2020 - "Corte o fio verde!"

Enquanto se aproximava da sala principal foi percebendo ter tomado o caminho correto dentro daqueles tubos de ventilação. Cabia bem justo dentro deles, deslizando devagar. Sim, havia se preparado há bastante tempo para isso, emagrecera bastante para poder passar por aquelas tubulações finas. Acertou no planejamento: alguns gramas a mais de gordura comprometeriam toda a missão, o fariam entalar naqueles tubos de ventilação.

Aspergiu a neblina para visualizar o laser infravermelho à sua frente. Por que alguém colocaria sensores dentro das tubulações de ar? Para detectar ratos? Bom, o fato é que os sensores estavam lá, e ele precisaria bloqueá-los. Colou cuidadoso um arco de fibra ótica na parte superior do tubo à sua frente. Chegava agora a parte complicada: desviar a luz do emissor com espelhos para que ela entrasse no cabo óptico, fizesse uma curva e, na outra ponta, desviar também com espelhos para o receptor, para que o feixe de laser não fosse interrompido quando ele passasse pelo sensor. A luz precisaria fazer uma curva.

Tentar colocar simultaneamente os dois espelhos, um de cada lado? Impossível, meus caros! Por melhor que fosse seu treinamento, por mais apurados que fossem seus reflexos, não dava para competir com os 300 mil quilômetros por segundo do feixe de fótons. Precisaria ser feito em etapas, como ele já se cansara de treinar antes. Primeiro colocou um prisma de difração no meio do feixe, que não o interrompia e, ao mesmo tempo, desviava uma parte muito pequena do infravermelho numa direção perpendicular. Um sensor portátil captando este feixe desviado lhe permitiria descobrir a frequência exata do infravermelho. Feito: a primeira parte do treinamento que repetira milhares de vezes fôra concluída com sucesso! Programou então esta frequência exata num emissor laser portátil. Um dispositivo laser capaz de emitir tal luz numa frequência qualquer que fosse fornecida, com aquela precisão espantosa? Era a última palavra em tecnologia de espionagem!

Começava agora a parte complicada: disparar o novo feixe em direção ao receptor, sem interromper o original, e sem que ambos chegassem simultâneos. Os projetistas do sensor não eram imbecis! O alarme seria disparado rápido se de repente fosse captado dois lasers simultâneos, um feixe combinado com o dobro da intensidade do previsto! O pequeno espelho foi subindo com cuidado. Ao mesmo tempo que interrompia aos poucos o feixe original, ia revelando o feixe novo. As duas partes somadas nunca poderiam ultrapassar a intensidade original do feixe luminoso, e por isso ele foi subindo o pequeno espelho com cuidado, com uma frieza de nervos resultado de anos de treinamento. Estava feito: feixe original interrompido, e sensor captando o feixe novo. Sem alarme disparado. Acabou, não é? Agora era só avançar...

Errado! Lembram que a passagem era bem justa? Pois bem, mesmo o pequeno emissor laser portátil era grande o suficiente para lhe impedir a passagem! Lembram da fibra ótica ao redor da parte superior do tubo? Pois bem, esta manobra toda foi apenas para que se tornasse possível continuar com o plano original: desviar o laser!

Pôde enfim inserir o micro-refletor, em forma de L, na ponta emissora daquele sensor. Ele dirigia os raios em direção à fibra ótica, que o forçava a descrever uma curva em torno da tubulação e saía na outra extremidade. No momento sem o segundo refletor correspondente, ele fazia o raio atingir o "chão" do tubo de ventilação, tangenciando rasante o emissor. Era hora da segunda interferência nos raios. Precisava aos poucos, da mesma forma que fizera a princípio, interromper os raios do emissor substituto enquanto devolvia o raio original, ao final do arco de círculo que agora descrevia. Com a mesma precisão, foi aos poucos descendo o pequeno prisma, devolvendo pouco a pouco ao receptor do sensor laser original.

- Tudo correndo bem até agora! - transmitiu seu comunicador num canal de áudio criptografado. - Pronto para desligar o gerador portátil e avançar à câmara central.

- Prossiga, Enguia de Ônix!

Enguia de Ônix? Quem será que cria estes nomes falsos ridículos que eles usavam nas comunicações. E, se usavam um canal criptografado inviolável para se comunicarem, por que não usavam seus nomes reais? Ele sabia muito bem com quem estava falando, e seu interlocutor idem! Mas prosseguiu respondendo conforme o protocolo:

- Certo, Sardinha Dourada!

Uma micro gotícula de suor frio brotou em sua testa enquanto ele desligava o emissor portátil. Ele ainda era humano! Ainda sentia medo! Mas, felizmente, nada aconteceu. O desvio do laser fôra um sucesso! Agora era só limpar o caminho para atravessar em meio àquele sensor com feixe infravermelho desviado.

Ah, ainda bem que as pessoas precisavam respirar! Isto tornava os sistemas de ventilação indispensáveis em qualquer instalação subterrânea super-protegida, apesar de todos saberem há décadas que representavam a maior falha de segurança de todos eles, a parte mais vulnerável de qualquer estrutura protegida! Era graças à necessidade humana de respirar que ele agora se encontrava naquela câmara central, saindo de um duto de ventilação mínimo onde mal passaria um rato! Certo, estou exagerando um pouco mesmo. Diria... um gato bem grande! Melhorou? O fato é que ele entrou lá graças à dieta forçada que o reduzira a 44 quilos! Com aquela altura? Vestindo aquela roupa colante preta, percebeu que o codinome "Enguia de Ônix" era mesmo bem adequado! A cirurgia para remoção de dois pares de costelas reforçavam ainda mais esta impressão... Mas não se queixava! Sabia muito bem a que precisaria se sujeitar quando aceitou aquela profissão de espião especialista em invasões.

- Sardinha Dourada, já consigo ver a caixa daqui!

- Os balões de hélio já estão cheios?

- Sim!

- Prossiga com cuidado! Os sensores no chão detectam qualquer peso superior a 5 quilogramas! Pise com cuidado, e nunca se solte dos balões!

- Combinado!

Além destes sensores no chão, não haviam outros mais sofisticados naquele espaço. Ninguém mesmo imaginou que alguma vez alguém conseguisse chegar até ele. E este foi o grande erro dos que projetaram aquele lugar! Subestimaram a capacidade de alguém chegar até lá sem ser percebido. Subestimaram a SUA capacidade de chegar lá sem ser percebido. Ele caminhava orgulhoso de si próprio, saboreando sua vitória a cada passo suave tocando de leve aquele chão...

- Pode soltar os balões agora! Não existem sensores em torno da caixa.

Ele o fez, aliviado em poder sentir de novo todos seus 44 quilos sobre aquelas pernas finas. Começou a desativar os mecanismos de segurança da caixa, procedimento que ele também já ensaiara, como sempre, milhares de vezes.

- Iniciando abertura da caixa usando descriptografia por força bruta.

- Não é necessário, Enguia de Ônix! Já temos a senha.

- Como?

- Uma confissão de um dos projetistas da caixa, que capturamos...

- Melhor não arriscar, Sardinha Dourada! Eles são treinados para mentir.

- Mentir? Com 200 miligramas de pentotal sódico no cérebro? Sem chance, amigo! - riu-se o coordenador da operação, a centenas de quilômetros de distância dali.

- Ainda usam o Soro da Verdade? Nem imaginava isso.

- Com certeza tem mais um monte de outras coisas que você não imagina, meu caro! Se concentre só no seu trabalho, ok? Anote aí a sequência de abertura: 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23...

- Êpa!! Êpa!!! Espera aí! São os primos???

- Como?

- A senha deles para abrir a caixa é a sequência dos números primos?

Ignorante total de princípios matemáticos, Sardinha Dourada respondeu impaciente:

- Sei lá, cara! Geometria nunca foi meu forte! Só entra aí com os números que estou te passando, certo? Parei onde? Ah é! 23, 29, 31... Está anotando?

- Positivo!

A caixa se abria diante de seus olhos maravilhados! Quem seria o imbecil capaz de colocar como senha a sequência dos números primos até 41? Era tão óbvio! AH,está explicado! Óbvio demais! Tão óbvio que ninguém pensaria que ela seria senha de algo tão importante! Tão óbvio que ninguém nem mesmo experimentaria testar esta senha ridícula se tentasse invadir a caixa. Por isso mesmo, por sem bem improvável, impensada... por isso mesmo ela foi a escolhida!

Ele olhou seus circuitos maravilhado. Agora tudo dependia dele! Ninguém sabia o que haveria dentro da caixa. Só quem a visse se abrindo diante de seus próprios olhos!

- Descreva, Enguia de Ônix!

- Um circuito, um display de quatro dígitos de sete segmentos sobre ele fazendo uma contagem regressiva. No momento marca "04:38".

- Sim, um mecanismo de auto-destruição. E você tem menos de 5 minutos para desativar. Sinto não poder te ajudar muito até você analisar com mais cuidado o circuito, meu amigo. Boa sorte!

Uma corrida contra o tempo! Agora ele veria se toda sua vida valeu a pena! Se desse tudo certo, sua vida não teria sido em vão! Milhões de vidas poupadas! Anos de treinamento coroados! Toda vez que ele abdicou da própria vida, de prazeres comuns, ao alcance de qualquer pessoa, para se dedicar a DESATIVAR aquilo... tudo seria recompensado! Teria servido a um propósito! E se falhasse? Uma vida que tinha tudo para ser boa, trocada por uma aposta que não deu certo... Nada disso! Devia afastar esta ideia! Se concentrar no que precisava fazer agora!

Havia uma fonte de energia. Todo circuito elétrico precisa ter uma fonte de energia! Como eles funcionariam sem ela? "04:27", mostravam os displays digitais. Fontes falsas? Sim, haviam umas 3 ou 4 no circuito. Obviamente aquele circuito possuía várias partes inúteis, construídas apenas para confundir alguém na remota hipótese de que conseguissem invadi-lo, observar seus obscuros mecanismos. Mas ele fôra treinado a reconhecer tais embustes. Afinal, ele era o "Enguia de Ônix"!!

- Tem um CI bem ativo aqui! - disse ao medir sua atividade com um multímetro barato. - Acredito que seja o temporizador digital!

- Tem algum código nele? Qual formato? Quantos conectores possui? Qualquer informação é útil, amigo!

Ele olhou atento. Tinha inúmeras pernas, mas entre seu treinamento, contagem rápida de peças eletrônicas era uma das especialidades.

- Quadrado, 27 conectares de cada lado, sendo que uma claramente é falsa...

- Ótimo trabalho, Enguia de Ônix! - disse Sardinha Dourada quando o marcador mostrava "04:07". - Existem poucos circuitos conhecidos usando este temporizador. Aguarde contato!

Ele olhou para o circuito detonador enquanto esperava. Um caos proposital, sem dúvida alguma! Quando vemos aqueles dispositivos de contagem regressiva no cinema, em filmes de espiões, nem imaginamos como são exagerados! Vocês acham mesmo que são necessários tantos CIs, tantos elementos eletrônicos assim para montar UM CIRCUITO CUJA ÚNICA FINALIDADE É FAZER UMA CONTAGEM REGRESSIVA E DISPARAR UMA BOMBA QUANDO CHEGAR NO ZERO? Qualquer aluno do primeiro ano de eletrônica digital pode te mostrar como fazer isto, e se o circuito precisar de mais de dois CIs para executar esta tarefa, pode ter certeza que foi mal projetado!

Como ele bem sabia, aquele circuito era complexo de propósito! Para que fosse difícil desativá-lo! Quer proteger algo? Encha de lixo, pra ninguém mais conseguir diferenciar o que realmente é necessário daquilo que está lá só para atrapalhar. Qual a surpresa? A coca-cola sempre fez isto pra proteger sua fórmula secreta das análises espectrográficas...

"03:39". O tempo corria! Analisou com mais cuidado o circuito. Fios coloridos partiam e entravam em vários pontos! Era uma comunicação importante! Lógico que obviamente falsas. Aqueles fios pretos, por exemplo, poderiam ser tudo... menos o fio TERRA do circuito! Isso era o padrão, o esperado. E era tudo que eles, os projetistas, não queriam que possíveis invasores soubessem. Mas e se... Bom, ele também não esperava números primos como senha. E se, desafiando impossibilidades óbvias, os fios pretos fossem mesmo fios terras? Começaria a tirar a dúvida com seu multímetro quando veio o aviso urgente:

- Não toque nos TERRAS! Não são o que parecem!

- Como assim, Sardinha Dourada?

- Acreditamos que este circuito seja NEGATIVO, complementar! E que o TERRA dele seja na verdade o potencial elétrico mais alto.

- Engenhoso!!! Nunca pensaria nisso!

- Pois pode pensar, cara! Aguarde mais instruções, por favor.

Aquilo era mesmo algo projetado por mestres! Colocar o terra, referencial ZERO de qualquer circuito elétrico, como a verdadeira fonte de um circuito que funcionava totalmente em potenciais elétricos negativos? Simples e, ao mesmo tempo, genial!

- O que existe em volta do circuito temporizador, Enguia de Ônix?

- Resistores, capacitores... não estou certo quais são de verdade e quais está lá só para confundir.

- Não faz diferença! E quanto aos cristais? Consegue detectar o código de algum deles?

- AZY-3277, AZW-3857, AWT-234... não consigo ler o último dígito!

- Aguarde mais um pouco! - diz Sardinha Dourada, apesar de saber o quanto isto era difícil de se aceitar quando, no display do detonador, se lia claramente: "02:04"

Ele tentou se acalmar, contemplando aquele circuito com trilhas de cobre rubro-douradas claras sobre fundo negro. Era até bonito de se ver, em contraste com aqueles coloridos componentes azuis, amarelos, violetas, laranja... sob o implacável display vermelho contando o tempo que ainda lhe restava de vida. "01:48", era o tempo que lhe restava até aquilo tudo explodir! Ao menos nisso os filmes de ação estavam certos! Era mesmo uma emoção indescritível. E ele esperava que, como nos filmes, acabasse em final feliz.

- Enguia de Ônix! Já temos a solução!

Ah, que bom ouvir aquilo! Ele aguardava ansioso.

- Corte fio verde!

Quê?? Não podia ser! Tudo, menos isso!

- Repita, Sardinha Dourada!

- Corte o fio verde, cara! Fácil!

Ele olhou aquele amontoado de fios saindo e entrando no circuito. Azuis, amarelos, pretos, brancos, laranja... mas verde??

- Mais detalhes, amigo! Onde fica este fio verde?

- Amigo, é um fio verde! O único! Basta cortar!

Que pesadelo! Como revelar aquele segredo a tanto tempo escondido?

- Por favor, mais detalhes! De onde sai o fio verde?

- Meu deus, não sei!! É um fio verde! O único! Para de brincadeira, amigo? Sabe a potência desta bomba?

- Vai destruir metade da Europa! Sei disso! Por isso imploro: onde está este fio verde? Pelo amor de Deus!

O amigo, numa base secreta do Alasca, não sabia mais o que dizer. Simplesmente repetiu o apelo.

- O único fio verde do circuito, cara! É só cortar!

Anos de treinamento em vão. Colocados a perder por um detalhe insignificante, que ninguém nunca tinha imaginado.

- Não posso cortar o fio verde, meu amigo! Vamos todos morrer...

- Por quê isso? O que tem de errado?

Não havia mais como esconder. Ele poderia se arriscar cortando algum dos vários fios pretos, ou mesmo um marrom, mas... com que objetivo? Que chance ele tinha? Como nunca previram esta complicação tão previsível entre representantes masculinos da espécie humana? O display marcava "00:12". Foi quando, enfim, ele resolveu revelar:

- Meu amigo, eu sou daltônico!

*** FIM ***