2020 - Este chão que nos sustenta! - parte2

*** ... este chão que nos sustenta! - parte2 ***

Observava aquele oceano desconhecido da popa da embarcação. Acham que observar o próprio planeta Terra sobre minha cabeça era o mais estranho daquilo tudo? Enganam-se completamente! Tentar posicionar logicamente o horizonte do novo oceano era muito mais desafiador!!

- Também já notei isto, rapaz! - dizia o capitão, se aproximando e vendo minha perplexidade.

De fato, precisávamos levantar o olhar se quiséssemos encontrar a linha do horizonte! Em mundos convexos (como a nossa velha e conhecida Terra) o horizonte sempre ficava pouco abaixo da linha horizontal ideal. Era o esperado! Mas, naquele lugar estranho, isto não valia mais. A superfície do mar à nossa frente claramente se erguia aos poucos, e lá no final, nas bordas de nosso mar, em todas as direções, parecia se levantar uma verdadeira cordilheira de águas envolvendo tudo! Ao se pensar melhor no assunto, a explicação ficava óbvia: estávamos navegando no meio de uma superfície de água claramente côncava!

- Adoraria navegar até a borda disso, pra ver onde acaba. Que acha disso, novato? A maioria da tripulação já aprovou!

A velha lenda das bordas do mundo, que agora poderia ser concretizada. O medo era incomensurável! Mas a curiosidade, idem! Olhei para o globo terrestre acima de nossas cabeças, e decidi:

- Que temos a perder?

Bem, nem esperava que minha opinião tivesse tanta importância assim. Lógico que o capitão só me perguntara aquilo por polidez. Gostando ou não, a decisão já estava tomada! O capitão pôs os motores para funcionar, rumo às bordas do novo horizonte!

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- Nunca me senti tão leve... - exclamou uma resgatada.

- Estamos mesmo mais leves! - confirmou outro resgatado.

O capitão dirigiu-se às bochechas do iate. Olhou o nível das águas. E confirmou:

- Sim, realmente estamos mais leves! Minha nave está carregada! - era como ele sempre se referia à sua embarcação, nome que naquela situação fazia todo o sentido! - Ainda assim, o nível das águas está bem baixo! Por pouco não tombamos! É como se, apesar de totalmente carregada de mercadorias, minha nave estivesse vazia. Na verdade, nem vazia o nível das águas ficou tão baixo...

Físico profissional, um dos resgatados quis logo saber.

- Estamos mais leves sim. Mas o quão mais leves estamos?

O grupo reunido ali era uma atração à parte! Gente de todo tipo, resgatados pelo zeloso capitão. Um físico, um bancário (o tempo todo se queixando por não poder acompanhar seus investimentos), uma dona de casa, um padre, um pastor (pois precisava existir um embate teológico naquele lugar inusitado, não é?), um matemático, um astrônomo amador, um vendedor de joalheria, uma computóloga (irritadíssima num canto do barco, por não conseguir encontra uma rede wifi disponível para seu netbook! A propósito: como o netbook não estragou na água? mistério...)

- Alguém trouxe um medidor gravitacional? - perguntou o físico.

- Uma balança? - logo se apresentou o joalheiro. - Tenho uma aqui, que consegui salvar!

- Ótimo! - o físico estava radiante. - Claramente a gravidade aqui é menor. Vamos poder medi-la com exatidão agora...

Não havia vento. Nem ondas! O capitão desligara os motores por hora, para não estragar o experimento. O chão parecia agora tão fixo quanto estaria em terra firme! O joalheiro logo apresentou, orgulhoso, sua balança prateada! Muitas jóias e lucros já haviam sido pesadas nela! Mas o sorriso sumiu com o olhar indignado do físico.

- Mas... isto é uma balança!!

- Sim! - confirmou o joalheiro, acuado.

- Um comparador de massas! É isso?

O joalheiro confirmou com receio.

- Sim!

- Não um medidor de pesos, e sim um comparador de massas... É isto que você trouxe?

- Tenho os pesos padrões aqui, bem calibrados! - se defendeu o joalheiro do rude físico.

- Grande coisa!!! Um QUILO de massa vai sempre ser igual a OUTRO QUILO de massa! Tanto faz a gravidade!

Princípio de desentendimento. O joalheiro tentava se justificar.

- Minha profissão nunca me exigiu medir pesos em gravidades diferentes daquela de meu planeta! Se eu fosse esperar por isto, eu decidiria ser astronauta...

Quando a discussão esquentava, um peruano surgiu cauteloso.

- "Tengo" una balança digital aqui. Serve?

- Uma "balança"? - insistiu o físico.

O peruano continuou.

- "Solamente" uno prato! Sem comparações.

O físico pensou um pouco.

- Pra que usava esta "balança digital"?

O peruano emudeceu. Quase todos desconfiavam... Mas naquele local, isto era irrelevante!

- Ótimo, bom amigo! - o físico estava bem animado. - Você tem um dinamotretro gravitacional em mãos! Traga-o aqui, por favor!

- Una balança digital!

- É o que queremos! E, a propósito, seus pesos calibrados até que serão bem úteis, meu amigo joalheiro!

Ele reapareceu orgulhoso.

- Sua balança não! Seu comparador de massas é inútil aqui... Mas seus pesos calibrados serão bem úteis!! Você nos garante que seu quilo realmente tem um quilo, não é?

Ele ficou indignado. O que aquele físico estava tentando insinuar?

- Estamos todos tensos, tripulação! - interferiu o capitão, percebendo que a situação começava a ficar tensa. - Sugiro descansarmos um pouco. Há lugar para todos se acomodarem confortavelmente! Depois continuamos com isto...

A sugestão, proferida por aquela figura de autoridade, acabou tendo o mesmo efeito de uma ordem. A experiência ficaria para depois...

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Felizmente haviam acomodações para todos naquele grande iate! Dormi? Nem sei...Era possível dormir em tal situação? Na verdade, tentei dormir. Devo ter conseguido repousar um pouco, mas não totalmente. A experiência de medida de pesos estava marcada para o meio dia do dia seguinte. Meio dia? Óbvio que era pura convenção. Era o horário que marcavam os poucos relógios que ainda funcionavam naquele barco. O meu não era um deles. À prova dágua? Com certeza fui enganado... Alguém, por acaso, coloca um relógio "à prova dágua" dentro da água para verificar se realmente compraram aquilo que foi prometido? Recomendo que o façam, pois isto foi cobrado a mais de vocês! Eu, por exemplo, só agora descobrira que fôra enganado. Meu relógio "'à prova dágua" talvez fôsse resistente a pouca água, mas morreu depois de exposto a MUITA água... Nem sei se posso pedir indenização. Provavelmente o fabricante não cobre a "exposição do equipamento em águas submetidas a gravidades reduzidas". Não lembro de ter lido nada disso no contrato.

- Acorda, marujo! - me despertou sorridente o velho capitão. - Você está dormindo há mais de 12 horas!!!

Sorri, sem saber como agradecer.

- O senhor salvou a minha vida...

- Sim, a sua e a de outros 17 náufragos! - sorria de uma orelha a outra. - Sim, mais dois subiram desde ontem... É minha obrigação, rapaz! Não havia como eu fazer diferente!

Me espantava aquele velho capitão, tentando manter tudo sob controle apesar da situação absurda.

- Nosso amigo físico vai começar em 10 minutos sua demostração. Achei que você estaria interessado em ver!

- Acertou! Estou sim...

A tripulação se aglomerava na proa do iate. A "balança digital" do peruano estava no chão, em lugar de destaque. "Dinamômetro gravitacional" na verdade, nome que o físico tentou colocar na cabeça de todos mas que acabou não pegando de jeito nenhum. Dinamômetro? Que porcaria de nome era esse? Se media peso, tinha de ser BALANÇA, né?

- Me passe então este peso padrão de um quilo, para vermos o quanto ele pesa aqui. Por favor!

O joalheiro passou o QUILO calibrado para o físico, que o depositou com cuidado sobre o "dinamômetro gravitacional" do peruano. Olhou surpreso: 327 gramas!!! E declarou:

- Caros, estamos aqui submetidos à gravidade pouco menor que 1/3 daquela que estávamos acostumados na Terra!

- Minha nave está com pouco menos de um terço do peso que ela deveria estar?

- Isto mesmo, capitão!

Isto explicava o nível das águas tão baixo, apesar de estar carregada com mantimentos que, inclusive, eram importantes na atual situação!

- Caro físico: satisfeito? Acabou a experiência?

- Sim, capitão!

- Ótimo! Vou ligar de novo os motores! Continuemos nossa viagem até o horizonte deste mar...

[continua]