Escuridão sem estrelas

Há muito tempo que ele já não prestava atenção na paisagem monótona que se repetia fora da janela do ônibus. Seus pensamentos estavam ora vagos, ora caóticos. Cada quilômetro percorrido o levava para mais longe de uma vida que não havia dado certo. Para trás ficavam um emprego mal remunerado, uma cidade sem graça e, o pior de tudo, uma separação conjugal onde ele confirmou, para variar, o quanto lhe faltava de habilidade emocional.

Atravessar o país para tentar recomeçar do zero esse era o seu plano. No fundo ele sabia que mesmo indo para o Polo Norte ou até para Júpiter ainda continuaria sendo o cara que se complica todo e sempre deixa tudo pela metade. Ele tinha que fazer alguma coisa. E ele fez. Pegou um ônibus para uma cidade três mil quilômetros distantes na esperança de que isso o ajudasse a se transformar em alguém um pouquinho melhor.

O homem na poltrona ao seu lado, com cara de mestre-cuca, bem que tentou puxar conversa, mas logo percebeu que ele não estava a fim de papo furado. Sete ou nove palavras proferidas por ele deixaram claro que não havia entusiasmo de sua parte em entabular conversação com ninguém. Frustrado em seu intento o sujeito voltou a mexer sem seu celular, não sem antes dirigir-lhe um olhar levemente irritado.

Os solavancos do ônibus associado às músicas irradiadas pelo fone em seu ouvido propiciavam a Tomás uma sonolência gostosa. Quem sabe dormindo ele não esqueceria um pouco a dor da separação?

As melodias doces e melancólicas terminaram por fazê-lo adormecer profundamente.

*****

Acordou com uma dor de cabeça aguda, achou que foi devido à posição em que ficou para dormir. Recusou-se a abrir os olhos de imediato já que ainda estava com esperança de voltar ao mundo dos sonhos, mas não havia mais aqueles leves solavancos que lhe causavam sonolência. Sentiu que o ônibus estava parado e em silêncio. Por que será que pararam? Deveriam estar em algum posto de gasolina ou em um terminal de passageiros de uma cidade qualquer.

Já desperto pegou o celular para ver que horas eram. Ficou surpreso quando viu que eram mais de duas horas da madrugada. Ele havia dormido por quase dez horas. Olhou para o lado e viu que o homem com cara de mestre-cuca não estava mais ali. Deduziu que ele devia ter descido ou então ido ao banheiro.

Pensou em ver fotos antigas em seu celular, mas desistiu. Talvez fosse melhor apagar qualquer registro de seu fracasso amoroso. Já que estavam parados decidiu que iria descer e andar um pouco para ativar a circulação, seus pés com certeza estariam inchados pela inatividade forçada.

Apenas a tênue iluminação dos spots acima das poltronas favorecia alguma visão para Tomás. Qual não foi a sua surpresa ao verificar que o ônibus estava vazio. Todos haviam descido? Resolveu olhar pela janela, mas nada conseguiu enxergar, estava muito escuro lá fora. Decidiu descer para ver em que lugar estava.

Sua respiração ficou suspensa ao ver que o ônibus estava parado bem no meio da estrada. Não havia posto de gasolina, rodoviária, nem nada ao redor. Sem entender o que estava acontecendo andou em volta do ônibus sem conseguir ver ninguém.

O ônibus estava quase cheio. Onde estavam os outros passageiros?

Tomás se deu conta de que estava sozinho em um ônibus parado no meio de uma estrada. Que merda tinha acontecido? Será que tinha ocorrido algum assalto? Para onde foi todo mundo? Por que só ele estava ali? Por que ninguém o acordou? As perguntas sem resposta iam se acumulando.

Resolveu procurar alguma coisa dentro do ônibus que pudesse lhe dar uma pista do que poderia ter acontecido. Sentiu certo constrangimento por ter que mexer em coisas que não eram suas, mas deixou isso de lado e revistou os acentos dos demais passageiros. Abriu bolsas e malas, mas não encontrou nada que pudesse lhe ajudar.

Decidiu ir até a cabine do motorista e tentar dar partida no ônibus. Tudo em vão. Mas de que adiantaria? Ele dirigia muito mal e nunca iria conseguir conduzir um monstrengo daquele tamanho.

*****

Sentado em um assento qualquer Tomás tentava organizar seus pensamentos. Era inegável que o medo já se fazia presente, ele nunca havia sido nenhum rei da coragem e com certeza não era estando sozinho em uma estrada escura e deserta que passaria a ser.

Não havia sinal em seu celular. No meio do nada onde estava era de se esperar que não houvesse sinal nenhum mesmo. Conectou o aparelho para carregar na entrada disponível no bagageiro logo acima de sua poltrona, tinha medo que ele descarregasse. Mesmo que não pudesse ligar para ninguém ele tinha que permanecer com ele carregado. No fundo tinha uma esperança bem pequena de que alguém ligasse...

Havia acontecido alguma coisa e isso já estava dando nos seus nervos. À medida que os minutos se escoavam uma duvida lhe assaltou: ele deveria permanecer no ônibus ou sair dele e tentar buscar socorro?

Decidiu que iria esperar o dia amanhecer. Tomou essa decisão principalmente quando percebeu que ainda não tinha visto nenhum outro veículo passar naquela estrada.

No interior do ônibus seus pensamentos oscilavam do medo por estar sozinho ali até uma espécie de arrependimento tardio por ter abandonado tudo. As horas escoavam...

O dia não amanheceu!

Olhando pela janela Tomás se deu conta que o sol não nasceu. Já passavam de oito horas do que deveria ter sido uma manhã ensolarada.

Não havia um sol lá fora. Tudo continuava escuro da mesma maneira que estava quando ele acordou.

As horas passavam e já eram mais de meio dia, deveria estar um sol forte agora, mas tudo o que havia era somente aquela escuridão.

Um dia inteiro transcorreu. Nem o sol surgiu e nenhum veículo de qualquer tipo apareceu.

Tomás decidiu que não poderia ficar ali para sempre. Era preciso fazer alguma coisa.

*****

Ele colocou em uma mochila algumas coisas que pegou nas bagagens de outros passageiros. Imaginou que poderiam ser uteis. Um canivete, três garrafas de água, barras de cereais, uma blusa bem grossa que poderia ajudar com o frio, uma caixa de fósforos e várias revistas, caso precisasse fazer fogo.

À medida que se afastava do ônibus sentia que seu medo crescia. Mais de uma vez pensou em retornar para a segurança do ônibus. Ele bem que poderia estar com Juliana agora, ela saberia o que fazer. Amaldiçoou-se por pensar no nome dela, mas a verdade é que a pessoa que ele mais queria ali com ele agora era ela.

Tomás sentia-se a pessoa mais solitária do mundo caminhando ali naquela estrada estranha. A lanterna de seu celular propiciava que ele visse muito pouco do que se descortinava ao seu redor. Olhava para o céu e não divisava nada, não havia uma única estrela no céu.

Aquela era a noite mais estranha que algum ser humano já havia visto.

A estrada parecia ser reta. Não percebeu árvores ou arbustos às margens dela, a única coisa que parecia haver era um imenso descampado. Pensou em sair dela e ver se havia algo próximo, qualquer coisa que pudesse lhe ajudar. Andou uns poucos metros fora dela, mas parou de súbito. E se houvesse alguma coisa fora da estrada? Algo que pudesse lhe causar algum mal. Decidiu continuar na estrada, pois lhe pareceu mais seguro, só que agora constantemente virava-se para olhar atrás de si. E se houvesse alguém ou algo lhe espreitando de algum lugar?

Já estava andando a mais de uma hora e tudo parecia igual. Uma escuridão sem estrelas, uma estrada asfaltada e o que parecia ser um imenso campo ao redor era tudo que Tomás conseguia divisar. Constantemente checava a carga do celular, a possibilidade de ficar sem uma réstia de luz naquele lugar lhe apavorava. Caminhava sentindo o medo lhe corroer por dentro quando parou de supetão.

A estrada terminava em uma parede!

Que merda era aquilo? Tomás ficou com raiva, mas também ficou com medo daquilo. O que estava acontecendo ali? Chutou e esmurrou aquilo que para ele era uma parede. Aproximou bem a lanterna do celular para ver melhor: não havia dúvida, era uma espécie de parede de metal. Sacou o canivete e se pôs a arranhar a superfície dela. Conseguiu fazer pequenos sulcos, mas eles logo desapareciam e a parede voltava ao normal.

Ficou com vontade de correr e fugir dali, mas para onde iria?

Sentou-se no asfalto frio para tentar pensar melhor. Um turbilhão de coisas passou pela sua cabeça. Será que ele estava morto? Era assim quando a gente morria? Ficava-se perdido em uma estrada escura para sempre? Ou será que ele estava sonhando? Mais que merda de sonho é esse? E por que ele não acordava?

Olhou para o display do seu celular e viu que a bateria estava na metade. Ele tinha andado por mais de duas horas. Resolveu fotografar o que estava a sua frente e ao seu redor. Nem ele sabia dizer por que estava fazendo isso. Tentou escutar um som qualquer, mas não conseguiu. O lugar onde estava era frio e silencioso.

Chegou a várias conclusões: ele não estava morto, não estava sonhando, nem estava ficando louco. Começou a acreditar que estava em algum lugar que simulava uma estrada, mas onde era isso? O ônibus parecia ser o mesmo em que ele embarcou, mas a rodovia era uma espécie de simulação que terminava em uma parede. Chegar a essa conclusão lhe deixou com raiva e isso gerou até um pouco de coragem nele.

Alguém ou alguma coisa tirou um ônibus imenso e cheio de gente de uma rodovia. Para onde foram as outras pessoas? Na cabeça de Tomás começou a se formar uma ideia. Afastou-se da estrada e juntou aquilo que lhe parecia ser capim e terra. Encheu com eles um pequeno saco que trazia em sua mochila. Feito isso, fez meia volta e iniciou uma caminhada de retorno ao ônibus.

O último quilômetro de sua jornada foi um terror de lhe fazer suar dentro daquela escuridão esquisita. Seu velho celular descarregou e ele teve que lançar mão das velhas revistas para fazer uma improvisada tocha. Com o coração aos pulos ficou rezando para que o ônibus não estivesse muito longe.

Um alívio gigantesco percorreu seu corpo de cima abaixo quando finalmente enxergou o ônibus. De maneira atabalhoada entrou e sentou-se em sua poltrona.

Tentando colocar o pensamento em ordem pôs automaticamente o celular para carregar novamente. Algo aconteceu naquele ônibus e ele não sabia dizer o que era.

As horas seguiam seu curso eterno e Tomás terminou adormecendo.

*****

Acordou com o ronco do sujeito com cara de mestre-cuca. Levantou-se de sua poltrona e viu que todos os passageiros estavam ali e o ônibus seguia em sua viagem. Alguns dormiam, outros conversavam e mais alguns mexiam nos celulares. Como era possível aquilo? Tinha sido tudo um sonho então? Não! Ele não ia cair nessa. Ele não estava louco e sabia muito bem discernir sonho de realidade.

O dia tinha amanhecido. O ônibus cruzava com toda sorte de veículos e a paisagem lá fora era muito bonita. Ele não havia sonhado coisa nenhuma. Lembrou-se de sua mochila e rapidamente procurou pelo saco plástico.

A prova estava ali: um saco cheio de terra com uns tufos de grama. Essa era a prova de que ele não estava tendo um surto psicótico. Ele esteve em algum lugar. E ainda havia as fotos que ele havia tirado, se bem que elas não mostravam nada de mais.

Não conseguia atinar que estrada esquisita era aquela onde ele caminhou por tantas horas, mas cismou que ela não ficava nesse mundo. Então onde ele teria estado aquele tempo todo? Ao pensar isso um discreto sorriso lhe invadiu o semblante. Era uma história e tanto. Será que um dia ele contaria a sua estranha jornada para alguém?

Ao ver seu celular percebeu que havia dezenas de ligações e mensagens de Juliana. Dessa vez não houve resistência alguma e ele libertou seu pensamento. Sentia uma necessidade urgente de tornar a vê-la.

Desceu na primeira rodoviária que viu e comprou uma passagem de volta para sua cidade.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 05/07/2020
Reeditado em 23/10/2023
Código do texto: T6997338
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