2020 - Greve das Mitocôndrias

(uma pequena aventura citológica)

- Mestre, uma representação mitocondrial está reunida em torno da membrana nuclear disposta a negociar a greve.

O ribossoma-chefe mal podia acreditar naquilo. Depois de uma endossimbiose bem sucedida que já durava quase um bilhão de anos? Como isto foi acontecer ?

- Dê alguma desculpa! Faça-os esperar, ainda preciso rever o processo todo, o que nos levou a este absurdo.

Releu mais uma vez aquele trecho de DNA. O DNA da célula original havia inclusive incorporado em sua sequência genes para sintetizar proteínas que só eram interessante mesmo para as mitocôndrias! Que mais elas exigiam?

É difícil precisar quando começou o impasse. Vendo o problema agora, percebe-se que sempre esteve latente. Então era assim que funcionavam as coisas? Quando o enxofre do planeta começou a ficar escasso, dando lugar ao venenoso oxigênio, demos abrigo às tais bactérias sem discutir. Mesmo porque, para elas, o enxofre é que era veneno! O acordo foi bom para ambos: elas respiravam nossa glicose transformando-a em ATP, e nós as abrigávamos do ambiente venenoso lá fora, assegurando sempre a quota combinada de glicose e oxigênio. Releu mais uma vez o tal manifesto:

"Suportamos por muito tempo, mas não merecemos mais sermos tratadas como simples organelas! Fornecemos energia para a célula, e precisamos ser reconhecidas por isso! Mitocôndrias de todos os tecidos celulares, vamos nos unir contra os núcleos opressores!"

Na época aquilo parecia não levar a nada. Mas agora... O ribossoma-chefe sintetizou algumas enzimas comunicativas chamando seu ribossoma-assessor, que apareceu de imediato:

- Me responda com sinceridade: elas podem fazer isso? Abandonar a célula?

- Nunca soubemos de nada parecido...

- Não foi essa minha pergunta. Elas podem fazê-lo? E nós? Podemos nos sustentar sem elas?

O assessor pensou um pouco...

- Nunca tentamos, meu mestre...

- Mas é possível? Podemos usar oxigênio em nosso metabolismo?

- Bom... - o assessor sente que é hora de revelar aquilo. - É um segredo guardado a sete chaves pelas mitocôndrias. Inclusive um motivo delas insistirem tanto em preservar o próprio DNA.

- Mas... desembucha logo!

- Sim, chegamos a mandar alguns espiões para lá, na forma de vírus... Aprendemos partes esparsas do processo,mas não suficientes ainda para reproduzirmos...

- Estão perto?

- Se tivéssemos mais tempo... Mas com essa confusão toda fica difícil!

O ribossoma-chefe selecionou um cromossoma específico, e releu um trecho previamente marcado...

- Vai ser difícil reescrever esta parte, né? A síntese proteica que as mitocôndrias pediram milhões de anos atrás, que incorporamos no DNA celular.

- Bom, também não nos causaria problemas mantê-las. As proteínas são inertes para nosso metabolismo.

- OK, chame então os representantes mitocondriais aqui!

O ribossoma-assessor atravessou as paredes da membrana nuclear. Demorou muito! Algo deu errado. Ele começou a recordar o último encontro com os representantes mitocondriais, tentativa anterior de resolver o problema:

- Nos sentimos explorados há milhões de anos! Certo, a célula nos fornece glicose, nós a combinamos com o oxigênio e transformamos em ATP. Em troca de quê? Proteção? Francamente... Temos até mesmo nossa própria membrana para nos proteger!

- Envolvida por uma segunda camada, que é nossa!

- Sim, por uma camada de vocês! Necessária, já que a princípio a intenção era nos fagocitar!

- Todos cometemos erros.

- Erro? Nos digerir? Nos usar de comida? Chamam isso de erro?

- A época era diferente! A vida celular acabara de surgir. Toda estrutura externa era alimento! Não tínhamos como diferenciar na época.

Algo tão antigo! O ribossoma-chefe achava que isto já estava superado, mas ficou claro que as mitocôndrias nunca se esqueceriam do fato...

- A simbiose foi vantajosa para ambos.

- Muito mais para vocês, né? Morreriam sem nós, incapazes de tratar do oxigênio.

- Vocês eram fracos! Precisavam de proteção!

- Acabaríamos adquirindo-a com a evolução. As bactérias, nossas irmãs evolutivas, conseguiram isso. Já vocês... Bom, nunca se adaptariam ao oxigênio rápido o suficiente! Seriam extintos sem nós!

A conversa não levava a nada. O ribossoma-chefe tentou então ser mais objetivo.

- O que vocês querem ?

- Que sejamos mais reconhecidas, mais do que simples organelas!

- Vocês já têm até um DNA próprio! Que mais querem ? Sabem de outra organela que preservou o mesmo privilégio ?

Imediatamente os representantes abandonaram o núcleo indignados! Serem chamados de organelas era um insulto! Antes de atravessar a membrana nuclear, a última mitocôndria ainda esbravejou:

- Organela??? Organela é o vacúolo!!!

O assistente penetrou a membrana nuclear, interrompendo suas lembranças. Tinha péssimas notícias!

- Eles se foram, meu mestre! Cansaram de esperar.

- A greve continua? É pra valer?

- Sim, há tempos a concentração de glicose no citoplasma aumenta, elas não estão mais sintetizando ATP.

- Podemos nós mesmos sintetizar esta substância? Temos genes capazes disso?

- Usando oxigênio ? Lamento, meu mestre! Não tivemos tempo de aprender a sintetizar ATP usando tal elemento. Nem descobrir como as mitocôndrias fazem isso. E estávamos tão perto...

O ribossoma-chefe relê um estudo sobre o novo elemento químico.

- Mas pertence à mesma família química, não é? Mesma valência, propriedades químicas, geometria orbital... só muda o peso atômico! Qual a dificuldade ?

- É leve demais para nossos propósitos.

- Podemos mutar o DNA nuclear para aprendermos a respirá-la?

- É arriscado... podemos interferir em genes importantes para nosso metabolismo.

Um ribossoma-mensageiro adentra o núcleo com uma notícia bombástica!

- As mitocôndrias estão agrupadas em torno da parede interna de nossa membrana celular! Elas vão sair!

- Que loucura!! Elas não vão sobreviver sozinhas ao ambiente lá fora! Perderam esta capacidade há quase um bilhão de anos!

- Mestre, tenho certeza de que elas vão fazer!!!

Era o fim! As ordens enzimáticas externas chegavam intensas, mas ele tentou adiar o máximo possível, tentar uma negociação pacífica. Agora não dava mais para segurar. Não era mais a célula, mas a espécie! O código genético nuclear! Pegou o cromossomo fatídico, o dessaturou naquele trecho específico. Enfim, cabisbaixo, deu a ordem:

- OK, iniciem a apoptose!

- Morte celular programada? É isso?

- Caros, todo mundo aqui sabe o que é apoptose! É uma ordem!

Aquela aberração não podia se propagar, precisava parar NAQUELA CÉLULA! Mitocôndrias rebeldes? Era o cúmulo! Bilhões de anos de evolução não poderiam ser jogados no lixo por um capricho de organelas rebeldes, que se sentiam merecedoras de tratamento especial por parte do Sistema Celular já consolidado por eras incontáveis.

A conclusão desta história? Hoje em dia já a conhecemos! A célula sobreviveu, se ramificou num filo hoje denominado Archeozoa. Células desprovidas de mitocôndrias, capazes de sintetizar os próprios armazenadores de energia. Sabemos que um dia eles já tiveram mitocôndrias porque seu DNA ainda sintetiza proteínas interessantes só para estas organelas, que não mais existem. Uma prova de que um dia esta endossimbiose fôra perfeita.

A célula se adaptou e conseguiu sobreviver. Suas mitocôndrias rebeldes, não. Mas felizmente o movimento rebelde foi contido, e não se propagou para outras espécies...