O Professor e o Engraxate

O Professor e o Engraxate

Num universo paralelo, em outro Planeta Terra, no qual os povos nativos venceram os colonizadores europeus, tornando-os escravos, sujeitando-os aos mesmos modelos sociais sofridos pelas raças da nossa dimensão – as consideradas não puritanas – o Brasil foi um dos primeiros países a se desenvolver economicamente, tendo a reprodução crescido de modo acelerado entre os indígenas e lentamente entre os brancos.

A história improvavelmente plausível deste conto se passou em 1930, época inicial do governo do presidente Murilo Saga (até então o 25º presidente do Brasil, sendo que jamais houvera um branco no poder). Na Praça do Tatu, uma das principais da cidade Rainha do Sul – esta famosa pelas incríveis galerias cujos minerais eram importados e exportados em grande quantidade – estava um professor universitário descansando da sua aula de antropologia que ele acabara de lecionar. Sentara-se em um dos bancos de madeira maciça da praça que tinha um coreto no centro. Era início de outono, e as folhas das árvores que cobriam todo o diâmetro do lugar começavam a cair, uma por uma, com tons alaranjados, como uma febre anunciando a sua chegada.

O professor, Rêji Libêno, usava uma camisa xadrez, bermuda de brim e calçava sandálias. Sua pasta de couro jazia aberta ao seu lado. Ele alisou a barba por fazer e passou a mão em seu cabelo pixaim. Retirou os óculos de armação de tartaruga, pois as manoplas estiveram lhe causando dores terríveis naquela parte do nariz, a qual ele massageou pacientemente. Fechou os seus olhos de cor âmbar, se recostou, jogou a cabeça para trás e os abriu. Os raios de sol atravessavam as brechas das copas em feixes finos e grossos. Naquela tarde, as cigarras entoavam suas notas ruidosas mais estridentemente que nunca. Havia poucas pessoas por ali, apenas alguns casais namorando nos bancos e um grupo, no coreto, ensaiando para uma apresentação musical. Rêji era, além de professor de antropologia, defensor dos direitos humanos e, consequentemente, dos brancos. A separação que faziam nos locais públicos entre brancos e nativos era um disparate, na opinião dele. Acreditava que a sociedade, por estar sempre em mudança, poderia acabar aceitando a inclusão dos brancos, mesmo que estes tenham sido os responsáveis pela morte de muitos indígenas no passado. Infelizmente, a maioria dos seus estudantes não concordava com essa ideia. Inclusive, ele tinha dado o argumento de que a situação poderia ser outra, na qual os europeus tivessem saído vitoriosos e que os africanos, índios e os aborígenes teriam sido tirados de suas próprias terras, escravizados e vendidos em nações de brancos.

No universo em questão, brancos como o Getúlio Vargas ou Adolf Hitler jamais haviam nascido. Pessoas como Malcolm X e Martin Luther King eram apenas cidadãos comuns com empregos comuns e nomes diferentes.

Entre pensamentos e reflexões, Libêno resolveu ler um livro que carregava consigo, chamado “Memórias dos Nossos Ancestrais”, escrito por gente antirracista e também defensora dos direitos humanos, foi quando um engraxate surgiu de uma das entradas da praça, trajando roupas carcomidas e imundas. Tinha uma pele lívida, cabelos loiros e um cigarro se pronunciava no canto da sua boca, soltando uma fumaça densa e dispersa. Seus olhos que reluziam um azul cristalino contrastavam completamente com a sujeira que lhe manchava o corpo; seus pés estavam descalços. Os dois cruzaram uma olhadela, depois o engraxate voltou a encarar o chão lugubremente, e o professor universitário voltou a sua atenção ao livro. O professor, obviamente, se sentindo frustrado por não ter nem um centavo para dar ao pobre engraxate, que carregava penosamente a sua caixa onde, supôs o professor, quase ninguém teria pisado, sabendo que seus sapatos seriam tocados por mãos brancas. O engraxate, por outro lado, atravessou a praça e, chegando à outra extremidade, entrou em uma das ruelas, em seguida, esgueirou-se por um beco estreito. Lá, ele sentou-se entre os detritos, abriu sua caixa de engraxate e retirou de dentro um relógio de aspecto peculiar – avançado, diga-se de passagem – e pensou, segundos antes de apertar o único botão que se localizava na parte de cima do mostrador: “Só espero que estas micro câmeras nas minhas pupilas tenham conseguido filmar tudo. Quando for mostrado a todos o que eu vi, não mais existirá preconceito, a raça branca será apenas uma entre muitas, e 2030 será apenas um dos possíveis dois mil e trintas.”

Xester
Enviado por Xester em 10/07/2020
Código do texto: T7001734
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