2020 - Idade dos Porquês

Brundle acordou aquela manhã pensando da morte. Não era bom uma criança daquela idade pensar na morte, muito menos na própria morte. Mas ele teve um pesadelo. Neste pesadelo ele acordava como sempre fazia toda manhã, tomava seu banho, digitava no terminal as coordenadas de sua escola, deixava sua casa, mas... não chegava à escola!

- Estou com dor de barriga... - arriscou, mesmo certo de que esta desculpa não conseguiria convencer nenhuma mãe do mundo.

- Se apronte logo, Brundle! E não me atrase mais do que já estou!

Ele estava na idade dos porquês. "Por que o céu é azul? Por que o sol é quente? De onde vêm os bebês?". Com paciência incrível, a mãe lhe respondia sobre o espalhamento da radiação eletromagnética na atmosfera, reações termonucleares de fusão entre hidrogênio e hélio, morfogênese da codificação genética...

- Posso ir pra escola hoje do outro jeito?

- Que jeito, Brundle?

- Do jeito normal...

Jeito normal? Do que aquele menino estava falando agora?

- O que você tem de verdade, Brundle?

- Tive um sonho ruim...

Ela abraça o filho com ternura, mas isto não conseguiu tirar de sua cabeça aquela terrível ideia de morte. O pesadelo fora nítido demais!

- Posso ir hoje de "Maglev"?

- Filho, você sabe muito bem que não existem linhas de "Maglev" até a lua!

- Um foguete então. Ou poderia pegar uma carona num cargueiro...

- Seth Brundle!!! Vou prepara seu café da manhã, e assim que voltar quero que você já esteja pronto!!

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Veronica começou a programar a lista do café da manhã no materializador de alimentos da cozinha. "adicionar 1 pão com manteiga, adicionar 2 panquecas, adicionar 1 copo de leite achocolatado". Pensa um pouco. Abre o materializador, coloca um copo dentro dele, fecha e completa as instruções: "excluir copo e materializar apenas conteúdo líquido, adicionar 1 maçã". Digitou o botão para materializar o pedido, e o café da manhã apareceu dentro do equipamento como era o esperado há séculos.

Veronica pegou a maçã. Imperfeita, assimétrica, como era o esperado de todo alimento orgânico. Mas olhou bem aquela imperfeição particular daquela maçã. Não seria a mesma imperfeição do café da manhã de ontem? E do café de anteontem? Estaria o fornecedor replicando alimentos materializados antes, ao invés de enviar ao aparelho alimentos frescos, genuínos e originais? Para... o quê? Aumentar seu lucro de forma desonesta? Não estava explícito no contrato de fornecimento que as materializações seriam sempre de gêneros alimentícios inéditos, sem reenvio de cópias? Até onde chegaria a ganância humana? Hoje não, estava apressada! Mas amanhã teria uma conversa séria com o dono do estabelecimento...

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- Não acredito que nem saiu da cama, Brundle! - explodiu a mãe, levando a bandeja do desjejum...

- Não quero ir hoje, mãe! Não pelo portal!

- Tem a ver com sua pergunta de ontem, não é, Brundle?

Sim, Brundle era uma criança incomum. Excepcionalmente curiosa. Era inevitável que aquela pergunta acabasse surgindo: "Como funcionam os portais? Como somos teletransportados, mamãe?". Ela própria tinha uma ideia bem rudimentar do mecanismo. Exceto por alguns técnicos muito especializado, poucos sabiam com exatidão. Isto apesar de ser uma tecnologia já usada há alguns séculos... Mas, como sempre, ela se esforçou para explicar:

- Nossa matéria é escaneada, Brundle. Sua informação é transmitida pedaço a pedaço para o destino, e reconstruída lá.

- Célula por célula, mãe?

- Sim, célula por célula!

- Átomo por átomo?

- Sim, Brundle! Átomo por átomo! - ela já começava a ficar impaciente.

- Próton por próton? Nêutron por nêutron? Elétron por elétron?

- Sim, Brundle!!! - ela estava a ponto de explodir!

- E os spins dos elétrons também são preservados, mãe? Isso também é transmitido no teletransporte?

- Brundle, onde quer chegar, rapazinho? ÓBVIO QUE SIM!! - gritou, embora não tivesse a mais leve sombra de certeza disso.

- E se o materializador errar ao codificar a orientação, e materializar dois elétrons de mesmo spin no mesmo orbital?

- Tem o princípio da exclusão, Brundle!! Seu professor de Mecânica Quântica já não te deu esta aula?

- Chato...

- Que foi, rapazinho? O que disse?

- Aula chata esta mecânica quântica. Gato morto-vivo, partículas que também são ondas... Nunca vou usar estas porcarias para nada...

- Ah é? E como você acha que funciona este computador quântico que você tem implantado na sua testa, hein? Me explica. E pare com esta conversa boba sobre portais invertendo o spin dos elétron...

- Mas... E SE, mãe?

- Brundle, tome logo seu café e pare de pensar besteiras!!!

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Quando Veronica voltou, Brundle olhava fixo sua maçã.

- Parece a mesma de ontem...

Ela não discordou. Não dava pra disfarçar o fato.

- Sonhei com o destino do original, mãe! Da parte nossa que é copiada pelo portal de origem...

- Como assim, filho?

- Me desmaterializo aqui em casa e sou reconstruído na lua, não é?

- Exatamente!

- Que acontece com meu original?

Ela pensou um pouco. Explicou confiante:

- E=mc²! Seu original é desmaterializado, e se transforma na energia usada para transmitir as informações de sua cópia, rematerializada no destino.

- Eu deixo de existir???

- Por alguns momentos. Enviado à lua, isto leva pouco mais de um segundo até você ser reconstruído num portal de lá, ao lado de sua escola... O tempo para a informação, na forma de ondas eletromagnéticas, chegar até lá.

- Durante pouco mais de um segundo eu não existo.

- Sim, Brundle!

- Se meu destino for plutão, ficarei então um bom tempo sem existir...

- Sim... - ela não sabia aonde o filho queria chegar.

- Quer dizer, fico temporariamente morto?

Ah!!! Então era este o ponto!

- Lógico que não, Brundle! Eu diria que temporariamente suspenso, até ser rematerializado. Você ainda existe, sua informação apenas mudou de forma para viajar mais rápido, na velocidade da luz.

- Sentimos algo na viagem? Continuamos pensando?

- Lembra daquelas férias que passamos em Saturno? Você sentiu que a viagem durou quase uma hora?

- Não. E eu achei que demoraria. Saturno é bem longe, não é mesmo mãe?

- E se fôssemos em naves espaciais levaria semanas! Por teletransporte durou pouco menos de uma hora, e mesmo assim, por estarmos suspensos durante a viagem, ela nos pareceu instantânea...

- Mas... só é copiada minha matéria?

- Sim!

- E eu, minhas lembranças, habilidades?

- Registros químicos de ligações sinápticas registradas no seu cérebro, informações reproduzidas na íntegra.

- Toda a matéria reproduzida? Só a matéria?

- Brundle, a matéria é tudo o que há para ser reproduzido!

- E minha alma?

A mãe se desesperou! Quem estava tentando corromper seu filho com estas idéias absurdas?

- De onde você tirou esta ideia, menino?

Ele seria incapaz de entregar o melhor amigo. Arriscou:

- Li num livro velho...

- Você anda lendo aqueles livros religiosos antigos? Quantas vezes vou ter que te falar que isto não é o tipo de coisa para ser lida por pessoas da sua idade? Você não entende o contexto todo. Isto não é coisa para ser lida por crianças como você! Quando crescer, aí sim você escolhe se quer seguir alguma religião ou não, e, se for o caso, qual delas. Tem várias novas e outras bem antigas para escolher. Mas por enquanto, você só tem que se preocupar com a escola, certo? Sua professora me disse que você não foi muito bem naquela última prova de Aplicações Práticas da Teoria das Cordas...

O amigo lhe alertara sobre esta resistência previsível. Tentou seguir então por outro caminho:

- Meu original é então desmaterializado para... fornecer energia à replicação?

- Esta é a ideia, filho!

- Desnecessário, né? Com tantas outras fontes de energia... Nosso próprio sol, buracos negros, energia escura...

- Digamos que seja um compromisso ambiental: você fornece a energia para se teletransportar se desfazendo da própria matéria original.

O pesadelo ficou agora bem vivo em sua lembrança.

- E se der errado, mamãe?!! - o pavor em seus olhos era indisfarçável! - E se eu for desmaterializado aqui sem ser rematerializado lá? Para onde irei então?

- Brundle, isto nunca aconteceu em séculos!!

- Por quê? O que impede?

Veronica pensou... Já estava atrasada, mas não podia deixar esta dúvida na cabeça do filho.

- Ih!!! Esqueci as torradas!!! - e saiu, mas na verdade não havia torrada nenhuma... - Já volto, Brundle.

Ela ordenou a materialização de torradas, pois precisava justificar sua escapada. Mas também aproveitou para perguntar ao computador central a respeito de teletransportes mal sucedidos do passado.

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- Torradas com geleia para meu filhão!! - surgiu Veronica, com uma resposta parcialmente preparada. Esperava que fosse capaz de convencer o filho incrivelmente inteligente (um orgulho, mas ao mesmo tempo um tormento para ela).

Brundle comeu uma torrada, desconfiado.

- E então, "mami"?

- Não tem como acontecer, filho! Se o portal emissor percebe que o receptor não está disponível, ele rematerializa o passageiro.

- Como?

- Oras bolas... Ele te escaneou, não é? Sabe como te refazer de novo, usando esta informação...

- Então...

O olhar de Brundle vagava longe. O que se passaria em sua cabeça?

- Ele armazena uma cópia completa de mim antes de transmitir? Para o caso da transmissão falhar?

- Acho que... acho que sim, Brundle! Êta, moleque!!! Para de me fazer perguntas difíceis!!!

- E se... ele me materializasse na escola, lá na lua, sem me desmaterializar aqui na Terra? Passariam a existir então dois Brundles idênticos no universo?

- Ninguém nunca fez isto! É um absurdo!

Ela olhou o relógio holográfico projetado no meio do quarto.

- Brundle! Você tem 15 minutos para tomar seu café, tomar seu banho e ir para a escola!

E sai furiosa do quarto...

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Tudo na mesma quando ela volta. Seria obrigada a recorrer às medievais palmadas para mostrar ao moleque quem era a autoridade ali?

- Por que eu tenho que ir pra escola? Por que não desmaterializar e me rematerializar em seguida com as ligações sinápticas das aulas de hoje já registradas no cérebro reconstruído ?

- Isso não existe, mocinho. Você anda vendo ficção científica demais pro meu gosto...

Olha desconfiada para o filho:

- Você anda assistindo escondido de mim a milésima temporada do Doctor Who por acaso?

- Não, mãe! Lógico que não!

- Você sabe muito bem que este negócio de viagem no tempo não existe, né? Você já teve na sua aula de Análise Cronológica a prova por absurdo do paradoxo de causa-efeito?

Ele pensa, e dispara em desafio:

- Podemos viajar para o futuro.

- Brundle, todo mundo está viajando para o futuro o tempo todo. Já conhecemos o princípio da entropia desde a Idade Média!

- Não, mãe! Estou falando de viajem instantânea! Sem envelhecer!

- E como pretende fazer isso, meu "geniozinho"?

- Ah, fácil!

Veronica estava realmente curiosa para ouvir a explicação do filho.

- Desmaterializo, gravo a informação num cubo holográfico e rematerializo uns 100 anos no futuro. Fácil assim, mãe!

Ela nunca havia pensado em tal possibilidade.

- Certo, você dá um passeio daqui a 100 anos no futuro. E como vai fazer depois para voltar?

- É, ainda não pensei nesta parte... - mas, antes que ela tivesse tempo de falar algo, Brundle disparou de novo - E se algo der errado na cópia, mãe?

- Errado? Com todos os algoritmos de correção de erros envolvidos, filho? Impossível...

- E se entrarem duas entidades genéticas diferentes no portal ao mesmo tempo?

- Quê?

- Sei lá. Eu e uma formiga. Ou então... - pensou bem antes de falar. Estaria se denunciando falando aquilo? Revelando que andava assistindo aqueles filmes antigos proibidos? Arriscou.. - E se uma mosca entrasse comigo no portal? Nosso código genético se fundiria? Eu apareceria na escola como um Brundle-Mosca?

Era o cúmulo! O garoto estava abusando...

- Onde você ouviu esta besteira, menino? Já está me tirando do sério!!!

Puxa a coberta do preguiçoso.

- Vai logo tomar seu banho, que sua aula começa em cinco minutos!!! BRUNDLE-MOSCA... Francamente!! Por acaso sua roupa se funde à sua pele quando você se teletransporta? Óbvio que não! O portal sabe diferenciar o material de origem espacialmente! Se uma mosca entrar com você no portal, você e a mosca chegarão intactos na Lua, em seu colégio!

O garoto ainda não estava disposto a se entregar.

- O portal sabe então diferenciar no teletransporte a matéria que pertence ao meu corpo da matéria externa?

- Lógico que sim!

- Então sabe diferenciar o que é meu corpo e minhas roupas do que é sujeira?

Veronica nem respondeu. Já imaginava aonde o menino pretendia chegar. Ele entendeu o "sim, prossiga" no olhar da mãe.

- Então por que tenho que tomar banho neste frio do caramba? O portal não poderia me desmaterializar, separar a sujeira, e me rematerializar na escola sem esta sujeira, sem eu precisar tomar banho?

- Ah moleque!!! - e disse enquanto mandava umas carinhosas sandaliadas magnéticas nas nádegas do menino. - Sabia que uma hora ou outra acabaria chegando nisso! Entra logo no chuveiro, que você tem só 30 segundos pra se teletransportar até a escola!!!