2020 - Planeta Boia
O Universo às vezes parece deixar de ser frio, impessoal, e se mostra para nós como possuidor de uma ironia impagável! Entre tantos outros exemplos, um dos mais notáveis é o do segundo planeta da anã laranja KR 3754.
Na época da sua descoberta, no final do século 21, ainda não tínhamos nos aventurado para fora do nosso sistema solar. Ocupávamos a maioria dos corpos viáveis de nosso sistema estelar de origem, mas avançar para estrelas vizinhas ainda era um salto grande demais para a tecnologia da época. Mas isto não nos impedia de observar nossa vizinhança, conhecer os candidatos futuros e estudá-los. Foi neste contexto que descobrimos o KR 3754-3. Sim, o segundo planeta de um sistema estelar recebe a numeração 3, pois o 1, como não podia deixar de ser, era a própria estrela.
Um método bastante clássico de detecção de planetas orbitando estrelas é a diminuição de seu brilho durante os trânsitos, eventos nos quais o planeta passa em frente à sua estrela e bloqueia parte de seu brilho. Diminuição muito pequena dada a desproporção de suas dimensões, mas na época já existiam equipamentos bastante sensíveis para detectarem estas variações mínimas. Normalmente quando um planeta começa a entrar na frente do disco estelar o brilho começa a diminuir rápido, atinge um máximo de velocidade de variação na primeira derivada, e depois começa a diminuir mais devagar, até se estabilizar quando o planeta entra totalmente dentro do disco estelar. O mesmo ocorre, em sentido contrário, quando o planeta começa a sair do disco. Isto se explica pelos planetas serem esféricos, entrando e saindo dos discos estelares numa velocidade localmente constante.
KR 3754-3 era diferente! O brilho decaía rápido como se a estrela fosse eclipsada por um planeta pequeno, mas quando parecia ter atingido um máximo permanecia um longo tempo decaindo linearmente, primeira derivada praticamente constante, até começar, passado um intervalo fixo, a voltar a cair quadraticamente e se estabilizar. Foi um quebracabeças na época, muita gente tentando entender que forma teria tal planeta para apresentar tal padrão de obstrução em trânsito.
Uma primeira explicação foi dada: o planeta não era esférico, e sim um elipsoide bastante alongado! Mas isto não explicava completamente as observações. A queda linear de brilho, por exemplo. Como sempre, culparam a imprecisão dos instrumentos de medida, mas à medida que estes se aperfeiçoavam, ficou cada vez mais claro que isto não poderia ser usado como desculpa. E havia também a dificuldade óbvia de se explicar como um planeta com um formato de elipsoide tão deformado, com aquela massa toda, poderia se manter estável! Foi quando a maior precisão dos equipamentos de medida mostraram outra particularidade ainda mais inexplicável que a primeira.
Acontecia que, no meio do trânsito, quando se esperava uma diminuição constante, invariável do brilho, em certo momento ele aumentava quase que imperceptivelmente, mas não para os sensíveis equipamentos de medida. Era como se, no meio do caminho do planeta em torno do disco estelar, se abrisse momentaneamente um buraco no meio dele, deixando passar mais luz, e se fechasse pouco depois. Sim, isto fazia ainda menos sentido do que um planeta de um elipsoide tão acentuado se manter estável. Um buraco se abrir por alguns instantes no meio do planeta para se fechar logo em seguida? Isto desafiou por um bom tempo qualquer explicação racional.
No começo do século 22 um astrônomo bastante criativo ousou dar uma explicação. E citou uma máxima do famoso Sherlock Holmes, detetive criado a pouco mais de dois séculos atrás por Sir Arthur Conan Doyle, para justificar sua teoria: "quando se elimina o impossível, o que resta, por mais improvável que seja, é a verdade". E apoiado nisto, ele afirmou: o planeta KR 3754-3 não é esférico, mas toroidal! Sim, ele tem a forma de uma rosquinha, ou uma boia!
A explicação se encaixava de forma maravilhosa em todas as observações experimentais! Explicava a variação linear de brilho, explicava o "buraco" que surgia no meio do trânsito, quando o ângulo do planeta em relação a nós permitia parte da luz da estrela atravessar seu "centro", o buraco da rosquinha. Explicava o fato de ter pouca massa, apesar do tamanho aparente muito maior que parecia ter! A questão agora era: um planeta toroidal? Mas como? Isto é possível?
Bem, possível é! O próprio Isaac Newton, num voo de imaginação, demonstrou que em certas circunstâncias um planeta rochoso de massa adequada e com um período de rotação específico poderia se manter bem estável num formato toroidal, tão estável quanto os já conhecidos planetas elipsoides, em equilíbrio hidrostático. A força centrífuga de sua alta rotação responderia por uma grande parte do problema original de estabilidade hidrodinâmica. Mas uma coisa é um planeta de tal formato ser possível teoricamente, outra é surgir naturalmente, de forma espontânea. Como ele teria se formado num aglomerado de gás e poeira, que tende a juntar toda a matéria à sua volta em torno de um ponto central, num formato elipsoide em rotação já bem conhecido?
Outro astrônomo de imaginação igualmente ilimitada percebeu que temos um exemplo em nosso próprio sistema solar de como deve ter se iniciado o processo: nos anéis de Saturno! Certo, estes anéis formados por incontáveis pedaços de gelo não têm exatamente a forma de um toroide. É achatado demais. Mas imaginemos isto acontecendo em alguma outra parte do universo com rochas ainda em formação, extremamente quentes! E material externo abundante começa a se aglutinar cada vez mais em torno deste anel. Por que motivo a nuvem proto planetária se concentraria em torno do anel, e não em torno do planeta central? Bem, isto já é outra questão a ser respondida. Atendo-nos aos fatos, o anel foi ganhando cada vez mais massa, ficando mais espesso, até adquirir a geometria estável já prevista por Newton de um toroide! E esta massa foi se resfriando num estranho planeta rochoso...
Muita coisa ainda faltava (e ainda falta) ser explicada neste modelo de formação planetária. A principal é: o que aconteceu com o planeta central, em torno do qual o toroide rochoso foi formado? São várias as possibilidades, cada uma delas com suas dificuldades próprias para serem provadas. Uma delas diz que ele simplesmente foi expulso! Num ponto de equilíbrio gravitacional instável, uma variação mínima teria sido suficiente para lançá-lo fora do sistema estelar. O grande problema com esta hipótese é: onde está este planeta central agora? Para onde foi? Enquanto não for encontrado, e a análise de seus componentes químicos não mostrar que realmente fazia parte da mesma nuvem proto planetária de KR 3754-3, qualquer afirmação não passa de mera especulação. Uma segunda hipótese, com muito mais defensores fervorosos, diz que o planeta central foi destroçado por forças de maré do toroide de massa descomunal formado ao seu redor, e acabou assim pulverizado, caindo e incorporando o próprio planeta toroidal. Há uma terceira hipótese de um planeta esférico, ainda não solidificado, ter sido atingido exatamente num dos polos por outro corpo de grande massa, e tal impacto ter espalhado o material ainda semi liquefeito naquela configuração de rosquinha. Esta é muito mais difícil ainda de se apoiar, pois nem a coincidência de atingir exatamente um dos polos nem a estabilidade exigida na reconfiguração do sistema após tal impacto é razoável aceitar. Possível? Sim, mas com probabilidade muito baixa! Muitos eventos aleatórios precisariam dar certo simultaneamente para que isto se tornasse possível.
Em meados do século 22 começamos a enviar as micro sondas aos exoplanetas vizinhos mais promissores, para estudá-los com mais detalhes. E foi em 2384 que recebemos as primeiras imagens do KR 3754-3, confirmando que ele tinha mesmo geometria toroidal. E que era coberto de um oceano, com continentes secos em sua superfície. E que tinha atmosfera, com concentração de 15% de oxigênio e 85% de nitrogênio. E que tinha vida. E que era bem parecida com a que se desenvolveu aqui na nossa Terra!
Foi por tudo isto que, apesar de não ser o mundo habitável mais próximo, apresentava características únicas que nos levaram a escolhê-lo como primeiro habitat humano fora do sistema solar! Parecia-se demais com nosso próprio planeta, a gravidade média de 0,8g era bem familiar, a vida alienígena primitiva não era hostil, os 120 anos luz deixaram de ser problema no ano de 2415 depois de aprendermos a distorcer o espaço-tempo ao redor de nossas espaçonaves para conseguirmos navegar em velocidades supra lumiais sem violar a relatividade de Einstein. Mas, o mais importante de tudo: era um planeta com formato de rosquinha, caramba! E é nisto que pensava quando mencionei a ironia do Universo no começo desta história: saímos do Planeta Bola, nosso lar original, e quando tentamos nos salvar procurando outros lares no espaço à nossa volta, encontramos um Planeta Boia, com o formato de uma boia salva-vidas solta num mar de vácuo, nos oferecendo uma chance de salvação. É ou não é irônico?
Acostumado como estava com planetas esféricos, confesso que me aproximar de um planeta com formato de uma gigantesca boia foi uma experiência indescritível! Era sem dúvida bem maior que a Terra! Do centro do toroide até a primeira superfície interna eram 8633 quilômetros. A terra caberia com folga dentro do buraco daquela rosquinha! Do outro lado, a superfície externa se estendia até os 19937 quilômetros. Vendo agora de perto, era um toroide um tanto quanto achatado.
Pousei inicialmente no equador externo. Sim, com este formato geométrico incomum, o planeta tinha dois equadores! Um externo, bem extenso, e um interno, de menor circunferência. Mesmo os polos deste planeta eram incomuns. Não havia os círculos polares norte e sul, com os quais estávamos acostumados nos planetas esferoides. Havia os anéis polares norte e sul! Tais anéis inclusive separavam o planeta em dois hemitoros, o hemitoro exterior e o hemitoro interior. Eram anéis gelados inóspitos, impossíveis de serem transpostos pela vida primitiva do planeta. Inclusive explicava o fato dos ecossistemas nativos terem se desenvolvido de forma tão distinta em cada um dos hemitoros: não havia contato entre eles, e era como se cada hemitoro fosse um planeta diferente, com seu próprio ecossistema particular.
Depois de iniciada a colonização, era natural que as pessoas escolhessem um ou outro hemitoro. Por pura preguiça ou falta de criatividade, os habitantes do hemitoro exterior eram chamados de "os externos", enquanto os que escolhiam o hemitoro interior eram "os internos". Uma piadinha comum era sugerir que os externos eram os habitantes mais "gordinhos" do planeta, por escolherem o hemitoro que apresentava menor gravidade (cerca de 0,75g no equador externo). Isto tinha até certo fundo de verdade. No hemitoro interno a gravidade, no equador, chegava aos 0,81g. Nos anéis polares ela atingia 1,1g, mas... Quem se importa? Nenhuma pessoa em sã consciência viveria nos gelados anéis polares...
É muito diferente, difícil mesmo de se explicar, observar o horizonte daqui do equador exterior do planeta! Pra começar, esqueçam o horizonte uniforme, a uma distância quase fixa em todas as direções, que estão acostumados a observar no planeta esférico chamado Terra. Isto não existe aqui! Temos um horizonte ao norte e ao sul um pouco mais próximo (já que a curvatura local aqui no equador externo é um pouco maior que na Terra), mas é só deslocarmos nossa visão para leste ou oeste que percebemos esta distância aumentar vertiginosamente. Na verdade, bem perto do leste e do oeste mal conseguimos ver o final do horizonte! É um efeito atmosférico bem conhecido, na Terra percebemos que quanto mais distantes as montanhas mais pálidas e azuladas elas ficam. Mas com um horizonte médio de 5 km de distância este efeito nunca é visto com tanta intensidade como observado em KR 3754-3. Aqui o horizonte próximo ao eixo leste-oeste é muito mais distante, e rápido o relevo se perde tanto no azul pálido que começa a se dissolver no azul do céu, ficando impossível se descobrir onde acaba um e começa o outro. Não há uma linha do horizonte quando se olha para o leste e para o oeste, já que o relevo distante acaba se fundindo com o céu do planeta, ficando difícil separá-los. Esta é a curiosa visão diurna dos externos. Porque a noturna não é tão interessante assim. O planeta não tem satélites, o que torna a escuridão das noites quase que tangível! Para um terráqueo, a maior curiosidade é perceber a deformação em constelações bem conhecidas. Sim, pois de outro ponto de vista a configuração de estrelas próximas fica bem aparente, alterando o desenho de constelações a muito registradas em nossos subconscientes...
Mas fiquei pouco tempo no hemitoro externo. O céu do hemitoro interno é muito mais interessante para um visitante de fora. E é para ele que agora me dirijo... A gravidade no equador interior nem é tão maior assim que no exterior, com 0,81g, mas acreditem: percebemos esta diferença mínima! E pela primeira vez, caio de joelhos diante daquela visão de meio dia no hemitoro dos interiores: num azul escuro bem empalidecido, mas bem visível contra o azul celeste do céu, vejo um gigantesco arco começando ao leste, se erguendo até o meio do céu, e terminando no oeste: é a metade oposta do hemitoro interno do planeta, neste momento no período noturno e com inúmeras luzes artificiais pontilhando o gigantesco arco.
Sim, o eixo de rotação daquele planeta também era bem parecido com a própria Terra, cerca de 20 graus inclinado em relação ao plano orbital. Era o que permitia que o hemitoro interno pudesse ser iluminado, pelo menos a maior parte do ano, pela luz da anã laranja central. Se perfeitamente perpendicular ao plano de rotação, esta parte do planeta permaneceria em trevas eternas, com a luz da estrela central sempre obscurecida pela outra metade do planeta. Provavelmente isto impossibilitaria o desenvolvimento de vida nesta parte do planeta, ou a tornaria bem diferente daquela da outra metade...
As noites aqui no equador interno são fabulosas! Lembram do arco azul escuro pálido que descrevi aparecer durante o dia? Bom, quando é noite aqui, é dia na metade oposta do planeta, e o azul deslumbrante de seus oceanos internos aparecem iluminados em meio a seus verdejantes continentes centrais, pouco a pouco desbotando no branco dos dois anéis polares do planeta! E todo este espetáculo contrastando um céu de breu absoluto, com o arco planetário cruzando a linha pálida da via láctea bem no meio do céu. Pelo menos era assim no local privilegiado de onde resolvi observar este céu impagável.
Bem, na minha empolgação toda acho que me esqueci de mencionar um fato muito importante: o dia neste planeta durava meras 3 horas e poucos minutos... Isto era indispensável para a estabilidade daquele sistema! Numa rotação mais lenta, apenas a interação gravitacional não seria suficiente para manter estável um pedaço de rocha, de interior ainda liquefeito, com aquela geometria tão antinatural! A força centrífuga gerada pela rotação do planeta contribuía com uma parte muito importante para o equilíbrio daquele sistema! Sim, era difícil admirar o nascer e por do sol neste planeta, pois aconteciam a velocidades vertiginosas.
Mas a verdade é que parecia que nunca me cansaria de ver o evento! Por mais que se repetisse tantas vezes dentro de nosso dia universal de 24 horas... Depois da breve meia-noite do planeta, que acontecia pouco mais de 40 minutos depois do por do sol, víamos o arco azul brilhante começar a se aproximar de nós na direção do oeste, enquanto se afastava na direção leste. Tínhamos a ilusão em alguns momentos dele estar caindo, se desmoronando sobre nós! Ilusão angustiante para quem não estava preparado para o fenômeno! Pouco a pouco as distantes montanhas e mares no oeste começavam a se iluminar em nossa direção, ao mesmo tempo que ao leste a estrela laranja começava a se erguer rápido na direção do hemitoro onde as luzes artificiais da breve noite começavam a se acender! Assim acontecia na maior parte do ano daquele planeta, correspondente a dois anos e meio terrestres. Aos inclinados aos cálculos matemáticos, sugiro tentar calcular quantos dias do planeta boia possuíam seu ano. Calcularão um número gigantesco, que ninguém seguia por não ter nenhuma utilidade humana prática.
Mas duas vezes por ano, o que neste planeta representa um período de aproximadamente 15 meses terrestres, as coisas aconteciam um pouco diferente. Eram os períodos dos grandes eclipses, similares aos equinócios de nosso planeta mãe. Percebam que, duas vezes durante a translação do planeta toroidal em torno de sua estrela central, os hemitoros ficavam perfeitamente alinhados com a luz vinda da estrela. Isto lançava sombras sobre a metade oposta do hemitoro, originando uma longa noite nesta parte do planeta! E pra quem pensa que neste período de 40 horas que aconteciam duas vezes por ano as trevas eram absolutas, não poderiam estar mais enganados! Era exatamente nestes períodos, enquanto o circulo orbital estelar aparente descrevia seu movimento por trás do arco celeste da parte oposta do planeta, que ficava evidente a luz pálida e espectral da coroa estelar! Aquela parte normalmente inobservável da atmosfera da estrela, eclipsada pelo brilho do disco central. Aparecia neste curto período em seu pleno esplendor! Fenômeno semelhante só observamos em nosso próprio sistema estelar em regiões próximas aos polos de Mercúrio. Mas nunca em segurança, a olho nu, como poderíamos observar aqui no Planeta Boia!
Bem, encerro por aqui minhas singelas observações sobre este curioso planeta. Espero ter despertado a curiosidade de vocês. O que tenho contra os corpos esféricos? Oras bolas, nada! Muitos são bem interessantes, sem dúvida nenhuma! Temos muita coisa para ver mesmo ao redor de nossa própria casa! Os rios e mares de metano de Titã, o oceano sob o gelo de Europa, a desolação avermelhada de Marte, as plumas de Tritão, e mesmo a inesperada atividade em planetoides tão distantes como Plutão e Caronte. Mas com as viagens interplanetárias se tornando cada vez mais baratas, recomendo fortemente que, quando possível, deem uma passadinha pelo curioso Planeta Boia! É uma raridade, e acho que dificilmente encontraremos outro parecido! É uma viagem que vale a pena! Eu garanto!