Tempestade

Paulo agarrou a mão de Aline com força. O esconderijo no qual residiam por tantos anos já deixara de ser secreto e seguro há muitos dias. O casal se pôs a correr por entre os corredores subterrâneos e lá embaixo todo o som que ouviam eram seus sapatos batendo pesadamente sob o chão de terra e suas respirações ofegantes e assustadas. O terreno começou a inclinar-se e a exigência do esforço físico fez com que até mesmo o som de seus passos fossem abafados pelo ressoar do ar entrando e saindo com dificuldade de seus pulmões. O caminho era muito escuro, e mesmo com os olhos acostumados à escuridão, a única coisa que os permitia avançar nessa velocidade dentro do labirinto era a familiaridade que tinham com o terreno.

Quanto mais se aproximavam da superfície, mais suas espinhas gelavam. Os sons do exterior começavam a inundar seus ouvidos com o horror que se abatia sobre o mundo. Bombas caíam estrondosamente em diversos pontos longínquos, ecos de tiros ressoavam pelo ar; e para ajudar, uma tempestade se derramava como um véu gelado acima da cidade.

Por mais que tivessem medo, a única forma de prosseguirem vivos era tentando sair daquela zona de confronto. Não sabiam como as outras regiões estavam, mas prosseguir naquele lugar era como escolher o local de suas sepulturas.

Paulo e Aline estavam juntos há sete anos. E há cinco vivam escondidos nos lugares mais escuros e úmidos do planeta, numa tentativa de esconderem-se o máximo de tempo possível dos Invasores. Quando eles chegaram, o mundo dividiu-se em grupos. Alguns - os mais religiosos - diziam que eles eram enviados pelos Deuses; alguns os maldiziam e afirmavam que eles trariam o apocalipse. Os cientistas viam com entusiasmo o contato com seres extraterrestres e estavam dispostos a trocar conhecimentos com os seres. Por meses eles apenas ficaram parados com suas naves prateadas e gigantes acima das cidades. Ninguém sabe ao certo qual evento desencadeou o ataque, mas a teoria mais aceita é que grupos extremistas da América do Norte, que abriram fogo contra as naves em diversos pontos do seu país, tenham incitado o ódio nas criaturas. A partir daí, a história é relembrada apenas de boca a boca. Os Invasores ativaram algum circuito em suas naves que derrubou a energia elétrica em todo o mundo. As criaturas asquerosas que habitavam as profundezas das naves - e que até então estavam apenas em nosso imaginário - descerem dos céus e popularam a Terra, trazendo consigo doenças infecciosas, violência e guerras.

Sua aparência é quase impossível de ser descrita, pois foge a qualquer semelhança que tenhamos na Terra. Como não existe energia elétrica há muitos anos, apenas fogo, Paulo e Aline nunca haviam conseguido vê-las com muitos detalhes. Porém, sabiam que suas peles eram marrons e pegajosas e que elas deixavam atrás de si um rastro gosmento e amarelado. Elas andavam ora em duas pernas, como nós, ora em quatro. De suas costas saíam protuberâncias espinhosas que podiam ser lançadas a metros de distância quando essas se sentiam ameaçadas, tal qual os porcos espinhos. Sua comunicação não era falada e sim por diversos estalidos e sons guturais que saíam de suas gargantas - ou algo parecido com gargantas. Fato era que desde sua chegada, bilhões de humanos haviam morrido ou desaparecido. Alguns eram capturados vivos e levados para as naves, que ainda sobrevoavam os céus. Alguns, eram apenas destroçados por suas garras ou pelas armas que os próprios humanos desenvolveram e os Invasores se apoderaram. Outros ainda pereciam diante das desconhecidas patologias que vieram a bordo das naves prateadas.

Quando finalmente chegaram na rua, a luz da lua chegou a atordoar seus sentidos, pois estavam há semanas sem sair no exterior. A chuva estava muito forte e caía como gotículas de gelo sobre o corpo quente do casal. Por três quarteirões eles conseguiram correr quase sem imprevistos, e sem sinal humano, quando ouviram uma bomba atingindo o solo muito perto deles. O céu escuro clareou-se por alguns segundos de laranja e vermelho, e ao olhar para trás viram que seu antigo lar, seu esconderijo de tantos anos, havia sido atingido e agora ardia em chamas. Parece que os próprios céus se revoltaram, pois a tempestade adensou-se ainda mais e trovões assustadoramente próximos ribombavam ao redor deles. Com o som forte da chuva, ficava quase impossível ouvir o que acontecia ao seu redor. A escuridão caía pesadamente sobre eles, e a visão era ainda mais prejudicada com a água que insistia em fustigar seus corpos cansados. Desde que saíram do esconderijo não haviam soltado as mãos, e agora Paulo a puxa para perto de si, pois sentir seu corpo é a única coisa que o acalma. “Você está assustada?” - sussurra ele em seu ouvido. “Não, estou com esse olhar aterrorizado porque estou me divertindo muito!”, responde-lhe Aline, e pelo seu tom de voz, Paulo sabe que ela está chorando. Ele toca o rosto de sua amada com ternura, tentando limpar-lhe a face das lágrimas - o que é obviamente impossível com a chuva. Eles se abraçam, sabendo que sua cumplicidade e seu amor não eram capazes de salvá-los da morte, mas ao menos havia salvado-os de uma vida vazia.

Um clarão gigantesco cortou o negrume infinito do céu e desceu, serpenteando e iluminando o caminho por onde passava. Quando atingiu o chão molhado, clareou a visão do casal por cerca de dois segundos.

Paulo viu o rosto redondo de Aline contorcido numa expressão de medo e tristeza. Seus cabelos longos estavam grudados em seu rosto e em seu busto, e seus lábios tremiam. Apesar de tudo o que passaram, e do medo que sentia, Aline continuava sendo a mulher mais linda do mundo. Atrás dela, com nojo e horror, ele conseguiu divisar dezenas de vultos enegrecidos, saindo da escuridão total dos prédios destruídos e abandonados há muito, e esgueirando-se para perto deles, arrastando toda sua monstruosidade no chão fustigado pela tempestade.

Aline observou com medo as feições de Paulo. Seu cabelo loiro e encaracolado agora estava liso e com aspecto sujo. Seus olhos, tão expressivos, agora pareciam mortos. No início, ele tinha um semblante enigmático, quase calmo. Mas no último milésimo de segundo em que o trovão clareava sua visão, o rosto de Paulo contorceu-se no mais puro e genuíno horror.

O clarão apagou-se. A escuridão adensou-se como um hóspede não requisitado e era quase palpável. Três segundos de silêncio fúnebre se seguiram, três segundos em que a única coisa que se movimentavam na Terra eram a chuva, que agora já diminuíra, obediente, e os seres rastejantes que saíam das sombras. Nesses três segundos, era como se a natureza inspirasse todo seu fôlego e toda a sua milenar força, para ressoar, imperiosa, o som daquele trovão. Paulo fechou os olhos com força. Aline apertou ainda mais sua mão. O trovão ribombou como o som de milhões de canhões a disparar ao mesmo tempo. Sua força foi tamanha que os prédios do entorno - desgastados pelo tempo sem reparos - não resistiram e ruíram.

Naquele único segundo, Paulo ouviu no trovão as forças das entranhas da Terra. Não pode ouvir o grito de Aline, que foi abafado pelo fenômeno. Mas sentiu seu corpo sendo puxado para baixo quando sua mão fora violentamente tirada da dele. Ele desabou ao chão, batendo fortemente os joelhos no concreto duro, sendo engolido pelas trevas junto aos prédios e aos últimos resquícios da civilização humana.

Carol Santucci
Enviado por Carol Santucci em 14/05/2020
Reeditado em 14/05/2020
Código do texto: T6947173
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