2020 - Reinos em Guerra

Havia paz naquele reino. Por muito tempo as quatro cortes principais compartilhavam aqueles vastos domínios. E a influência daquele reino ia muito além dos limites das últimas muralhas que o separavam de todo o resto lá fora. Todos os demais reinos ao redor também compartilhavam seu poder entre três ou quatro cortes, nunca interferindo um com o outro.

Pequenos mas numerosos reinos menores se espalhavam por todos os lados. Um barril de pólvora, sempre prontos para invadir, trazer o caos e anexar mais espaço a seus diminutos domínios. Mas não se atreviam a tal, pelo menos não sem um empurrão inicial importante. Um motivo, um estopim...

Certamente as muralhas que cercavam aquele reino o defendia de investidas externas mais ousadas. Havia uma muralha para cada uma das quatro cortes, protegendo as doze casas nobres de cada uma delas. Cada qual abrigava em perfeita harmonia seis casas religiosas e seis casas seculares de nobres. Um reino sem reis? Sim, um reinado compartilhado! Que funcionava muito bem!

Guardas dedicados protegiam incansáveis cada uma das quatro muralhas internas das cortes. Vigiavam zelosos, mas mesmo para se chegar neles seria necessário primeiro atravessar a grande muralha externa, compartilhada pelas quatro cortes. Esta sim! Percorrida o tempo todo por um enxame de guardas vigilantes, vasculhando cada um de seus cantos, a tornava praticamente intransponível!

Os nobres da corte norte foram os primeiros a detectar que algo ia mal no espaço ao seu redor. Observavam os pequenos principados mais próximos, em especial os três distribuídos ao redor de sua corte num perfeito triângulo equilátero. Reinos bem pequenos, originalmente formados de uma única casa nobre secular, uma muralha parcamente vigiada por um único (embora zeloso) guardião. Era frágil, apesar de resoluto! Aceitou racionalmente ser anexado a um domínio maior, mais estável e protegido. Foi assim que dez daqueles pequenos reinos se incorporaram às quatro cortes principais, passaram a ser protegidos por sua muralha externa. Os bravos guardiães originais sabiamente se integraram ao enxame de guardas do reino combinado, lhe dando uma força maior ainda que aquela que ele já possuía. Insistiram em manter suas casas seculares à parte, mas mal algum isto faria ao se levar em conta a estabilidade do todo. E assim os dez pequenos reinos se fundiram aos quatro iniciais, formando um mundo de paz indescritível... até agora!

Com quatro casas nobres a mais em sua corte única, os reinos errantes eram até mais fortes que cada uma das quatro cortes principais individualmente. Inclusive haviam mais guardas protegendo sua muralha externa! Necessários? Não, quatro era o ideal para proteger a superfície da muralha. Os dois adicionais eram ofensivos! Claramente estavam lá para sobrar, para atacar! Só lhes faltava a iniciativa...

Não dava para perceber claramente alguns detalhes do mundo externo através da diáfana calota esférica combinada das duas muralhas. Esférica? Sim, eram esféricas! Muralhas circulares podiam até ser eficientes num mundo plano, onde não existia a possibilidade de ataques por ar. Mas, soltos no espaço, as cortes não repousavam em nenhum plano. As casas nobres flutuavam rodeadas de vazio em todas as três dimensões espaciais existentes. Nestas circunstâncias as muralhas eram, como precisavam ser, esféricas, protegendo as cortes que flutuavam livres em seus centros...

Os errantes se aproximavam com velocidade inacreditável! O embate parecia impossível de se evitar! Após um longo período de paz atravessando os espaços, parecia ser hora de reagir, de enfrentar a força do Caos que parecia gritar ensandecida, vinda do norte!

Eles tentaram resistir com bravura! Aquela paz era preciosa demais para ser entregue assim tão facilmente, mas... os errantes eram numerosos! Atacando caóticos, desafiavam qualquer tentativa de reação organizada. As quatro cortes tentaram aguentar o máximo que puderam, mas enfim se renderam ao desmembramento. Os sub-reinos periféricos se associavam rápido, aos pares, com os errantes invasores! E, numerosos, os quatro reinos enfim não conseguiram resistir ao ataque dos reinos errantes atacando aos pares, sedentos de espaço... Foram forçados a se anexarem.

Muitos eram os reinos semelhantes àquele ao redor. Alguns de três, outros de quatro cortes. Mas, até então, convivendo pacificamente. Pareados e impulsionados com aquela energia extra misteriosa, os errantes acabaram vencendo todas as batalhas! De onde vinha esta energia extra? Ah, ironia do destino! O desmembramento dos reinos gerava esta energia extra! A sobra de energia de um reino destruído impulsionava os próximos ataques dos errantes, numa reação em cadeia!

Todos os reinos foram afetados. Quantos daqueles reinos existiam? Centenas? Milhares? Milhões? Bilhões? Você está bem longe da verdade. Na realidade eram bem mais que bilhões de bilhões de bilhões de reinos parecidos, todos enfrentando aquela mesma batalha! Uma batalha sangrenta, impiedosa... mas que poderia ser resumida simplesmente assim: "2 C4H10 + 13 O2 -> 8 CO2 + 10 H2O"

Em algum lugar deste Universo incomensuravelmente grande, um ser monstruoso aproximava uma fagulha da boca de seu fogão, tomado de uma combinação de propano e butano, e acendia uma chama para preparar seu chá. Aquecia incontáveis reinos H2O contidos numa chaleira de dimensões incomensuráveis.