2020 - Reforma do Calendário
"1 de janeiro de 2582"
"O Excelentíssimo Governador do Planeta Terra, capital do Sistema Solar, usando da autoridade a ele concedida pelos representantes da República Solar, decreta que a partir de zero horas, zero minutos e zero segundos (00:00:00) do corrente dia está extinto o trigésimo primeiro dia do mês de abril (31/04). O minuto da segunda meia-noite (23:60) do dia trinta de abril do corrente ano (30/04/2582) deverá ser seguido pelo minuto da primeira meia-noite (00:00) do dia primeiro de maio de dois mil quinhentos e oitenta e dois (01/05/2582)."
"Também fica decretado que a duração dos minutos extras finais das horas devem ser reajustados dos atuais 12 segundos e 28.54 centésimos para 22 segundos e 23.66 centésimos. "
"Os ajustes fazem parte do Plano da Grande Reforma do Calendário correntemente em curso. Qualquer dúvida ou necessidade de maiores detalhes, procure uma representação do Ministério do Tempo mais próximo de seu corpo celeste."
Era a segunda mudança que o Calendário Pós-Gregoriano sofria naquele século. A primeira havia ocorrido em 2545, e naquele decreto de 37 anos atrás foi a vez de maio perder um dia. A tendência era que as mudanças ficassem mais freqüentes, e uma próxima necessidade de mudança estava prevista para poucos anos depois da virada do século, quando o alvo da vez seria então o mês de março.
Era um ajuste incômodo, mas nada comparado aos que eram feitos antes desta primeira reforma do calendário, quando ainda era seguido pelo planeta inteiro (e, sendo a capital da república, por todos ou outros corpos do sistema solar também) o antigo Calendário Gregoriano. Este sim era um inferno!! Qual era mesmo a regra? Ah, lembrei: o mês de fevereiro tinha 28 dias, mas podia ter 29 em alguns anos. Onde já se viu um mês de 28 dias? Era uma regra maluca: se seu ano for divisível por 4, o mês de fevereiro tem 29 dias, mas se o ano for final de século (divisível por 100) então ele volta a ter 28 dias, exceto se o ano também for divisível por 400, quando, aí sim, ele teria 29 dias mesmo... Quanta bagunça!! Como as pessoas conseguiram conviver tanto tempo com este calendário maluco? Se chamavam bissextos esses anos com um fevereiro maior porque no fim eles somavam 366 dias, ou seja, dois "seis". Mas pouco antes daquele quase acidente com o planetoide Gregório a confusão era tanta que os tais anos de 366 dias já eram chamados de "anos bizarros", ao invés de "anos bissextos".
É óbvio que o planetoide só foi batizado de Gregório depois daquele grande evento, quando estava a uma distância já bem segura daquela população de bilhões apavorada com o voo rasante. Como era possível, em pleno século XXV, aquele evento astronômico demorar tanto para ser detectado? Culparam a altíssima velocidade, a estranha trajetória hiperbólica perpendicular à eclíptica, a composição química que deixava sua superfície escura e quase invisível àquelas distâncias... mas o fato é claro: ninguém viu Gregório se aproximando porque ninguém estava olhando para aquela direção! Estavam todos preocupados demais com os milhões de objetos, naves, satélites, cargueiros, asteroides-colônias, todos eles distribuídos no gigantesco plano da eclíptica.
Gregório passou realmente perto, tsunamis colossais ocorreram devido às marés que ele provocava, o magma líquido dentro do planeta rodopiou muito tempo em turbilhões até se estabilizar de novo, mas felizmente foi só susto. Gregório não colidiu com a Terra, e sua trajetória hiperbólica aberta nos garante que provavelmente nunca mais o veremos outra vez. Os prejuízos foram pequenos, pois apesar do pouco tempo a população de bilhões conseguiu se abrigar da maior aproximação. O que ninguém imaginava na época é que, por incrível que pareça, a quase colisão de Gregório com a Terra também trouxe um benefício inusitado!
Poucos astrônomos amadores deram o primeiro alerta da mudança, mas quase ninguém lhes deu atenção. Na verdade, até ouviram, mas não acharam aquilo importante para ter algum efeito prático. Segundos extras no dia? E em que isto afetaria a vida de qualquer um? De fato um dia cerca de 57 segundos mais longo parece afetar muito pouco nossas vidas. Mas, acumulando este descompasso durante alguns meses após a passagem do planetoide, os habitantes da região tropical e equatorial do planeta não podiam deixar de ver com estranheza aquele sol começando a se pôr em plena meia-noite! Não dava para ignorar isto. A charada foi resolvida em 2497: a passagem rasante do planetoide havia desacelerado a rotação do planeta, os dias estavam quase um minuto mais longos!
A primeira ideia foi redefinir a duração das horas, minutos e, na base, do segundo-padrão para que os dias voltassem a ter 24 horas exatas. Mudar a duração do segundo-padrão, uma das bases do Sistema Métrico de Medidas consolidado há séculos? Os físicos ficaram de cabelo em pé com essa ideia. A numerosa bancada do PC (Partido Científico) vetou toda e qualquer possibilidade neste sentido. Após muito debate, chegou-se a uma solução que satisfazia a todos: a duração dos segundos seria preservada, bem como os minutos continuariam tendo 60 segundos e as horas 60 minutos. Mas ficou decidido que o final de todos os dias antigos teria um minuto a mais, um pouco mais curto que os minutos comuns, que seria chamado de "minuto extra final" e denotado por 23:60. Em pouco tempo ele passou a ser conhecido como "a segunda meia-noite do dia", diferenciando-o da primeira meia-noite que era o minuto representado por 00:00. A ideia pegou, mas ainda não haviam explorado todas as possíveis implicações deste dia mais longo.
Um ano trópico, correspondente ao período de translação completa do planeta, possui 365.24219 dias antigos de 24 horas.São estes decimais irritantes os responsáveis por toda aquela confusão de anos bissextos e afins. Obviamente a translação não havia sido afetada, mas com os dias mais longos era de se esperar que o ano pudesse ter agora menos dos "dias novos". Os romanos foram os primeiros a usar um calendário com os meses de nomes que usamos até hoje. Seu primeiro calendário era lunar, formado de 10 meses de 30 e 31 dias totalizando 304 dias. Começava em março e terminava em dezembro (isso mesmo, janeiro e fevereiro não existiam). É por isso que setembro se chama SETEmbro, apesar de ser o mês nove, OUTUbro mês 10, NOVEmbro mês 11 e DEZembro mês 12. É que, neste calendário original de 10 meses, setembro era mesmo o sétimo, outubro o oitavo, novembro o nono(nove) e dezembro o décimo mês do ano! Ao perceberem que um calendário lunar era totalmente inútil para preverem as estações do ano, acrescentaram os meses de janeiro e fevereiro: no final do ano, depois de dezembro! Mas este calendário ainda totalizava 355 dias, de tal forma que eles precisavam incluir 10 ou 11 dias no final do ano ao perceberem que o inverno estava demorando demais para chegar. Uma bagunças sem tamanho! Decidiu-se que ao invés de um mês adicional de 10 ou 11 dias todos os anos, incluiriam um mês de 20 dias de 2 em 2 anos. Só para complicar um pouco mais, já que não resolvia o problema, pois seria o mesmo que incluir sempre um mês de 10 dias todo ano...
Em 46 A.C. Júlio César tenta colocar uma ordem nesta bagunça, e encomenda um novo sistema de calendário ao astrônomo Sosígenes, que ficaria conhecido como Calendário Juliano. A primeira versão deste calendário ainda começava em março, e os meses se alternavam entre mês de 31 e mês de 30 dias, exceto por fevereiro (último mês do ano) que tinha 29 dias normalmente, e 30 dias de 3 em 3 anos. O Calendário Juliano original era composto da seguinte forma:
* martius: 31 dias
* aprilis: 30 dias
* maius: 31 dias
* junius: 30 dias
* quintilis: 31 dias
* sextilis: 30 dias
* september: 31 dias
* october: 30 dias
* november: 31 dias
* december: 30 dias
* ianuarius: 31 dias
* februarius: 29 ou 30 dias
O puxa-saquismo já existia nesta época, e em 44 A.C. o senado resolveu renomear o mês de quintilis para "julius". Homenageando adivinhem quem? Mas logo ficou claro que aquela regra de bissextos (isto é, anos de 366 dias) a cada 3 anos estava equivocada. Foi quando, em 8 D.C., Augusto decretou que os bissextos ocorreriam de 4 em 4 anos. Talvez sentindo-se merecedor de reconhecimento por uma correção tão importante, o mês sextilis também foi rebatizado para "augustus". Só que "augustus" tinha apenas 30 dias, e não era digno de um imperador receber um mês inferior como este. É por isso que o mês de Augusto também passou a ter 31 dias, deslocando toda a sequência dos meses depois dele: setembro e novembro passaram a ter 30 dias, enquanto outubro e dezembro ganharam um dia a mais. Para aumentar ainda mais o caos, janeiro passou a ser o primeiro mês do ano, preservando seus 31 dias. E fevereiro... bom, fevereiro é fevereiro!
Apesar de bem melhor, a regra dos bissextos de quatro em quatro anos não resolvia o problema. O ano juliano durava 365.25 dias, diferente dos 365.24219 dias do ano trópico. Isto introduzia um erro de 1 dia a cada 125 anos, e em 1582 a diferença de 10 dias já se tornara gritante. Em 1582 o então papa Gregório XIII emitiu uma bula papal propondo uma grande reforma: a regra de bissexto mais complicada já citada antes, que aproximava mais o ano do calendário ao ano trópico (o erro era de um dia a cada 3300 anos) e uma solução para os dez dias de atraso acumulados desde a criação do Calendário Juliano. Ficou decidido que o dia 4 de outubro daquele ano seria seguido pelo dia 15. Ou seja, os dias de 5 de outubro a 14 de outubro de 1582 (por ordem do papa) nunca existiram! O calendário de outubro deste ano ficou então assim:
*** OUTUBRO 1582 ***
D S T Q Q S S
1 2 3 4 15 16
17 18 19 20 21 22 23
24 25 26 27 28 29 30
31
Isto acertava os 10 dias atrasados, e melhorava o controle da diferença entre os anos do calendário e o período de translação do planeta. Óbvio que em tal época ainda era sacrilégio se afirmar que a Terra girava em torno de alguma coisa. Este ficou conhecido como Calendário Gregoriano, seguido até a reforma ocorrida após a passagem do planetoide Gregório (que recebeu este nome por também ter sido a causa de uma outra profunda reforma do calendário).
Quando tentaram avaliar com melhor precisão os efeitos do atraso na rotação do planeta, ninguém pôde disfarçar a surpresa ao constatar a curiosa coincidência: o ano durava agora exatamente 365 dias novos! O tempo que a terra levava para dar uma volta em torno do sol estava agora perfeitamente sincronizada com a rotação do planeta! Era bom demais para não ser aproveitado! A primeira reforma no calendário Gregoriano foi a eliminação dos anos bissextos, ajuste não mais necessário. A partir da data do decreto, fevereiro passaria a ter sempre 28 dias. Logo surgiu a ideia: não existindo mais bissextos, não existe motivo algum para que fevereiro seja um mês diferente! Ele deveria então ter 30 ou 31 dias como os demais meses do ano. Foi quando ocorreu a grande reforma do calendário, que consistia no seguinte decreto:
"Fica estipulado que a partir da corrente data fevereiro passa de 28 para 31 dias, os quais serão retirados dos dias finais de agosto, outubro e dezembro, que terão daqui em diante 30 dias. Além disso Abril recebe o último dia de julho, e passa a ter 31 dias". Este novo calendário ficou conhecido como Pós-Gregoriano, e possuía a seguinte configuração:
* janeiro, fevereiro, março, abril e maio: 31 dias
* junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro: 30 dias.
O primeiro semestre dos anos, de janeiro a junho, passou a ser denominado "Semestre Longo", com cinco dias a mais que o "Semestre Curto", de julho a dezembro. Nada poderia ser mais simples do que isso, não é? Engano: podia sim!
Após o susto com aquele quase armagedon muito se investiu na tecnologia de monitoramento e, ainda mais, na de deflexão de corpos celestes gigantescos. Muitos asteroides, de rota de colisão ainda mais improváveis que a de Gregório, foram mesmo assim deslocados para órbitas seguras. A tecnologia avançava rápido, e já grande parte dos asteroides-colônias ocupavam orbitas circulares estáveis em torno do sol, deslocados cuidadosamente por sábios Mecânicos Celestes. A ideia foi crescendo aos poucos, até que um dia alguém teve coragem de propor: por que não aplicar estes defletores na Terra? Risos se espalharam pela câmara, mas só porque a proposta fora de início incompreendida. É óbvio que ninguém em sã consciência iria propor deslocar a Terra de sua órbita. Primeiro por serem as consequências imprevisíveis, e depois... por ser impossível, oras bolas! Têm ideia da enormidade de energia envolvida nisso? Mas a ideia dos defletores não era mesmo alterar a translação da Terra, e sim sua rotação.
Imagine dias mais longos ainda. E se conseguíssemos esticar os dias de tal forma que o ano passasse a durar 360 dias novos exatos? Poderíamos então ter um ano formado de 12 meses de 30 dias. Não seria uma boa ideia? Surgiu então o refinamento do plano que fez a lei enfim ser aprovada: e se ao invés de semanas de sete dias, os novos meses fossem formados de 5 semanas de 6 dias cada uma? Todos os meses poderiam começar no sábado, e seriam todos iguais. Nenhuma necessidade mais de confeccionar as pré-históricas folhinhas! Mantendo sábados e domingos, teríamos 4 dias úteis por semana, totalizando SEMPRE 20 dias úteis todos os meses (não contando os feriados, obviamente). Mas para criarem uma semana de seis dias, precisariam eliminar um dos dias úteis. A decisão foi unânime: tirem as segundas-feiras!! Todos odeiam as segundas-feiras...
Foi assim que começou a transição gradual do calendário Pós-Gregoriano para o futuro Calendário Normalizado. Nossas semanas ainda têm 7 dias. Bilhões de defletores de vapor de água em torno das regiões continentais da linha do equador emitem poderosos jatos na direção leste, freando aos poucos a rotação do planeta. O processo será gradual, primeiro reduzindo para 364 dias (ocasião da primeira revisão), depois 363, que ocasionou o decreto recente retirando o último dia de abril. A ordem é decrescente: será depois março, fevereiro e, quando enfim janeiro passar a ter 30 dias, a nova grande reforma das semanas será decretada e passaremos a usar o novo Calendário Normalizado de 360 dias! Está acelerando, os defletores ficam cada vez mais numerosos e potentes!
Ainda não expliquei o ajuste das horas, não é? Não é muito complicado de entender. Quando os defletores equatoriais começaram a entrar em funcionamento, decidiu-se que ao invés de adotarmos um minuto final do dia (segunda meia-noite), teríamos este tempo dividido entre as 24 horas do dia. Seria o minuto extra final de cada hora. Na ocasião do primeiro dia ganho, em 2545, a situação era de um minuto extra de cerca de 12 segundos no final das horas. Com a nova mudança, ele havia aumentado para 22 segundos. Ao concluir o plano, quando os anos finalmente chegarem a ter 360 dias novos, a duração do minuto extra final será de 52 segundos e 42.19 centésimos, quase um minuto comum mesmo! Os relógios atuais exibem isto de uma forma bem divertida: ao ultrapassar os 59 minutos de uma hora, começa uma contagem regressiva com a duração do minuto final corrente antes de exibir a hora seguinte. Todos já estão acostumados com este novo mecanismo.
Aqui do meu apartamento nesta estação orbital observo os efeitos dos defletores equatoriais lançando vapor de água para o espaço dia e noite. A terra parece estar vestindo uma densa cinta branca de nuvens, a água lançada por eles. No espaço, começa até a ficar evidente um tênue anel de cristais de gelo. Que grande presente! Provavelmente, após a conclusão desta reforma do calendário, também nosso planeta pode ser contemplado com um anel equatorial, como Saturno, formado artificialmente de partículas de gelo! Nada mais justo, já que somos a capital do sistema solar...