Sapiens Persecutorius
Arqueólogos, antropólogos, cientistas da biologia e especialistas do carbono 14 nos ensinam que os humanos habitam o planeta há pelo menos 2,5 milhões de anos. Diferentes espécies do gênero Homo evoluem a partir de 2 milhões de anos atrás. Há cerca de 200 mil anos surge o Homo Sapiens na África ocidental. No período entre 70 mil e 30 mil anos ocorre o que a ciência chama de Revolução Cognitiva, que é quando o Homo Sapiens desenvolve novas habilidades linguísticas e passa a partilhar informações sobre o mundo.
Há uma transformação nas relações sociais, na elaboração dos pensamentos e surge também a capacidade de transmitir informações sobre coisas que não existem. O Homo Sapiens agora sabe criar mitos e ficções para agrupar indivíduos em mais número em torno de objetivos da coletividade. Só os Sapiens conseguem, então, falar de entidades que nunca viram, tocaram ou conheceram. Ser capaz de falar sobre ficções passa a ser a característica mais singular da linguagem do Homo Sapiens. A estrutura de maquete de um “homem-leão”, de 32 mil anos atrás, descoberta na caverna de Stadel, na Alemanha, é um dos primeiros exemplos de arte, talvez de religião e da capacidade da mente humana de imaginar coisas que não existem de fato.
A evolução cognitiva do Homo Sapiens o leva a ocupar outras terras no planeta e, ao poucos, sobrepujar as demais espécies Homo, como os Neandertais, os mais próximos, e todas as outras. Mais à frente, os Sapiens passam a ser a única espécie humana sobrevivente.
Essa breve história da evolução humana é a mais aceita pelos cientistas atualmente. Por certo que ainda ocorrem, volta e meia, novas descobertas arqueológicas que vão preenchendo lacunas da história ou mesmo fazendo ajustes no que se pensou e deduziu até então. Ainda há muitos mistérios na história da evolução humana.
Um dos mistérios mais importantes, hoje se dá conta, foi o surgimento, durante o período da Revolução Cognitiva, entre 70 mil e 30 mil anos atrás, de uma espécie humana derivada do Homo Sapiens: o Homo Sapiens Persecutorius.
O Sapiens Persecutorius surgiu exatamente na esteira da evolução das habilidades cognitivas do Sapiens. Principalmente no uso da linguagem animal social, como uma forma de fofoca. As novas habilidades linguísticas que os Sapiens adquiriram permitiram que fofocassem por horas a fio. Essa modalidade não foi exclusividade do Sapiens Persecutorius, senão dos Sapiens em geral. No entanto, foi graças a informações sobre quem era digno de confiança, pequenos grupos puderam se expandir e desenvolveram estratificações e tipos de cooperações mais sólidos e sofisticados. Esses grupos foram os que deram origem ao Sapiens Persecutorius, estima-se que algo em torno de 45 mil anos atrás. A própria estátua de Stadel é, hoje, a ele atribuída.
O Sapiens Persecutorius viveu, desde sempre, junto com o Sapiens e era com ele confundido. Podiam acasalar entre eles e gerarem descendentes férteis. O código genético herdado é que poderia definir se os filhos do acasalamento mesclado eram de uma ou outra espécie. A grande maioria das gerações era de Sapiens, contudo havia uma geração de Sapiens Persecutorius suficientes para manter a sua perpetuação.
Os Sapiens Persecutorius estiveram a desenvolver novas características humanas que, hoje, encontramos em diversas medidas também nos Sapiens. Por exemplo, o indivíduo Sapiens Persecutorius, já na juventude, foi quem primeiro demonstrou uma conduta da altivez pernóstica, em atitude presumidamente afetada e insolente. Foi, pois, no seio das Sapiens Persecutorius que nasceu a arrogância humana, antes inexistente.
A maior distinção entre as características dos indivíduos de cada espécie, no entanto, era a de que, enquanto o Sapiens permanecia nas suas funções de caçar e coletar alimentos para o seu bando, o Sapiens Persecutorius, absolutamente sem nada produzir, ficava a observar e apontar para os outros indivíduos, especializando-se em descrever falhas e erros. Com o passar do tempo, o foram fazendo com uma elaboração descritiva mais sofisticada e em conformidade com suas ficções e seus mitos, que também evoluíram. Passaram a propor sanções e punições, já sem se importar se suas imputações eram da realidade ou não, importava o nexo com a ficção. Foram os primeiros humanos a conscientizar-se que os fatos eram irrelevantes e a verdade variável.
Preocupavam-se em ter sucesso nas suas acusações, mesmo que para isso indivíduos Sapiens fossem injustamente punidos. Não se sabe se realmente acreditavam que, com isso, iriam melhorar a vida do bando, mas o mais provável é que viram no procedimento forma de obter mais importância e, por conseguinte, mais poder nas comunidades que ficavam mais numerosas com o tempo. Sempre evocando seus mitos e ficções procuraram trazer os Sapiens para as suas convicções, num processo contínuo de convencimento. Ao evoluir na elaboração de mitos e ficções, tentaram se colocar, sem sucesso entre os Sapiens arcaicos, como porta-vozes das suas entidades etéreas. Foi uma primeira tentativa de postura pré-messiânica, infrutífera inicialmente, mas cujo atitudinal permaneceu latente como pode ser verificado posteriormente.
Houve outras elucubrações dentro da linha nociva crescente que a mente do Sapiens Persecutorius ruminava. Um exemplo era a tentativa de fazer os Sapiens reconhecerem de que alguns hábitos e práticas da cultura, então nômade, deveriam ser aniquilados. Defendiam que um recomeço havia de melhorar a qualidade para o humano e tudo o que envolvia. Mas eram eles que sabiam, ele que determinariam. Também naquele momento não convenceram os Sapiens arcaicos, mas também naquele momento haviam de fortalecer a persistência no seu incipiente inconsciente coletivo. Foram, de todo modo, precursores do estilo ruinoso e nefasto dos posteriores adeptos da terra arrasada, que impérios formaram, povos subjugaram e que tantos anos de escuridão propiciaram ao longo da história vindoura.
O metro dos Sapiens Persecutorius nunca foi construtivo, ao contrário, precisavam mostrar relevância ao provocar a destruição dos costumes e prometer algo que nunca iria ocorrer, sabedores disso ou não. Nunca souberam medir realmente que resultados seriam trazidos com seu, ainda pobre, discurso de passar a tribo a limpo. Irresponsabilidade e inconsequência foi o legado do Sapiens Persecutorius para o conjunto de qualidades humanas futuras.
Tiveram algum êxito em pequenos grupos e em alguns locais onde as circunstâncias, aleatoriamente, lhe foram favoráveis. Conseguiram, parcialmente, seus intentos e propósitos de infligir castigos a outros indivíduos à guisa de redenção. Mantiveram a persistência e a latência da sanha punitivista ficou como que a aguardar o momento e as condições para desatrelar-se por completo.
Apenas se engatinhava a fase da humanidade pós Revolução Cognitiva. Milhares de anos haviam ainda de passar para o Homo Sapiens até chegar à Revolução Agrícola – 12 mil anos atrás – e à Revolução Industrial, às vésperas dos nossos dias, para citar apenas dois eventos fundamentais. Foram momentos em que a humanidade experimentou transformações importantes na maneira de se relacionar com o meio ambiente, com os recursos do planeta e entre os indivíduos e seus grupos tão crescidos e alterados na ocupação do espaço e nas convenções sociais e políticas. Muito tempo de evolução e revolução.
Em todo esse período esteve o Sapiens Persecutorius junto e à sombra do Sapiens. Sem, no entanto, estar adormecido nas suas funções mais naturais. Ao contrário, teve tempo e instrumental para desenvolver novas características de natureza humana e as aptidões para superar o gênero ancestral.
O Sapiens Persecutorius encontrou na mentira o grande pilar para poder alavancar a missão sobre-humana que sempre perseguiu. A mentira, que ele mesmo criou quando a Revolução Cognitiva lhe deu as habilidades de criar ficções e distorcer as primeiras observações nos campos de caça e coleta de alimentos.
Ao longo dos milênios, o Sapiens Persecutorius foi rebuscando o modo de agir. Foi deixando de lado a mentira acintosa, fácil de ser desacreditada, e passou a ser dissimulado, querendo usar a sutileza criada pelos antepassados para dosar o disfarce da mentira com pitadas de omissões e distorções, acabando por elaborar encadeamentos pseudamente lógicos, em função das finalidades missionárias da persecução. A sofisticação é atingida na apresentação de descrições fáticas temperadas com doses de mentiras diversas, como se fossem condimentos em gotas e pitadas de inferências, lógicas irracionais e raciocínios dedutivos ancorados na névoa de episódios desconexos. Tornou-se especialista em harmonizar os “temperos” de modo que do prato servido seja impossível retirar falsos aromas e sabores. Um craque da falsidade e da hipocrisia.
Possivelmente o evento recente que mais contribuiu para a final investida de poder do Sapiens Persecutorius foi, há poucas décadas, quando da revisão do conjunto das regras e das leis fundamentais, ter adquirido atribuições reforçadas. Isto permitiu o seu movimento de fiscalizador dos procedimentos de investigações para, ele mesmo, voltar às funções ancestrais de acusador principal. Conspiração engenhosa ou não, o fato é que, ao se tornar uma espécie de “xerife local”, sem a necessária supervisão que a ninguém ficou atribuída, lhe é conferido um estado de bicho sem predador, a provocar um inabalável desequilíbrio no meio de compensação das forças que fazem funcionar o sistema social contemporâneo. Esta, certamente, foi a face mais perversa da evolução do Sapiens Persecutorius em cerca de 50 mil anos de progressão.
Paralelamente à índole acusatória, o Sapiens Persecutorius soube colocar alguns de seus indivíduos em postos chaves nas sociedades modernas, como decisores e julgadores em diversos níveis, a assegurar o sucesso de seu conjunto de ações. Mas também em órgãos de controle e de fiscalização, e de imprensa, que já se prestavam ao mesmo papel inquisitivo.
Continuava sem nada produzir para a comuna, contudo já se tornara o corajoso e destemido defensor das grandes causas. Chegara o momento da nova ordem. O momento tão esperado pela espécie de se lançar à liderança da humanidade.
Estava a restar provada a sua superioridade, para além de qualquer dúvida razoável. As futuras gerações conheceram este momento transformador da humanidade, após 2,5 milhões de anos, como a Revolução da Cognição Sumária.