Curto-Circuito

Os procuradores da justiça são caras antenados. Gostamos disso. É difícil algo se lhes escapar. Perspicazes. O procurador está sempre atento ao que ocorre ao seu redor e na sociedade. Alerta, sempre alerta, feito o escoteiro. Nada há de ficar alheio ao seu escrutínio. Prontidão para entrar em defesa da sociedade, das pessoas de bem, das instituições; mesmo sem ser chamado, não importa. Sua missão está acima disso.

Alain Delon é um desses expertos, na verdade um de seus expoentes maiores. Exerce função de chefia das equipes. Considerado inteligente e experiente, está sempre envolvido em coordenar incumbências de alto calibre, a maior delas com um grupo exclusivo chamado “Os Ilibados”. Seus membros usam, inclusive, codinomes por força das ações secretas; o dele é “Eliot”. É também representante da categoria. Religioso praticante, sua imperfeição moral é justamente temperar as atribuições profissionais com pitadas divinas. Mas isso não vem ao caso, não importa mais.

Alain Delon, no seu escaneamento diário dos acontecimentos noticiados, sejam eles de destaque jornalístico ou não, teve sua atenção chamada para uma determinada cerimônia. Um grupo de servidores públicos, leia-se pessoas pagas pelo erário, viajaram a um país estrangeiro para receber uma premiação. O prêmio era um reconhecimento internacional ao trabalho desenvolvido pela equipe. Importante. A espécie causada foi quanto ao contingente: onze pessoas. Onze! O que era isso? Uma copa de futebol? Onze servidores para receber a plaquinha e o diploma? O olho clínico de Alain Delon não deixou passar a oportunidade de se investigar a que custo a participação da farra foi consumada.

Um outro aspecto, não tão evidente, tampouco escapou da sua sagacidade especialista: o país sede. Considerado um paraíso fiscal, era o mesmo país onde estavam domiciliadas centenas de “paper companies”, várias das quais acusadas pelos procuradores de servirem para a movimentação de vultosas quantias no sistema financeiro internacional.

Ahá! Com a sua experiência e perícia já era o bastante juntar essas duas pontas para, em cognição sumária – adorava! –, formular uma denúncia. Já anteviu fabricar uns dois ou três documentos e fazer uns cálculos de equação de primeiro grau mesmo. Adicionaria também o histórico simples da viagem, quem autorizou, quem embarcou onde, como se estivesse narrando um crime. E mais umas três ou quatro ilações disfarçadas de raciocínio dedutivo e, pronto!, já era possível fazer a asserção de que ações delitivas restaram provadas. Não faltaria uma citaçãozinha bíblica e, a seu juízo, poderia até pedir a prisão dos elementos alvos. Pensaria nisso depois. Tinha a sua estatística particular.

Abriu a sindicância. Basta agora utilizar o mesmo método infalível que ele mesmo e seus comandados criaram. Sentiu-se confortável e foi tratar da vida.

O relatório das autoridades alfandegárias foi fácil, o canal já estava aberto e os trâmites muito bem azeitados. Com todos os detalhes dos voos, poderia até inferir o horário do uso dos sanitários aeronáuticos.

Ao setor de Perícias e Avaliações encomendou o cálculo do custo total da participação no convescote, incluindo o tempo indisponível dos servidores.

Não importa se foi no fim de semana, calculem-se os adicionais da jornada extraordinária. E, o mais importante, o laudo técnico-pericial de quantos hectolitros de leite foram subtraídos das criancinhas. O seu recurso apelativo predileto a lhe permitir abrir várias portas para a sequência da sua retórica de denúncia acusatória.

Trabalho organizado. Texto elaborado, revisado, finalizado e pronto. Documentação compilada. Pedidos deferidos, autorizações obtidas, intimações expedidas. Alain Delon, homem de fé, havia recebido um aviso por intermédio de uma interpretação própria, da manifestação da sacerdotisa personagem do livro de profecias religiosas oriundas da Ásia Ocidental, o qual acabara de ler e decifrar o sentido e o deixara muito impressionado. Desta vez, a operação deveria ser conduzida e levada a cabo por ele pessoalmente. A importância etérea lhe era apresentada em única e divina oportunidade.

A central de inteligência passou-lhe com precisão, no tempo e no espaço, como todos poderiam ser alcançados no mesmo instante. Alain Delon convocou todo o seu “dream team” d’Os Ilibados e saíram à diligência. Todo o trajeto foi acompanhado por uma sensação de eletricidade no ar. Relampejos esparsos foram observados. Dos alto-falantes da viatura os versos da melodia cantavam, entre instrumentos em saturação, que a vida era como um fusível: curta e queimando rápido. No destino, com certa solenidade, Alain Delon e Os Ilibados apresentaram os mandados. A eles mesmos.

O que ocorreu a partir deste momento não se consegue descrever com precisão e de modo completivo e perfeito. Não com as palavras e expressões até hoje conhecidas pela humanidade. Eram 7 horas. O trem último do sertão descarrilhou. Nas nuvens ecoaram trombetas de mil megatons. O clarão de infinitos lúmens não permitiu que pálpebras protegessem os olhos. E o cheiro de derretimento plasmático inundou a atmosfera.

Uma agência espacial, a maior do mundo, é que se atreveu a fazer uma explanação teórica e simplificada. Utilizando-se da disciplina de servomecanismos, modelou matematicamente o sistema e propôs, com teoremas e axiomas, a tese de que uma fonte de alimentação de energia necessita de uma diferença de potencial para poder entregar a sua força motriz. Também é imprescindível uma carga, que ofereça a resistência em forma de força contra-motriz que irá conferir equilíbrio ao sistema e fazer tudo funcionar, como um conjunto de elementos inter-relacionados em vista de sua finalidade. Quando a quantidade de carga tende a zero, e a diferença de potencial forçosamente esvaece, o fluxo energético tende ao infinito e a fusão acontece.

Foi o que ocorreu. Tudo melou e muco viscoso restou a lubrificar a superfície daquela terra, outrora o paraíso de frondosas araucárias.

É o relatório.

Graco Jakal
Enviado por Graco Jakal em 16/07/2020
Código do texto: T7008054
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