2020 - Cegueira Invisível
Meus primeiros experimentos com invisibilidade levaram logicamente aos casos de sucesso da própria natureza. Haviam outras abordagem para isto, como sempre. Poderia tentar me tornar invisível desviando a luz que vinha em direção ao meu corpo, por exemplo. Mas sempre foi mais fácil falar sobre isto do que fazer de fato. Não é fácil desviar a luz sem um gasto absurdo de energia. A luz não gosta de ser desviada facilmente, não faz parte de sua natureza. Haviam também truques de mágica milenares, como aquele que projetava na frente de seu corpo o cenário que câmeras captavam atrás dele. Nunca eram perfeitos, e sempre dependiam de serem observados de um ponto de vista específico. Eu não queria ilusões, o que eu pretendia era conseguir invisibilidade real!
Alguns pesquisadores telepáticos caminhavam pela linha de raciocínio de que, se você não quer ser visto, bastava convencer por telepatia as pessoas ao redor de que elas não estão te vendo. Isto me soava um truque tão ruim quanto aquele da projeção de cenas de fundo sobre o corpo, e ainda mais arriscado visto que o nível de sugestionabilidade das pessoas varia muito. Nada disso me contentaria. O que eu queria era ser invisível de fato! Sem truques!
A ideia da invisibilidade é extraordinariamente simples: um corpo invisível é aquele que não emite fótons, e que ao mesmo tempo se deixa transpassar sem resistência por todo e qualquer fóton que o atinge do exterior, não afetando suas trajetórias, intensidades e frequências de vibração. Mas conseguir isto já é outra história...
Corpos quentes demais emitem fótons. Assim eles nunca poderiam ser invisíveis. Mesmo nós emitimos fótons pelo calor produzido por nossos corpos, na faixa das ondas infravermelhas. Quanto maior a temperatura, maior a frequência emitida, até que o corpo começa a se tornar brilhante quando atinge a faixa do espectro das ondas eletromagnéticas visíveis. Eu não poderia inibir facilmente tal calor, ainda que na frequência infravermelha, de forma que preciso restringir um pouco mais minha definição de invisibilidade. Então vamos lá. Redefinindo: são invisíveis do ponto de vista humano aqueles corpos que não interferem nos fótons que vibram dentro do espectro de frequência da luz visível para nós, os humanos. Ou seja, da luz, a onda eletromagnética que vibra dentro da quase oitava inteira entre 400 e 750 terahertz.
Mas mesmo limitando de tal forma a faixa de espectro alvo de minha invisibilidade, isto não diminui em quase nada meu problema. Apesar de não sermos emissores de luz visível devido à baixa temperatura de nossos corpos, ainda interagimos com a luz visível que nos atinge do exterior. É o que define a cor de uma superfície qualquer: vemos exatamente aquela parte do espectro visível que o corpo não absorveu, mas espalhou ao seu redor. A ideia pode parecer estranha, mas um corpo azul, por exemplo, é tudo, menos azul! Ele absorveu todas as outras cores do espectro, e rejeitou exatamente aquela cor que vemos nele: o azul! Por este motivo um corpo azul nos parece negro se colocado numa sala com luz vermelha! Porque nesta sala ele absorve totalmente a luz do ambiente, e não espalha nenhuma luz azul; Esta frequência é inexistente na fonte de iluminação que estamos usando. Ele só nos parecerá azul na luz ambiente, branca, que contém uma mistura de todas as cores visíveis.
Para eu me tornar invisível, nenhuma parte de meu corpo poderia absorver luz alguma. Toda luz recebida deveria ser devolvida ao exterior. Isto bastaria para me garantir a invisibilidade? De forma alguma! Conhecemos muito bem corpos que fazem exatamente isto, mas que mesmo assim não são invisíveis: os espelhos! Qual a cor de um espelho? Exatamente a cor da luz que ele recebe do ambiente, não é? Eu ficaria com uma aparência bem curiosa mesmo se conseguisse tornar toda minha pele reflexiva, rebatendo todo e qualquer fóton recebido do exterior. Mas certamente não me tornaria invisível fazendo isto.
Invisível é QUASE um sinônimo de transparência. Corpos transparentes são invisíveis? Uma escultura de vidro é invisível? Quase invisível, eu diria. Poderíamos ter alguma dificuldade em notá-la se a observássemos contra um fundo uniforme, sem detalhes ou texturas. Mas acabaríamos percebendo seu contorno! Os corpos transparentes se tornam reflexivos se atingidos por luz quase perpendicular à normal de seu plano, a luz rente à sua superfície pode rebater nele sem atravessá-lo. Por isso ficaria ainda mais evidente sua presença se observada contra um fundo mais complexo, com várias cores e formas. Saberíamos estar observando um objeto transparente, mas de forma alguma invisível.
O fato é que os corpos transparentes satisfazem algumas condições de invisibilidade que descrevi antes, mas não todas. Eles não alteram, ou alteram muito pouco a intensidade e frequência de vibração dos fótons que o atravessam. Mas o mesmo não se pode dizer quanto à trajetória de tais fótons. Existe uma propriedade vital, o índice de refringência, que é diferente entre meio de onde vem o fóton (o ar) e o meio que ele atravessa (o vidro). Isto altera a trajetória dos raios, e por isto percebemos a presença do corpo transparente. Ele não é mais invisível! Para ser invisível, o corpo precisaria ter o mesmo índice de refringência que o meio externo, que no caso é a atmosfera terrestre.
Devem ter notado que especulei demais não é? Como poderia tornar meu corpo invisível se nem ao menos sei como deixá-lo transparente? Como disse no começo, foi exatamente daí que parti: estudando criaturas que naturalmente já haviam desenvolvido corpos transparentes. Seria um desperdício de tempo absurdo jogar fora centenas de milhões de anos de experimentos que a própria natureza já havia feito para mim, usando a seleção natural.
A maioria dos seres unicelulares são incrivelmente transparentes, o que nos obrigou até mesmo a desenvolver contrastes para que pudéssemos observá-los em nossos microscópios. Mas eles todos têm uma vantagem insuperável, que é serem extremamente finos. Os fótons atravessam sem grandes dificuldades corpos extremamente finos. Certamente não eram eles meu foco, e sim os seres maiores, macroscópicos, que apesar de seus tamanhos eram transparentes.
As medusas sempre me fascinaram. Conhecidas como águas-vivas, de fato seus corpos tinham um índice de refringência muito parecido com o da água à sua volta. Elas eram, ao menos neste meio transparente em particular, quase invisíveis. Estudei a fundo suas células, pesquisei sem descanso o que tornava suas proteínas vitais, gigantescas macromoléculas, capazes de quase não interagir com os fótons que a atingiam do exterior de todas as direções possíveis. O que faziam moléculas tão grandes serem atravessadas por tais fótons praticamente sem interagir com eles?
Fui avançando depois para seres mais complexos, inclusive peixes. Embora não totalmente transparentes, alguns eram diáfanos o suficiente para que pudéssemos observar até seus órgãos internos funcionando. O coração batendo, o sistema digestivo com seus movimentos peristálticos... tudo isto visível através de peles e ossos incrivelmente transparentes! Como conseguiam isto? Se tornou minha obsessão...
Estes peixes transparentes não eram tão diferentes a nível químico dos peixes normais, visíveis. Portando, visto em última análise que descendemos de peixes antiquíssimos, não deveriam também ser muito diferentes de nós mesmos. Ah, se eu pudesse descobrir o segredo de sua transparência!! Talvez isto pudesse ser aplicado a corpos humanos também! E conseguida a transparência, mais pesquisas poderiam nos levar enfim à almejada invisibilidade!
Isolei as enzimas fundamentais, aquelas que deixavam as criaturas transparentes. Agiam sobre importantes proteínas animais, tornando-as mais permeáveis aos fótons sem comprometer suas funcionalidades. Eu sentia estar na direção certa. Desenvolvi alguns coelhos translúcidos, ratos bastante transparentes, mas... me cortaram as verbas... Antiético? Sabotagem proposital? Ciúmes? Inveja? Como saber? O absurdo veredicto era claro: "Não estamos mais interessados na invisibilidade humana. Não precisamos explicar as razões nem os porquês. Simplesmente pararemos de financiar sua pesquisa."
Bem, havia acumulado algumas economias. Desviei verbas? Normalmente me envergonharia em confessar isto, mas neste caso não. Desviei sim! Fui cauteloso, previ que isto poderia acontecer! Que me cortariam os recursos desta pesquisa de uma hora para outra sem cerimônias. E eu estava tão perto... Não me perdoaria se fosse obrigado a parar por alguma estúpida decisão puramente política. E escondido levantei meu laboratório particular, trouxe comigo alguns cientistas de inteira confiança, e prossegui com minhas pesquisas. Era irônico até precisar precisar continuar pesquisando a invisibilidade num laboratório, de certa forma, "invisível". Tivemos muita dificuldade em conseguir uma cobaia humana com nossas verbas limitadas, e nem pensei duas vezes: eu mesmo me ofereci, eu seria o primeiro Homem Invisível da história da humanidade!
Cada injeção de enzima que eu recebia naquele laboratório secreto era um avanço. Confesso que a princípio foi um pouco repugnante me observar com veias e músculos à mostra, à medida em que minha pele ficava transparente. Mas acabamos nos acostumando com isto. Os ossos foram bem complicados, pois não é fácil tornar o cálcio transparente. Mas a pesquisa avançava, longe dos olhos do mundo. Princípio de invisibilidade, de certa forma.
Eu deveria ter prestado mais atenção aos efeitos colaterais. Mais ainda, eu deveria tê-los previsto. Mas tal era a minha excitação em ver os resultados positivos que acabei nem notando. Dia após dia eu me tornava mais transparente, pude ver através dos meus ossos, da minha caixa craniana. Meu cérebro de início parecia uma massa cinzenta transparente, os olhos presos à sua frente, ligados pelos nervos óticos... O coração bombeando um sangue cada vem mais rosado, mais aquoso... Sim, um dos últimos a sumir foi mesmo a hemoglobina! Mas eu confiava nos meus pesquisadores, sabia que eles conseguiriam deixar até o ferro totalmente transparente! No final da transformação, da minha invisibilidade total, a última parte visível de meu corpo foi o sistema circulatório, o sangue correndo por veias, artérias, capilares. Foi o que eles me disseram ter visto. Mas eu... eu não vi nada disto.
Sabem o que nos faz enxergar o mundo? A luz entra por nossas pupilas, e é focalizada no fundo de nosso globo ocular, onde está nossa retina. Funciona como uma máquina fotográfica. Como uma máquina fotográfica? Eu disse mesmo isso? Me perdoem o deslize. Não é nosso olho que funciona como uma máquina fotográfica. É a máquina fotográfica que funciona como nosso olho, já que ele, o olho, é uma invenção muito mais antiga! Retomemos então o fio da meada. A luz externa atinge uma lente natural, nosso cristalino. Ele focaliza a luz que atravessa a pupila, que a focaliza na retina. Existem lá células especializadas em captar a luz, nossos cones e bastonetes. Cones bastante sensíveis à luminosidade, independente da frequência, que são inclusive os maiores responsáveis por nossa visão acromática em ambientes escuros! E bastonetes, sintonizados em três frequências luminosas: vermelho, verde e azul. Algumas pessoas são mais, outras menos capacitadas a detectar exclusivamente a frequência amarela, entre a vermelha e a verde. Um quarto tipo de bastonete, cuja presença na retina é determinada geneticamente. O fato de tal célula ser mais comum em indivíduos de gênero feminino explica, em grande parte, o fato das mulheres serem capazes de diferenciar mais cores do que aquelas reconhecidas pelos homens. Seja como for, nós captamos a imagem projetada, e a transmitimos pelos nervos ópticos aos nossos cérebros. E ele enfim nos faz ver.
Mas eu estava fazendo todo meu corpo ficar com transparência perfeita, lembram? De início, meu cristalino parou de se comportar como lente. Uma lente é um menisco transparente com índice de refringência diferente do meio externo, capaz de desviar e focalizar a luz num plano focal. Inicialmente foi meu cristalino que perdeu esta capacidade, ao se tornar totalmente transparente. Tudo o que via eram borrões brilhantes, desfocados. A lente era inexistente. Meu cristalino era transparente, minhas pálpebras eram transparentes. Inclusive não mais conseguia dormir, pois mesmo de olhos fechados não mais bloqueava a claridade externa! Mas tentei esconder isto o máximo que pude, achei que passaria logo. E que não valeria a pena parar as pesquisas por causa disto...
Enfim minhas retinas também ficaram invisíveis. Elas não mais interagiam com os fótons vindos do exterior. Cones e bastonetes não mais interagiam com a luz que captavam, não transformavam mais o estímulo em impulso nervoso. Tudo foi escurecendo, não enxergava mais nada. O mundo se tornou um breu absoluto. Uma retina transparente não mais reconhece imagens, não transforma imagens nele focalizadas pelo cristalino (alias, agora sem função alguma!) em impulsos nervosos.
Eis-me aqui. Consegui meu intento, estou invisível! Ninguém mais me vê! Mas eu deveria saber que tudo tem seu preço. E eu paguei o meu. Ninguém mais me vê, mas eu também não posso ver mais ninguém...