2020 - Salada de Gente
- Francamente, Lycopodium! Não sei por que insisto nesta besteira...
- Sei muito bem o que vi, Selaginella!
Selaginella Rupestris ainda achava uma perda de tempo e completo desperdício de energia se deslocarem por centenas de anos luz só para “comprovarem” uma ideia de Lycopodium que já poderia ser considerada um absurdo logo de cara. Olhou o amigo com um ar de desconfiança.
- Animalias ambulantes? Lyco, por acaso você andou fumando espongiários de novo?
Selaginella estava sendo cruel: por um instante ele se imaginou tragando os vapores hormonais daquele longo tubo de tecido animal, uma ponta acesa e a outra escostando em suas caviades aéreas. Não, ele não voltaria a fazer isto. Precisava resistir à tentação.
- Você sabe muito bem que não faço mais isto. Sei muito bem o que eu vi naquele planeta azul.
- Não pode ter se enganado? Talvez tenha sido o vento batendo nestes animalias que te fez achar que se moviam. Ou quem sabe apenas anemoides gigantes, movendo os tentáculos em torno da boca.
- Não, eu vi muito bem! Elas tinham autonomia completa, não eram sésseis como as animálias lá do nosso mundo.
- Ah, tem mais essa agora... Animalias sem raízes, é o que você quer dizer? Movendo-se de um lado para outro sem precisarem se fixar em sedimentos? Por favor, agora você está indo longe demais.
- Espere e verá. A propósito, lá esta o planeta azul que te falei! Estamos chegando perto.
A nave não era propriamente o que se poderia chamar de disco voador. Na verdade era esférica, e nem ao menos era metálica. Tinha uma textura diferente, basicamente um coco gigante! Dois seres saíram de dentro deste coco, e tinham aproximadamente uns três, talvez quatro metros de altura. Moviam com destreza cinco patas inferiores articuladas, espaçadas igualmente em torno do seu tronco cilíndrico de formato ligeiramente pentagonal. Eles eram verdes, como a maioria das pessoas imagina que sejam seres extraterrestres. Só que definitivamente não eram “homenzinhos verdes”. Se não fosse pelo fato de se moverem com habilidade e aparentemente não estarem enraizadas no chão de forma nenhuma, qualquer um afirmaria que estes seres extraterrestres eram vegetais!
- Olha ali, Selaginella!!! Uma das animalias ambulantes das quais te falei!
O pobre coiote mal teve tempo de emitir seu último uivo antes de ser partido em dois por uma garra esverdeada recoberta de espinhos cortantes.
- Ora, mas são bastante frágeis as animalias deste planeta, não é?
- Que está fazendo, Lyco? Pode ser venenoso!
- Já que estamos aqui, não custa nada experimentar.
Lycopodium levou a garra até uma abertura no topo do prisma pentagonal que constituía seu corpo.
- Hmmm, não diria que é o melhor tecido animalia que já provei, mas também não é de todo desagradável. Pena que é pequeno demais, dá só para um aperitivo mesmo...
Selaginella não pôde conter a curiosidade, e também provou um pedaço da carne do coiote.
- Talvez com uma pitada de nitrato isto fique mais palatável. Que acha?
- Só sei que esta animalia me abriu o apetite. Venha, lembro de ter visto espécimes maiores aqui por perto.
O espécime maior que os vegetanos encontraram ela o azarado Carlos Lineu, que nada entendeu ao ver aquelas duas árvores avançando em sua direção. Berrou, tentou protestar, se comunicar de alguma forma... Mas só percebeu a inutilidade de seus esforços depois que seu antebraço esquerdo foi arrancado por aquela garra verde. Berrou muito mais do que imaginava ser capaz de fazer, mas inteligentemente concluiu que sua única chance era correr... enquanto ainda tinha pernas.
- Selaginella, não te pareceu que este animalia tenha tentado se comunicar conosco?
- Não seja ridículo, Lycopodium! Vai começar agora a conversar com sua comida também?
- Mas não te parece que o espécime esteja fugindo?
- Oras bolas, espasmos musculares comuns dos animalias! Estes são bem particulares mesmo. Acredito que ele pare de se mover se cortarmos aqueles seus dois apêndices inferiores.
E foi assim que Carlos Lineu perdeu também as pernas, e ficou a se contorcer no chão daquela estrada deserta. Os dois vegetanos levavam à boca central os apêndices recém-amputados do pobre Lineu. Acha que eles estavam sendo cruéis? Não, então você ainda não foi capaz de compreender o ponto de vista destes seres. Você acharia crueldade ver um coelho arrancando pedaços de uma cenoura? Óbvio que não! Mas estou certo que uma outra cenoura observando isto acharia a cena abominável...
- Tão pouca carne, e ainda tem este caroço branco duro no meio dela... Sabe o que é?
- Parece ser feito de cálcio... É bastante duro mesmo!
- E a carne nem é tão boa. Já comi animalias mais saborosas que esta.
Carlos Lineu já havia desfalecido quando Selaginella tocou sua barriga com as garras vegetais.
- Este pedaço aqui parece mais mole. Quer experimentar?
Rasgou o abdome de Carlos (a esta altura, já mortinho da silva!) e puxou para fora suas tripas. Enzimas digestivas começaram a escorrer dos estames em torno de sua boca central.
- Humm, isto está parecendo mais interessante! Ainda mais com toda esta solução vermelha de hemoglobina e plasma escorrendo. – e levou parte das tripas de Carlos até a boca, digerindo-a com satisfação.
- Sei não, já provei coisas melhores.
Deixaram o cadáver de lado, desinteressados.
- Me parece que o fato dos animalias deste planeta se moverem com independência não passa de uma curiosidade. Nem saborosos eles são! Prefiro muito mais aqueles que cultivamos no nosso planeta.
- Podemos tentar fazer cruzamento de espécies, caso encontremos algum mais interessante. Combiná-los com o DNA de anêmonas, por exemplo, para que eles fiquem anemonados no chão ao invés de saírem pulando por aí...
- É uma ideia. Mas depois desta experiência, não acho que vamos encontrar nada muito mais interessante.
- O nosso espião, será que já chegou naquele aglomerado animalia? Já que estamos aqui, não custa nada dar mais uma espiada, não concorda?
O espião de que eles falavam era um vegetano pequeno, despretensioso, que mais lembraria um simples cacto se não fosse pelo fato de que... ele andava! Espículas oculares espalhadas por todo seu corpo lhe davam uma visão de 360 graus do ambiente, visão esta que era transmitida aos dois vegetanos principais. Foi caminhando com cautela para uma pequena cidade, até uma porta onde se lia no alto, escrito em uma placa: Restaurante Vegetariano. É lógico que nem o espião nem os vegetanos souberam decodificar estes dizeres. Só mesmo em filmes B de ficção científica é que os extraterrestres chegam de uma longínqua civilização localizada a milhares de anos luz da terra já nos saudando em inglês, português, ou que língua humana for, com um “Viemos em paz”. Aqui estamos falando da vida real, e obviamente os vegetanos não sabiam falar, e muito menos ler palavras escritas em português. Foi por isto que o pequeno cacto espião entrou despretensiosamente no restaurante.
- Está vendo quantos animalias ambulantes, Selaginella? Eu disse que tinha razão.
- Sim, de fato. Mas... o que eles estão fazendo?
- Comendo, parece.
- Ora, que besteira! Animalias não comem! Qualquer mudinha vegetana aprende na escola que tudo o que eles fazem é reaproveitar os dejetos que nós eliminamos, na forma de tubérculos açucarados. É assim que eliminamos o excesso de açúcar que produzimos.
- Me parece que eles estão comendo sim. Será que nosso espião conseguiria se aproximar melhor para vermos o que é?
O espião subiu, viu, e estremeceu com o que viu. Bandejas e mais bandejas cheias de... folhas!!! Caules mutilados, temperados com óleo, cloreto de sódio e seivas fermentadas!! Uma visão de pesadelo!
- MONSTROS!!! O QUE VOCÊS ESTÃO FAZENDO???!!
A seiva elaborada começou a azedar dentro dos floemas de Selaginella.
- Por favor, se controle! Deve ter uma explicação para isto.
- Como podem fazer isto?? - óleos aromáticos começavam a escorrer de cada um dos cinco pistilos oculares de Selaginella. – Estas folhas ainda estão vivas! VIVAS, Lycopodium! Devoradas vivas por animalias!
O amigo tentou interromper, mas foi em vão: Selaginella já avançava em direção ao restaurante disposta a vingar as pobres folhas mutiladas.
Nenhum dos frequentadores do restaurante teve tempo sequer de começar a compreender a carnificina que estava começando. Selaginella decepava membros, cabeças, partia corpos ao meio com suas longas garras espinhosas. Estava descontrolada! Lycopodium apenas observava, ao descobrir que era inútil tentar contê-la. Quando tudo pareceu se acalmar, ele tomou um objeto esférico entre suas garras: uma cabeça humana decaptada. Atirou-a contra o chão, e ela se partiu. Uma massa cinzenta saía das metades de crânio separadas.
- Olha aqui, Selaginella! Isto parece interessante.
Levou um pedaço daquela massa cinzenta à boca central. A sensação era indescritível!
- É a coisa mais deliciosa que já provei em toda a minha vida!!
Selaginella fez o mesmo. Enfim, a viagem até aquele planeta não havia sido em vão! Acabaram descobrindo uma das maiores iguarias de toda a galáxia: cérebros humanos! Levaram amostras para seu planeta, na tentativa de cultivar. Não o humano todo, mas apenas suas cabeças, brotando do corpo de anemonóides gigantes. Ainda faltavam mais pesquisas para conseguir produzir estas cabeças em larga escala a ponto de fornecê-las para o resto da galáxia, mas até lá podiam ir se virando com as seis bilhões que já existiam no planeta azul.