MANHÃS DE SETEMBRO

Mais uma manhã de setembro chegou e com ela a contemplação de que os tempos finalmente melhoraram depois da era de sombras que abraçou o planeta de modo tão incisivo e transformador.

Eu me lembro muito bem de como tudo começou. Durante toda a minha vida eu quis ter a certeza acerca do que ocorria lá fora, na imensidão azul do céu, onde uma infinidade de pontinhos luminosos me dizia todas as noites que seria impossível estarmos relegados ao posto de únicos representantes de inteligência no universo.

Embora inteligência cada vez mais represente uma afirmação com inúmeras variáveis, afinal, se fossemos realmente plenos de uma capacidade limpa e consciente, a Quarta Grande Guerra de 2199 não teria quase exterminado o mundo civilizado ao qual estávamos acostumados.

A ciência e a tecnologia a serviço da indústria armamentista e a corrida cada vez mais acirrada por recursos naturais fez com que os países do globo desaparecessem no pós-guerra, dando lugar a Nova Liga das Nações, onde o Nyratan, título dado à liderança máxima da Liga, eleito pelo conselho da entidade, passou a dirigir o destino do planeta.

E coube justamente ao Nyratan a difícil tarefa de decidir, naquela manhã de setembro, a melhor ação a ser tomada diante do inesperado evento que veio a confirmar para todo o mundo o que eu sempre soube.

Um grande estrondo rasgou o firmamento e fez surgir uma imensa sombra por entre as nuvens sem que nenhum satélite da Liga percebesse com antecedência. Eu olhei pelo vão da janela e percebi a gigantesca nave se espalhar no manto celeste em todas as direções. Eu ainda não sabia, mas diferentes unidades de estruturas semelhantes ocupavam os céus do que um dia foram as capitais dos antigos países.

Os equipamentos alienígenas nada fizeram, ficaram parados, estáticos, exercendo um silêncio perturbador por dias. As pessoas entraram em desespero, exigiam que suas lideranças regionais tomassem uma atitude diante de algo que elas julgavam como uma ameaça à nova ordem mundial e à vida de cada uma delas.

As lideranças regionais, por sua vez, tornaram os salões e corredores do Palácio da Paz, sede da Nova Liga das Nações, um verdadeiro inferno. Elas não se contentariam com outra atitude por parte do Nyratan que não fosse o ataque direto e imediato aos engenhos interestelares. E assim foi feito.

As forças terrestres coordenaram uma investida sincronizada oriunda de todas as cidades ameaçadas pelos mecanismos invasores. Os jatos militares dispararam mísseis de impacto como método de reconhecimento. Os dispositivos não encontraram nenhuma resistência, não havia qualquer proteção à integridade das naves no que dizia respeito a campos de força ou similares, mas, em contrapartida, as explosões não causaram danos significativos ao inimigo.

O comando da Liga esperava por uma contra-investida, mas contrariando as expectativas, não houve retaliação. Os jatos, então, receberam ordem para atacar com força máxima, utilizando para isso os canhões de plasma e as lanças de distorção sônica.

Impactos expressivos abalavam as gigantescas estruturas metálicas, não tardando para que as sucessivas investidas começassem a rasgar a superfície das naves. O aparente êxito causou uma celebração conjunta da população que assistia a tudo em tempo real em diferentes dispositivos de comunicação e entretenimento.

As naves balançaram de modo anormal, dando a entender que logo despencariam derrotadas. No entanto, apenas frestas estreitas foram percebidas na superfície polida das estruturas, e estas não haviam sido causadas pelas armas humanas, pelo contrário, foram abertas deliberadamente por aqueles que permaneciam ocultos.

Logo, nuvens de uma espécie de poeira foram expelidas pelas aberturas. O movimento da névoa era coordenado e seguia ao encontro das aeronaves humanas, invadindo as turbinas, reentrâncias de sucção e demais pontos expostos dos jatos.

Os motores das aeronaves começaram a falhar, fazendo com que cada uma delas viesse a despencar como moscas abatidas. Os pilotos ejetavam-se das cabines de comando, mas, para desespero deles e estarrecimento dos que assistiam, a poeira estelar corrompia os uniformes dos soldados devorando sua pele, carne, músculos, fluídos e ossos. A morte era lenta e dolorosa.

Em cada antiga capital e nas cidades próximas o pânico se espalhou tão rápido quanto à própria nuvem predadora. As pessoas eram atacadas e mortas por um inimigo contra o qual estavam totalmente indefesas. Os que se lembravam da Grande Guerra de 2199 frustravam-se e queixavam-se sob o pesar da antiga peleja entre os humanos, mas ao mesmo tempo saudosos de um combate mais igualitário, pois agora a única coisa que podiam fazer era se lamentarem.

O Nyratan viu-se obrigado a tomar a última e mais drástica decisão. Desde o massacre nuclear que quase levou a humanidade à extinção, as armas atômicas haviam sido banidas, mas havia algo a ocupar o seu posto, um elemento ainda mais perigoso, perturbador, mas, naquele momento, necessário e inevitável.

A ordem foi dada. O protocolo Consciência Robótica ativado. Agora a humanidade dependia da ação da Inteligência Mundial Sincronizada para encontrar uma solução para acabar com a crise baseada na sua diretriz primordial: proteger o planeta Terra.

Em segundos, o cérebro artificial calculou as probabilidades e opções para salvar o planeta e elaborou um plano de contra-ataque. Unidades cibernéticas antropomórficas foram ativadas aos milhares, em todas as partes, mas o exército de robôs não atacou as nuvens metálicas, pelo contrário, investiram contra pessoas escolhidas aleatoriamente. Elas eram arrancadas de suas residências, escritórios ou de onde estivessem escondidas. As estruturas cibernéticas atrelavam-se aos humanos numa união simbiótica.

Os ciborgues recém constituídos partiam para o confronto diante das névoas predadoras. A fumaça metálica na verdade não era artificial, não era uma arma propriamente dita, tratava-se, de fato, de micro-organismos vivos que usavam sua voracidade para consumir o material orgânico dos corpos humanos.

Esse fato fora percebido pela Consciência Robótica, e a constituição dos homens-máquinas tinha um propósito: atrair a fome da nuvem. Logo, cada unidade ciber-humana era atacada pelo inimigo microscópico que consumia a parte orgânica, ainda viva, enquanto era aprisionada numa espécie de invólucro ativado pela parte artificial.

Tão logo cada nuvem era enclausurada no interior dos ciborgues, os mesmos implodiam a si mesmos reduzindo a pó cada micro-organismo alienígena. Sim, muitos inocentes morreram, mas o cérebro artificial havia calculado a perda como necessária para a manutenção da vida.

Após a derrocada das nuvens vorazes, as defesas robóticas do planeta localizaram inúmeras ogivas nucleares que deveriam estar mortas para a eternidade, mas que foram reativadas para por um fim às naves alienígenas que ainda pairavam nos céus.

Mísseis intercontinentais cruzavam os ares e atingiam os alvos impiedosamente. Os cruzadores galácticos explodiam a cada novo impacto. Luzes, fumaça e estilhaços eram lançados em todas as direções.

As cidades foram devastadas. Inúmeras pessoas perderam suas vidas, mas a unidade planetária mantivera-se firme e a humanidade sobreviveria afinal, para se recompor e se reconstruir uma vez mais.

Agora, alguns anos depois, vejo pelo vão da janela que a humanidade floresce a cada dia. As manhãs de setembro sempre me trazem lembranças. Algumas são dolorosas, é verdade, mas o que fica realmente gravado em minha mente e acalenta o meu coração é saber que vencemos e que seguiremos livres e em franca evolução.

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Ao redor de uma das incontáveis cápsulas que se espalhavam até onde a vista alcançava, dois seres de estatura mediana, feições sem precedentes e usuários de um idioma ininteligível trocavam palavras enquanto observavam o coma induzido de um dos seres do planeta invadido e dominado. Vários tentáculos metálicos se conectavam ao seu corpo. Alguns dos dispositivos drenavam os fluídos corporais dos capturados, convertendo-os em alimento para os próprios dominantes, ao passo que outros capturavam os impulsos eletromagnéticos do corpo armazenando-os como fonte de energia mecânica. Homens, mulheres, crianças, animais, recursos naturais, tudo, absolutamente tudo era saqueado do planeta.

•Traduzido do idioma alienígena:

- É imprescindível manter esses seres vivos e com o pensamento ativo o máximo possível. A retirada dos recursos necessários depende disso. Para tal, induzir sonhos recorrentes e satisfatórios torna-se a melhor opção. Esse aqui se adaptou com a ilusão de uma vitória que nunca aconteceu, ele insiste em se apegar a algo que chama de “manhãs de setembro”. Não tenho ideia do que seja isso, mas se o deixa feliz, melhor para nós.

- Até quanto tempo ele resistirá?

- Isso não importa muito, logo todo esse planeta estará exaurido e morto.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 05/09/2020
Código do texto: T7055646
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