as forças que tinha voltou a atenção para a refeição que preparava.
O banho foi demorado. Mas também, ela devia estar há muito tempo sem um bom banho, pensava Lucas. O som do chuveiro cessou assim que ele terminou de por a mesa. Fazia tempo que não arrumava a mesa dessa forma. Se acostumara a comer depressa, no balcão da pia mesmo. Ainda tivera tempo de ajeitar algumas coisas que considerou fora do lugar. Mantinha o chalé limpo. Mas por algum motivo, agora que tinha visitas, queria ele perfeito.
Alice saiu do banheiro ainda enxugando os cabelos molhados. Vestia roupas simples. Uma calça legging preta e uma camiseta verde folgada. Nos pés calçava chinelos de dedo um pouco largos demais (“Não consegui acertar seu número” pensou Lucas).
- Deus sabe o quanto eu estava precisando disso. – Disse ela passando a toalha pelos cabelos e enrolando-a neles.
- O almoço está servido. – Disse Lucas estendendo a mão para a cadeira de madeira.
- E como eu precisava disso também. – Ela olhava maravilhada para a comida quente sobre a mesa. Sentou-se depressa e comeu vorazmente. Lucas a acompanhou. Não falaram muito até que não restasse nem mesmo um grão de arroz sobre a travessa.
- Você estava mesmo com fome. – Disse ele abobalhado ainda vendo-a terminar.
- Você não faz ideia. – Quando finalmente pousou os talheres sobre o prato continuou. – Mas ainda estou intrigada. Como conseguiu tudo isso aqui?
- Hehehe. – Riu-se ele. – Sou de São Paulo. Não tinha família nem nada. Logo que vi que não teria muito o que ser feito com os desastres e tudo mais vim para um lugar onde a água não chegaria. Achei esse lugar que tinha um pouco de tudo que eu precisava e não juntaria pragas como as grandes cidades pelos restos de comida e tudo mais. E desde então vou dia após dia percorrendo as cidades vizinhas e trazendo pra cá tudo que acho que será útil.
Novamente ele percebeu que falara muito. E muito depressa. Alice olhava para ele risonha.
- Desculpe. Acho que estou empolgado demais por ter com quem conversar.
- Não precisa pedir desculpas. Eu também estou bem feliz por poder ouvir outra voz que não a minha.
Ela olhou em volta do chalé vendo o acumulo de coisas que ele tinha. Tudo parecia ter sido organizado metodicamente. “ele teve bastante tempo pra isso” pensou ela. Olhava para aquela casa tão normal de um jeito tão... Aquilo trazia lembranças de uma época que Alice pensava já ter esquecido
- Mas me fale de como você chegou aqui. Achei que nunca mais veria mais ninguém.
O som da voz dele a fez despertar da lembrança em que havia se inserido. “Talvez as coisas pudessem, de fato, voltarem a ser normais”
- Nem sei por onde começar. – Disse ela hesitante. – Sou de Minas Gerais. Perdi minha família numa dessas tempestades. Meu pai era bombeiro, morreu tentando salvar alguém. Minha mãe já estava doente. O hospital parou de funcionar. Minha irmãzinha teve ainda menos chance.
As lágrimas começaram a brotar em seus olhos. Lucas não esperava por aquela avalanche de informações tão cedo. Ficou completamente sem saber o que fazer.
- Eles sempre disseram que eu fui forte. Que eu era independente. Mas aquilo era demais. Eu achei que não ia sobreviver. Ainda mais vendo todas as noticias. Passei semanas sem sair de casa. Mal saía da cama. Mas algo despertou em mim, sabe. Eu não podia sucumbir daquele jeito. Seria decepcionar demais minha família, sei lá.
Ela limpou as lágrimas com a ponta dos dedos. Chacoalhou a cabeça e olhou diretamente pra Lucas.
- Olha eu agora te enchendo de lamúrias. Isso passou. Eu saí andando, meio sem rumo. Vi o caos que tinha tomado conta de tudo. Tinha um grupo de pessoas que juntou sobreviventes e estava fugindo num caminhão. Um amigo do meu pai, que também era bombeiro meio que liderava. Achei que era minha grande chance, sabe. Alguém conhecido e confiável ia me salvar e começaríamos de novo, sabe.
Ela se calou por um instante, mas a ansiedade de Lucas já se aguçara.
- E quantas pessoas tinham nesse grupo? Onde ele está? Eles precisam de alguma ajuda? É longe daqui?
Ele percebeu que fizera de novo. Se empolgara demais.
- Não tem mais ninguém. Na verdade, sei lá, tudo que aconteceu mudou as pessoas, ou as fez mais sinceras do que a sociedade sempre permitiu.
- Como assim?
- Não conseguimos ir muito longe. As estradas estavam difíceis, o caminhão mal conseguiu passar. E, bom...As pessoas pensam muito diferente. Algumas ficaram doentes, uns queriam deixa-las pra trás, outros não. As regras nunca se definiram. Começamos a brigar. Aquele amigo do meu pai, o bombeiro, tentou tomar a liderança, deixar as coisas justas e funcionais, sei lá. Mas não deu muito certo. O grupo se separou, alguns simplesmente sumiram. Não sei dizer. Ficamos eu e ele no apartamento mais limpo que conseguimos encontrar.
Lucas tinha uma expressão estranha estampada no rosto. Uma das sobrancelhas estava mais erguida do que a outra. A curiosidade e o medo do resto da história começaram a toma-lo.
- Numa noite ele veio dormir perto de mim. Estava muito frio. Achei uma atitude meio paternal, como se quisesse substituir o amigo, sabe? Mas não era bem o que ele queria.
Os olhos de Lucas se arregalaram imediatamente. Ele já imaginara o que viria a seguir mesmo antes de ela dizê-lo. Mas não queria ouvir. Não estava pronto para aquilo.
- Isso é horr...
- Eu não esperava aquela atitude dele. Não esperava mesmo. Quando saí de perto, assustada, ele me disse que não adiantava fugir. Só tínhamos sobrado nós dois. Era quase uma obrigação que eu tinha. Eu só conseguia sentir repulsa. E raiva, muita raiva. Ele era mais forte que eu. Ele...
Ela não conseguiu terminar. As lágrimas tomaram seus olhos, os soluços sua boca. Abraçara de novo os próprios joelhos em cima da cadeira.
- Eu corri. Me defendi com o que tinha por perto. Meu pai sempre me ensinou a se defender. Eu o acertei algumas vezes. Saí correndo. Não faço ideia do que aconteceu com ele. Só sei que ele não veio atrás de mim. Pelo menos até agora. Talvez eu o tenha matado.
Lucas permanecia mudo. Aquilo era horrível demais para ser verdade. Sentiu-se sujo por ter pensado nela no chuveiro minutos atrás. Não sabia o que dizer, como consolá-la ou qualquer coisa do tipo.
- Vaguei por várias cidades. Comi o pouco que achei. Nunca ficava tempo demais em um lugar com medo de ele vir atrás de mim. Achei uma moto. Mas a gasolina dela acabou uns dois dias antes de eu entrar naquela igreja. Até, bom...hoje.
- Eu sinto muito. Eu nem sei o que dizer, eu...
- Não precisa dizer nada. Eu nem achei que conseguiria falar sobre isso. Mas muito obrigado pela comida, e pelo banho.
Um silêncio ligeiramente constrangedor tomou conta da mesa. Ninguém tinha mais nada a dizer por um momento, Lucas não sabia até que ponto a garota deveria ou queria ficar ali. A própria Alice estava confusa quanto a isso.
- Se você precisar descansar, fique a vontade. Eu tenho um quarto a mais. Só preciso tirar umas coisas de cima da cama. E, bom, ele tem uma chave por dentro. Pode trancá-lo se quiser. Eu chamo quando formos jantar.
- Não quero incomodar demais. De verdade. – Os olhos delas pareciam pesados depois da refeição mais descente que fizera em muito tempo.
- Dá pra ver que você está cansada. Deve fazer tempo que não dorme em uma cama de verdade. Pode ficar a vontade, mesmo.
Alice sorriu docemente para ele. Estava mesmo exausta. Levantou-se sem dizer nada e seguiu o rapaz que também levantara. Ele foi até o quarto menor, tirou algumas roupas de cama e banho dobradas sobre a cama arrumada. Deixou um travesseiro e uma coberta e saiu, ainda em silencio.
Preparou um café quente e não fez nada além de olhar a parede de madeira do chalé enquanto tomava vagarosamente o café, perdido em pensamentos. Ter uma garota em casa, talvez a ultima que encontraria na vida era absurdamente animador. Mas ter passado por tudo o que ela passou o deixava inseguro, receoso.
Não sabia bem o que fazer. Mas uma coisa já decidira. Iria oferecer abrigo, companhia e ajuda seriam essenciais até mesmo para continuar sobrevivendo. Fora muito bem até agora, mas havia dias difíceis demais. Era preciso tentar. Começar de novo. Ser o mais normal que pudesse.
Quando Lucas bateu na porta do quarto, o sol já desaparecera. Uma leve garoa começava a cair. Alice abriu a porta lentamente. Os canelos amassados pelo travesseiro, os olhos ainda se acostumando com a luz. Ele tinha preparado uma sopa quente e nutritiva. Ela sentiu o cheiro assim que abriu a porta por completo. A camiseta larga um pouco torta, deixando o ombro e parte do decote a mostra.
Alice sorriu.
- O cheiro está ótimo. Obrigado por me acordar. Obrigado por tudo, mais uma vez.
Comeram e conversaram um pouco. Amenidades, Ela perguntou o que ele fazia para passar os dias, onde conseguia comida e água, se tinha algum sinal de tv, telefone ou internet, se costurava as próprias roupas.
- Lucas respondia animado. Ria quando ela fazia algum comentário divertido, respondeu que tentara sinal há algum tempo, mas sem sucesso até agora. E que sempre pegara roupas nas cidades, não fazia ideia nem mesmo de como se pregava um botão.
- Sou ótima costureira. Aprendi desde cedo. Posso te fazer um cachecol quando esfriar. Se é que vai esfriar. Não entendo mais nada.
- Também não entendo mais nada há muito tempo. Tudo o que aconteceu foi uma loucura. Quem poderia imaginar. Tudo o que perdemos. Pessoas, animais, tecnologia, avanços.
Calaram-se novamente. Mostrar o quão real era aquela situação distópica não a facilitava muito.
Depois de jantar foram até a pequena varanda do chalé. A noite era escura e ainda garoava. Lucas largado em uma rede, Alice numa pequena cadeira de balanço.
- Eu já tinha perdido quase todas a esperança em achar um outro ser humano. Ter com quem conversar e tudo mais.
- Eu estou realmente muito feliz de ter te encontrado naquela igreja, sabia? Acho que de alguma forma ficar sozinha, mesmo com tudo o que já aconteceu, não me faz nada bem.
- Você vai ficar então? Acho que não adianta eu prometer não te machucar. Mas vou tentar fazer de tudo para que tenhamos mais risadas que problemas. O que acha?
- Acho que vou ficar. Uma casa com comida, água, roupas limpas, cobertores, é algo difícil de se negar na atual situação. E a companhia também não é nada desagradável.
Lucas riu.
- Mesmo tendo sido um único dia, garanto que vou ficar muito feliz em me acostumar com esse sorriso.
Alice esticou a mão e tocou o braço de Lucas, um afago simples, cheio de carinho. Sua mão estava surpreendentemente quente, o rapaz se arrepiou. Sorriu inconscientemente. Ele segurou a mão da garota entre os dedos. Seus olhos se encontraram.
Ao deitar na cama e fechar os olhos, tudo que Lucas podia ver era o sorriso de Alice. Seus cabelos encaracolados, seus olhos brilhantes. Dormiu sorrindo sem nem notar que havia pegado no sono.
No dia seguinte tomaram café juntos, conversaram ainda mais. Descobriram um pouco sobre o passado um do outro. Tinham algumas coisas em comum. Gostavam de fotografia, teatro, dos Beatles e de DelToro. Detestavam novelas e sempre preferiram acordar cedo do que ir dormir tarde.
Lucas mostrou à Alice um pouco da rotina que costumava ter. Ela aprendia rápido. Passou a ajuda-lo em cada tarefa. Sua companhia deixava as coisas mais fáceis, mais leves. Ele passou a trabalhar sorrindo.
Com o passar dos dias foram ganhando intimidade. Se abraçavam depois de realizar uma tarefa mais complicada. Brincavam um com outro apagando lu8zes ou escondendo chinelos.
Na quarta feira seguinte acharam uma adega nos fundos de uma fazenda perto do chalé. Havia vinhos dos mais diversos tipos. Alice adorava vinhos. Lucas nunca fora muito disso, mas seria divertido beber acompanhado pra variar.
Tiveram uma das noites mais divertidas até então. Contavam histórias do passado, e riam, riam muito. Alice contou da primeira e única vez que fumou maconha. Lucas da primeira balada em que ofereceram “doce” e ele comeu pensando ser um chiclete.
Sentavam-se bem perto um do outro, no sofá da sala, as pernas meio entrelaças ficando meio de frente um pro outro. Os ombros se tocando levemente.
Não tinham bebido muito. A garrafa não estava nem na metade. Mas foi o bastante para começarem a falar de assuntos um pouco mais íntimos. Lucas contou que já beijara um homem e uma mulher ao mesmo tempo numa festa de faculdade. Alice contou que dormira com uma garota no primeiro dia de faculdade depois da festa do trote.
- Olha, eu nunca tinha acreditado quando disseram que uma mulher podia ser muito melhor na cama do que um cara. Descobri que estava errada.
- Ah é? O que ela sabia fazer que cara nenhum sabia?
- A gente não aprende a transar vendo filme pornô, né? O beijo é mais demorado, mais intenso, sem aquela pressa toda que vocês têm.
- Eu não costumo ser um cara apressado não. Nunca criticaram meu beijo.
- Nem o cara que você beijou.
- Nem ele. – Disse Lucas rindo meio constrangido.
- Fora que homem nenhum é capaz de chupar como uma mulher. A gente sabe exatamente o que gosta, entende?
- Isso é uma verdade. Demorei até que alguém me dissesse que eu fazia um bom sexo oral.
- Te disseram isso, é? – Perguntou Alice levando a taça à boca mais um vez esvaziando-a e jogando uma mexa de cabelo pra trás.
Lucas sorriu de novo, e tomado de uma coragem que não acreditava que fosse ter sem o vinho, se aproximou um pouco mais.
- Quer provar? Já faz bastante tempo, é possível que eu já não seja mais bom nisso sem treino.
Alice hesitou por um instante. Olhava para a boca e para os olhos do rapaz, meio hipnotizada. Soltou a taça vazia no sofá, afagou os cabelos dele e tocou seus lábios. O corpo de Lucas se eletrificou instantaneamente.
Sua boca era suave, macia. Segurou-a pelos cabelos, com a outra mão em seu ombro. Alice acariciava lhe as costas. A sensação foi incrível.
O beijo se tornou mais quente. Ele segurou-a pela nuca. Ela apertou sua cintura. Mordia lhe o lábio e ganhava de novo sua língua. Lucas sentia o calor do corpo aumentando. Aproximava-se mais e mais da garota, puxando-a pra perto.
A mão do rapaz já procurava mais pele, desceu suave pelo ombro da garota, baixando a alça do vestido que ela usava. Acariciava sua pele com a ponta dos dedos. Tocava lhe o decote, sentindo as bordas do sutiã dela.
Sem que percebesse, Alice ganhara uma voracidade incontrolável. Já se virara no sofá, apoiando-se no rapaz. Ele agora recostado, ela sobre ele, meio de lado. Passou uma perna para cada lado dele. Sentou em seu colo e o beijou ainda mais intensamente.
As mãos de Lucas ganhavam a cintura dela. Beijava seu pescoço ouvindo a respiração de Alice ofegar. A garota inclinava a cabeça para trás. Segurava o rapaz pela nuca, puxando seus cabelos.
Ele baixou a outra alça de seu vestido. Beijava lhe os ombros, o pescoço. Acariciava o colo de Alice ainda com a ponta dos dedos, causando arrepios. Ela descia a mão pelas costas dele, depois as subia e enroscava seu pescoço. Lucas desceu a mão pelas costas da garota. Margeando a coluna com a ponta dos dedos. Depois passou a mão por suas coxas grossas e apertou com força a bunda da garota fazendo-a sussurrar algo incompreensivo.
Quando se afastou para tomar um pouco de ar, as mãos dela percorreram o peito do rapaz. Puxaram lhe a camisa, sentindo o calor de sua pele. Logo a camisa estava no chão da sala. Lucas levantou levemente o vestido de Alice. Beijou seu colo vorazmente. As mãos dele voltaram a subir. Apertava a garota contra si. Baixou de vez as alças de seu vestido. Dessa vez junto com o sutiã. Sua boca logo se colara ao seio nu dela.
Quando se deu conta, Alice se viu carregada com o vestido preso como uma tira de pano sem função alguma em sua cintura, carregada nos braços quentes de um homem que a apertava com toda vontade que tinha.
Foi jogada na cama e despida de um jeito sedento. Depois beijada lentamente, sentindo o calor da pele do rapaz. Mal dormiram aquela noite. O tempo foi usado para saciarem uma vontade há muito reprimida.
Lucas acordou sem que abrisse os olhos. Lembrava claramente do doce cheiro do cabelo da garota. Da pele macia e suada sob seu corpo. De cada gemido de prazer ao pé do seu ouvido. Dos arranhões nas suas costas. Do corpo todo de Alice se contorcendo em êxtase com as pernas cruzadas em suas costas.
Abriram os olhos quase ao mesmo tempo. Assim que a olhou, Lucas riu. Olhou para baixo e mal pode acreditar que ela ainda estava nua. O corpo quente, macio. Uma obra de arte para os olhos treinados de um fotógrafo como ele.
Alice fez um leve carinho em sua barba. Beijou lhe os lábios e se levantou sem dizer mais nada. O rapaz não conseguia para de olhá-la. Quando ela saiu de seu campo de visão ele se espreguiçou, e assim que ouviu o barulho do chuveiro também deixou a cama e foi preparar o café.
Conversaram normalmente aquela manhã. Lucas ainda estava relutante em acreditar no que acontecera. Quando algum detalhe em particular voltava a sua mente, mais lhe parecia um sonho.
A garota parecia ignorar o que acontecera. Agia exatamente igual a todos os outros dias. “talvez um pouco mais carinhosa”, pensou Lucas. Conversaram sobre as mesmas coisas de sempre, fizeram as mesmas coisas. E no fim da noite ao bocejar ainda no sofá, Lucas não sabia se se despedia ou se chamava Alice para se deitar com ele.
- Já está tarde, né? – Pontuou ela ao perceber o bocejo. – Vamos, eu te faço um cafuné antes de dormir.
Alice se levantou, pegou ele pela mão e levou até o quarto. Antes que se desse conta, ela já o beijara e tirara quase toda sua roupa. Dormiu novamente com um sorriso no rosto, embora não tivesse entendido ao certo o que acontecera.
Dia após dia essa rotina persistiu. Durante o dia pareciam apenas colegas de quarto, realizando tarefas corriqueiras embora com uma certa tensão no ar a cada vez que Lucas sentia a garota tocá-lo mais demoradamente. Durante a noite, esforçavam-se para saciar as vontades mais primitivas que possuíam.
Duas semanas se passaram nessa mesma toada. O rapaz não conseguia criar coragem suficiente para falar sobre o assunto, sobre a relação que estavam criando. Tentava algum contato maior durante as atividades, as vezes a pegava pela cintura ou tentava roubar um beijo, mas em geral Alice apenas ria e o deixava ali, parado, com cara de bobo. Ele se irritava um pouco, embora soubesse que seria recompensado durante a noite.
Lucas estava acostumado a ser direto. Nada de joguinhos. Aquela situação era estranha para ele. Nunca fora muito próximo de ninguém (Talvez até por ser tão direto). Nunca se abrira de verdade. Gostava de conversar com Alice. Mas não falar sobre o relacionamento que estavam criando o deixava maluco.
Saíram mais um dia para ir até a cidade. O plano dessa vez era tentar conseguir sementes e mudas para começarem uma nova horta ou pomar perto do chalé. Ao chegarem na entrada da cidade, Lucas notou que algo estava diferente. O ar parecia mais denso, como se uma fumaça estranha pairasse sobre o lugar.
- Alguma coisa não me cheira bem. – Disse ele parando a bicicleta. - Acho melhor você esperar um pouco enquanto eu vejo o que houve.
- Nem pense em me deixar sozinha. Vou com você! – Respondeu ela irredutível.
Desceram da bike e se aproximaram com cautela. Lucas levava um pedaço de cano grosso que sempre carregava quando ia à cidade. Alice o seguia de perto, segurando seu braço, com a cabeça girando em todas as direções em busca de sinais de perigo.
Viram uma luz estranha e azulada vinda de uma esquina. A fumaça era densa, rodeava os pés deles enquanto caminhavam, vagarosamente em direção da luz. Quando chegaram, deram de cara com uma forma impressionante. Um ser de aparência humana, mas que parecia feito de metal liquido.
A primeira imagem que veio à cabeça de Lucas foi a de um personagem de uma revista de herói que surfava pelo espaço e filosofava sobre a vida. Nunca fora muito fã de quadrinhos. Não era capaz de lembrar seu nome.
Pararam a alguns metros do estranho ser. Lucas apertava a arma improvisada com tanta força que o nó de seus dedos já estava branco. Alice segurava seu braço com mais força. Seus pés inquietos deixavam claro que ela estava preparada para correr.
A criatura os olhava. Calada, cheia de curiosidade. Sem saber explicar o por quê, aquilo causava uma estranha fascinação em Lucas. Aquele ser parecia ser esculpido por um escultor, uma obra de arte que se mexia e...falava?
Não ouviram voz alguma sair de sua boca. Mas puderam escutar com clareza em suas mentes uma saudação.
- Me desculpem pela intromissão em seu planeta. Minhas leituras indicavam que a vida conhecida como humana estava extinta. É fascinante ver que ainda há espécimes aqui, de frente para mim.
Atordoada, Alice se mexeu inquieta. Olhou para Lucas com os olhos arregalados.
- Você também o ouviu falar.
Lucas apenas assentiu com a cabeça.
- Tivemos leituras de temperaturas e índices pluviais incompatíveis com o suportável por sua espécie. – Voltou a dizer a voz em suas mentes. - Sempre fui fascinado por estudar a vida. Por isso decidi vir pra cá.
Lucas baixou a mão armada, sem reação imediata.
- Quem é você? De onde veio?
- Essa forma de comunicação continua incrível mesmo depois de tanto tempo. Vocês chamam de “Fala”, correto. – Disse a voz na cabeça.
Mesmo não tendo expressões humanas que Lucas pudesse interpretar, sentia fascínio nas palavras daquele ser, não o temia. Mas ainda assim preferiu manter a posição defensiva.
- Vou perguntar apenas mais uma vez. – Disse erguendo novamente a arma improvisada. – Quem é você? O que quer aqui? De onde veio?
Sentiu uma onda de admiração invadir seus pensamentos. Aquele estranho ser parecia impressionado com o enfrentamento da criatura inferior tentando se defender.
- Sinto muito. Fiquei tão impressionado que não fui capaz de me identificar. Sou de uma galáxia distante. Um ser que vocês chamam de extraterrestre segundo minhas pesquisas. Como disse, vim pesquisar sobre seu planeta e as catástrofes que ocorreram recentemente.
- Você tem um nome ou algo assim?
- Não nos identificamos por algo simplista assim. Somos apenas indivíduos em meio ao universo. Mas para facilitar a conversa, podem me chamar de “Estrangeiro”, ou “Gringo”, pelo que pesquisei é assim que identificam alguém que vem de fora de sua terra natal.
Nem Lucas nem Alice puderam falar mais nada. Mas de repente foram invadidos por uma sensação de calma e tranquilidade.
- Sei que é um grande abuso ao que chamam de hospitalidade. Mas gostaria de pedir que compartilhassem comigo um pouco da experiência de vida pela qual vocês passaram aqui. Não quero atrapalhar seus hábitos e afazeres, apenas me deixem seguir com vocês. Em troca posso contar um pouco sobre os conhecimentos que adquiri com anos de pesquisas pelo cosmos.
Lucas ainda estava fascinado! Mal conseguia fechar a própria boca. Aquele ser estranho despertava nele toda sua curiosidade. Todo o lado aventureiro e a veia descobridora que guardara dentro de si desde a infância. Sempre quis viajar o mundo, conhecer culturas diferentes, lugares, comidas. Aquilo parecia simplesmente irreal. Ilógico. Mas ainda assim a maior oportunidade que já surgira em toda sua vida.
Alice por sua vez ainda estava temerosa. Aprendera a não confiar em estranhos (“embora as circunstancias tenham me feito a confiar em Lucas muito mais rápido do que eu poderia achar capaz”, pensou ela). Não parecia inclinada a permitir que aquele estranho partilhasse de sua rotina.
- Não vejo problema em que nos acompanhe - disse Lucas sem esperar concordância da parceira. – Mas se tentar qualquer coisa contra qualquer um de nós, saiba que as consequências serão cruéis.
- Não tentarei nada que atente contra a vida de nada nem ninguém em seu planeta. Essa não é minha natureza. – Respondeu ele, como se aquelas simples palavras encerrassem o assunto.
Alice tentou fazer contato visual com Lucas. Queria conversar melhor sobre o assunto. Mas o rapaz parecia hipnotizado. Antes que pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, a criatura falou novamente em suas cabeças.
- Por favor, sigam sua jornada então, continuarei aqui tomando notas. Se não for incomodo demais tirarei minhas duvidas sempre que elas forem pertinentes.
Lucas finalmente fez contato visual com Alice. A garota não parecia nada feliz. O rapaz, por sua vez estava em êxtase.
- Você tem noção do quão privilegiados estamos sendo? Estamos fazendo contato com alienígenas pela primeira vez na história. Quem sabe o que podemos aprender com eles. Ele pode nos salvar dessa situação terrível. Ele fala com o poder da mente!
Ao ouvir a ultima frase a garota pareceu mudar de opinião. Apesar do risco, sabia que aquilo poderia sim ser uma grande oportunidade. “Talvez, assim como o destino me trouxe Lucas, trouxe também uma chance de começar uma nova vida, com muito mais expectativas do que a que íamos levar”.
Lucas parecia uma criança que acabara de descobrir como é possível sentar numa cadeira de pregos sem se machucar, ou como funciona a fotografia. Estava tão empolgado que nem mesmo se lembrava do que viera fazer na cidade. Pegou Alice pela mão e a conduziu de volta até a bicicleta.
O estranho os seguia de perto. Parecia flutuar acompanhando as pedaladas animadas do rapaz. Durante todo o caminho questionou-os sobre os últimos acontecimentos. O que havia sido noticiado e o que fizeram com aquilo tudo. Apesar de doloroso pelas lembranças, falar com alguém que via a situação de fora parecia florescer cada vez mais a esperança em seus corações.
Assim que chegaram, quis saber detalhes sobre o estilo de vida que levavam, sobre festas e datas comemorativas que havia estudado. Perguntou sobre como se relacionavam com outros humanos. Como era o sistema social. Responsabilidades, direitos, deveres.
Alice se animou um pouco respondendo tudo aquilo. Refletir sobre o modo em que viviam parecia reconfortante naquele momento completamente estranho e sem sentido.
A medida que se soltava Lucas também enchia o estrangeiro de perguntas. Queria saber se havia mais vida inteligente no universo, quais a tecnologias, como a sociedade evoluiu em relação à humanidade.
- Somos espécies diferentes. Não uma evolução linear. Mas as formas primitivas de comunicação que vocês usam, por exemplo, foram extintas há muito tempo. As tecnologias já foram bem próximas às que seus filmes futuristas mostravam. Mas há muitos as deixamos de lado também. Descobrimos que o segredo, ao menos para nossa espécie, estava em nos desenvolvermos como indivíduos. Quanto mais nos conectávamos conosco, mais fácil era se conectar com o próximo.
- Por aqui deixamos cada vez mais de pensar sobre questões importantes. Nos especializamos em construir maquinas. Talvez por isso tenhamos virado máquinas sem nem nos darmos conta. – Respondeu Lucas reflexivo.
- Há uma leitura muito maior de conflitos e guerras no seu planeta do que na maioria dos lugares que ainda sobrevive. Existiram é claro máquinas, armas e guerras em outros lugares. Mas assim como as Terra, eles também sucumbiram. Muito me surpreende, na verdade, o fato de vocês dois ainda estarem vivos.
- Acho que foi sorte. – Respondeu Lucas sorrindo ao olhar para Alice.
- Pois eu achpo que foi o destino. – Pontuou Alice.
- Destino...Esse é um conceito que para minha espécie é bem difícil de ser compreendido. A explicação universal humana. O sentimento de que tudo está escrito por alguma força superiora e pouco pode ser feito para mudar isso.
- Vocês não acreditam em nada parecido com isso? – Perguntou ela.
- Não. – Respondeu ele, sinceramente. – O universo foi criado por uma série de acasos, esses acasos tem o poder de alterar nossas vidas. Mas pouco ou nada significam dentro da grandeza do universo. Pouco ou nada significam se você tem total controle sobre suas ações e emoções.
Cada palavra do estrangeiro fazia o transe em que Lucas estava aumentar. Ouvia várias coisas que pensava, mas não gostava de conversar sobre com mais ninguém com medo de parecer arrogante ou simplesmente não ser aceito. Além do mais, o estudo do universo como um todo sempre o fascinou. Adorava fotografar o céu. “Nosso pedacinho do espaço”, como ele gostava de chamar.
Em determinado momento o estrangeiro começou a perguntar coisas um pouco mais intimas. Sonhos, medos, decepções, vontades, fetiches. Nem Lucas nem Alice costumava falar abertamente sobre aquilo. Mesmo estando há algumas semanas numa relação mais intima, não eram assuntos em que se sentiam confortáveis para abordar. Mas estranhamente falaram frente aquele estranho.
Foi como se uma descarga elétrica estivesse passando pelo corpo de Lucas. Via a cena racionalmente como uma estranha terapia de um casal que não se amava mais, mas algo em sua mente fazia-o sentir completamente liberto.
Alice, por outro lado, se sentiu um pouco invadida. Apesar da onda de liberdade também tentar invadir sua mente, ela permaneceu fechada. Algo em seu subconsciente dizia que ainda era cedo demais. Estranho demais. Não falara sobre aquilo nem com os pais que tanto amara. Não seria com estranhos que ela ia se abrir.
Ao perceber o desconforto, o estrangeiro parou de confrontá-la. Concentrou-se em Lucas que parecia ainda mais animado. Passado algum tempo, Alice se sentiu bastante deslocada naquela cena.
- Lu, já está tarde. – Disse ela muito mais carinhosa do que o normal.
Lucas animado demais mal percebeu o que ela tinha dito.
- Lucas, por favor, vamos deitar. Preciso dormir um pouco.
- Não quero atrapalhar rotina nenhuma aqui. – Disse o estrangeiro, de repente. – Peço que me deixem permanecer em sua casa. Mas não vou incomodar seus hábitos, nem sua intimidade. Peço desculpas inclusive se fui longe demais, Alice.
Lucas pareceu despertar de um transe quando aquelas palavras invadiram sua mente. A menção no nome da companheira o incomodou um pouco. Sentiu raiva por que aparentemente por causa dela a conversa iria se acabar. Mas também foi tomado por um espirito protetor que o alertava para estar ao seu lado, protegendo-a desse ser que ainda era um estranho.
Deitaram abraçados. Alice recostou em seu ombro e acariciou o peito do rapaz. Grudou o lábio em seu tronco e suspirou. Lucas não lhe deu atenção. Mantinha os olhos no teto, a cabeça vagando pelo espaço, há anos luz daquele quarto. Estações tecnológicas, naves, estrelas e aquele estranho ser prateado voltavam a sua mente de novo e de novo.
Dormiram sem fazer amor. Permaneceram abraçados durante a noite toda. Mais pareciam mais distantes do que qualquer outro dia.
Alice acordou no dia seguinte sem a certeza de que aquilo tudo fora real. “Um ser alienígena nos encontrar no meio do nada depois de quase toda vida na terra ter sido exterminado”. A própria frase em sua cabeça parecia risível. Mas quando se levantou, o estrangeiro estava lá. De pé na varanda, olhando o horizonte fixamente.
- Dormir parece uma atividade bastante importante para vocês. A leitura hormonal é bem diferente. – Disse a voz em sua cabeça assim que a viu.
- Não parece muito correto você fazer leituras tão intimas enquanto dormimos. – Respondeu ela, inconformada.
- Peço perdão por isso. Ainda tenho certa dificuldade para entender que quando vulneráveis vocês se tornam mais reclusos e defensivos. Uma reação natural, se quer minha opinião, devido à fragilidade de seus corpos e mentes.
Alice percebeu que não havia qualquer intensão de magoá-la ou diminuí-la ao ouvir aquilo em sua cabeça. Era apenas uma constatação feita por um pesquisador. Mas não gostava de se sentir um rato de laboratório.
- Não faço questão de saber sua opinião quanto ao meu nível de hormônios. Obrigada.
Lucas logo chegou atrás dela, Abraçou-a por um instante e beijou seu rosto.
- Bom dia, estrangeiro. Avanços em sua pesquisa? – Perguntou Lucas já animado pela manhã.
- Na verdade tenho me intrigo cada vez mais conforme descubro. Mais e mais perguntas se formam ao tentar entender as relações entre sua espécie Como em qualquer pesquisa, é claro. Por exemplo, minhas pesquisas indicam que humanos copulam não apenas pelo prazer, mas também pela liberação de hormônios que geram prazer e satisfação. Apesar de ver traços considerados carinhosos entre vocês dois, os níveis hormonais não indicam que copularam.
O constrangimento na varanda foi palpável. Alice não sabia o que fazer. Há muito não se sentia tão julgada. Encolhera-se sem tomar consciência. Seu peito se encheu de raiva pela frase.
Lucas também se sentiu incomodado, mas disfarçou bem. Mudou de assunto rapidamente e foi preparar café. O dia seguiu sem que se tocasse naquele assunto novamente.
As conversas longas e filosóficas continuaram. Alice voltava a responder as perguntas, mas ainda se sentia deslocada. Lucas se entregava completamente. Estava fissurado por ouvir alguém falar tão abertamente sobre os problemas e vícios da humanidade. E seus olhos brilhavam cada vez mais intensamente quando ouvia sobre a vida no espaço.
Na segunda noite fez amor com Alice. Já não havia a mesma intensidade das primeiras vezes. Pareceu a ele uma espécie de obrigação após o que o estrangeiro dissera. Era necessário “Mostrar serviço”. Para ela o sexo também fora protocolar.
Mais uma vez os sonhos de Lucas foram repletos de imagens espaciais. Mais uma vez a estranha figura do estrangeiro tomava sua mente, causava-lhe arrepios. Nunca se sentira tão atraído pela mente de alguém. Não só pela mente, na verdade, o corpo metálico, brilhante o enchia de curiosidade.
Na terceira noite não foi se deitar com Alice. Permaneceu na sala conversando com o estrangeiro após ela ir dormir. Seu sorriso se tornara constante, assim como o brilho de seus olhos.
Bebeu um pouco pra mostrar o efeito do álcool no corpo humano. Uma das fugas mais comuns dentro do próprio corpo, como indicavam as pesquisas. Em certo momento da conversa não se conteve. Tocou o peito prateado daquele estranho.
- Do que exatamente você é feito? Nós humanos nos acostumamos com o calor e a textura da carne e do osso. Você parece mais tecnológico, mais robusto, mais frio. Mas eu esperava uma textura metálica. Isso é muito diferente.
O estrangeiro não demonstrou reação alguma a ser tocado. Apenas respondeu calmamente:
- Minha constituição é algo além da sua compreensão. Elementos químicos que nem mesmo existem em seu planeta. Não precisamos de nutrientes externos para sobreviver como vocês, por exemplo.
- É simplesmente fantástico.
- Fantástico é ter um organismo tão frágil e tão complexo como o humano. Esse calor que vocês mesmos geram se protegendo do frio. – Disse ele também tocando o peito de Lucas.
- Diga-me algo. – Exclamou Lucas, de repente. – Você perguntou sobre o modo de copular dos humanos. Como sua espécie faz?
- Você pergunta sobre reprodução ou sobre prazer? – Disse a voz dentro da cabeça de Lucas enquanto o estrangeiro acariciava sua nuca e seus cabelos.
- Sobre prazer. – Respondeu ele num sussurro incontrolável.
- Não existe em minha espécie o que vocês chamam de sexo. Mas somos incentivados desde sempre a buscarmos conexões prazerosas para melhora do rendimento e um completo estado de relaxamento. Mas é algo além de qualquer expectativa que você possa ter. – A mão metálica se encaixou em seus cabelos puxando-os levemente.
- Quem me dera poder provar. – Disse o rapaz olhando fixamente para o rosto do estrangeiro, tocando seu queixo delicadamente.
A mão do rapaz se demorou em seu queixo e desceu para o pescoço. Com as costas da mão o tocou, leve como ceda. Passou a ponta dos dedos por seus ombros, aproximava cada vez mais o próprio rosto do dele.
O estrangeiro segurou seus cabelos com mais força e venceu a distância entre seus rostos, aproximou a boca do pescoço de Lucas. Aquele era um toque diferente de qualquer outro que já sentira.
Seu corpo se eletrificou por completo. Sua mente pareceu liberta de qualquer amarra social. Algo transcendeu dentro dele. O exato oposto de qualquer contato que já tivera. Nada do calor humano sempre tão valorizado. Aquele toque frio ia além de qualquer sensação já experimentada.
Sem que percebesse, Lucas teve suas roupas arrancadas e jogadas ao pé do sofá. Seus lábios tocaram aquela pele metálica. A sensação era estranha, mas muito boa. Diferente de tudo, tudo.
Permitiu-se entregar de vez. Sua mente desacelerara ao mesmo tempo que parecia andar a mil por hora. Sentia a exata intensidade de cada toque, cada gesto, cada movimento, cada pensamento. Como se fosse capaz de alcançar sensações orgásticas com toques sutis. Sem as preocupações que se acostumara a ter com Alice por exemplo. Deixava sua mente o guiar. Não se preocupava mais com o tempo ou com os sons ao redor.
O tato o conduziu. Não ousava abrir os olhos. Suas mãos, pernas e lábios percorriam aquele corpo metálico. E aquele corpo percorria o seu sem maiores restrições. Sentiu prazer infinito ao ser tocado em lugares nunca antes imaginados. Alcançara um êxtase inexplicável.
Despertou exausto de uma espécie de transe. Estava sozinho no sofá. Deveria sentir-se culpado pelo que acontecera. Mas simplesmente não conseguia. Em sua cabeça, devia mais fidelidade a Alice, mas as sensações que alcançara simplesmente não tinham comparação. Respirava ofegante. Memórias o tomavam de súbito. Não era capaz de parar de sorrir. Preferiu não voltar pra cama.
Alice estranhou acordar sozinha quando um facho de luz invadiu o quarto. Foi rapidamente até a sala e encontrou Lucas deitado no nú no sofá. Seu peito subia e descia de forma ritmada. De repente ele despertou.
Se olharam por um segundo sem saber dizer o que sentiam. E antes que pudessem falar qualquer coisa, a porta se abriu.
O estrangeiro pareceu flutuar até eles. A voz novamente tomou suas mentes:
- Agradeço infinitamente por todo o auxilio que me proporcionaram em minhas pesquisas. Mas meu trabalho aqui acabou. Devo retornar o quanto antes. Mas tenho uma proposta a lhes fazer.
Ambos olharam perplexos para aquela figura imponente.
- O planeta de vocês está condenado, embora ainda reste um tempo considerável a níveis humanos para ele. Vocês podem viver intensamente como sempre fizeram e aproveitar cada instante que esse incrível lugar há de proporcionar. Ou podem vir comigo. Não há tamanhas belezas naturais em meu planeta. E eu não posso garantir que terão a vida prolongada ou melhorada. Não terão para quem contar histórias do que descobrirem, mas serão experiências novas que devem expandir em muito sua forma de pensar. Nada do que conhecem seria igual, mas talvez isso não seja ruim.
Nenhum deles soube o que dizer. Permaneceram boquiabertos olhando para o estrangeiro. Foi Lucas quem primeiro respirou fundo e respondeu:
- Alice, não tenho como negar tal proposta. Uma infinidade de possibilidades se abriria e...
Ao perceber o olhar da garota ele parou de falar.
- Não estou pronta.
- Mesmo depois de tudo o que aconteceu? Depois das catástrofes, de conhecer o pior do ser humano. Você não se sente inclinada a simplesmente sair daqui.
- Eu nunca fui de desistir. Gosto demais desse lugar para fugir deixa-lo.
- Não há mais ninguém aqui. Somos os últimos humanos da Terra. Podemos começar de novo lá. Sei que nunca quis falar sobre isso, mas podemos nos casar, ter filhos. A nova gênese da humanidade longe da Terra. Você é capaz de compreender a importância disso?
- Como eu disse, não estou pronta. Você, se quiser deve ir. Não posso impedi-lo de fazer as próprias escolhas. O que vivemos foi ótimo. Você me ajudou e foi fundamental para que eu me reerguesse, não esquecerei disso. Mas essa é uma jornada que é só sua. Sinto muito.
Ela não pode conter as lágrimas. Praticamente correu pelos poucos metros que os separavam e beijou seus lábios uma ultima vez. Sabia que a decisão dele já tinha sido tomada. Acenou mais uma vez para o estrangeiro que ainda a olhava, sem expressão alguma, deu as costas e voltou pro quarto. Colocou o travesseiro sobre a cabeça e chorou. Não se deu conta de ter adormecido.
Acordou assustada. Como se tivesse despertado de um sonho muito, muito longo. Saiu da cama e se olhou no espelho. Os olhos ainda estavam um pouco inchados. Mas a pele negra parecia mais saudável do que nunca. Os cabelos cacheados pareciam cheios de vida.
Andou pelo chalé. Estava só, mas cheia de energia renovada. Talvez fosse recomeço que ela tanto precisava. Decidiu que juntaria as coisas que precisava e andaria pelas cidades em busca de sobreviventes. “Se me acharam assim, quem sabe o destino me faça guiar alguém”.
Foi até o velho calendário que Lucas sempre deixava ao lado da cama. Ele não parara de marcar os dias. Naquele momento em que mal conseguia distinguir o que fora real o que fora sonho, tinha apenas uma certeza.
Era quarta feira!