Binário

1.Binário

A história começa alguns anos depois de a bomba ter caído.

O efeito foi violento e se espalhou por todo o país que conheceremos agora.

As pessoas perderam parte da cognição. A memória também foi bem afetada, tanto a de curto quanto a de longo prazo, e esses problemas juntos danificaram seriamente a fala: o vocabulário ficou bem reduzido e em várias situações se resumiam a grunhidos.

Outro efeito foi que a cor da pele das pessoas adquiriu tons estranhos, uma parte delas ficou com uma tonalidade roxeada e outra esverdeada.

A cidade aonde se passa parte da nossa história ficou dividida por essa característica, no lado oeste ficaram os “roxos” e do lado leste os “verdes”. Um viaduto dividia os dois lados.

Em um ponto do lado oeste, mas considerado “neutro”, ficava um armazém de grandes proporções, aonde eram depositados todos os mantimentos que eram coletados, num esforço conjunto entre os dois lados. Todos os dias tantos os roxos quanto os verdes iam ao local, apelidado de “central” em busca de mantimentos. Os coletores também estavam lá todos os dias, disponibilizando mantimentos, que eram colhidos na natureza ou em estabelecimentos abandonados. Era a única atividade e o único local em que os dois lados se “entendiam”, pois existia uma grande rivalidade entre eles, a ponto de se xingarem o tempo todo, quando não partiam para a violência. Tanto os roxos quanto os verdes, num outro efeito pós-bomba, tinham predisposição a sentimentos de ódio, geralmente direcionados aos rivais, aos “do outro lado”. Ninguém mais conseguia sorrir, e esse ato passou a virar lenda, alguns não acreditavam que as pessoas sorriam antes da bomba, achavam que era invenção. Sorrisos só eram vistos em alguns outdoors que restaram, de comerciais de bancos, por exemplo, e em livros e revistas do pré-bomba.

Ambos os lados tinham líderes, que eram reverenciados.

Os roxos adoravam aquele que era chamado de “pai túlio” uma espécie de mentor deles, mas que foi aprisionado e acorrentado numa árvore enorme, gigantesca para os padrões do pré-bomba. Pai túlio teria sido preso ali pelos verdes, sob a acusação de ter extrapolados seus direitos na central (haviam restrições na quantidade de comida e demais itens a serem retirados para consumo, túlio tirou muito mais do que era acordado). Essa condição acabava pouco a pouco com a sanidade de túlio, que do alto da árvore gritava o dia todo palavras contra os verdes, no que era aplaudido pelos roxos.

Por sua vez, os verdes adoravam o “rei machado”, que usava uma camisa de força desde antes da bomba, pois era tido na época como insano e perigoso. Era chamado por esse nome pois adorava um machado que tinha em sua casa, que era limpo e lustrado por ele mesmo, apesar das limitações (usava cotovelos e ombros por exemplo), tarefa que era as vezes delegada a seus filhos que a cumpriam com orgulho, pois o machado estava sempre brilhando. Machado era ótimo para inflamar os sentimentos de ódio de seu povo (assim como o pai túlio), e o alvo era sempre os rivais “do outro lado”. Diversas pessoas já haviam tentado livrá-lo da camisa de força, mas as limitações nelas produzidas pela bomba impediam a libertação de seu líder.

2.Fernando

Fernando era dos roxos, e estava numa fase adolescente-adulto, não sabia com precisão sua idade. Tinha poucas lembranças do pré-bomba, pois era muito novo quando ocorreu a explosão.

Sentia-se deslocado, pois não nutria ódio pelos verdes e não via motivos suficientes para tanto. Mas mantinha essas opiniões para si, pois sabia que se as expusesse publicamente, seria xingando, ou no mínimo chamado de traidor. Já fazia tempo que deixara de frequentar as palestras proferidas pelo pai túlio, pois as achava inúteis e maçantes.

Tinha dois passatempos preferidos: um era rondar o prédio da antiga biblioteca, aonde moravam algumas pessoas que quase nunca saíam, apenas o faziam para buscar mantimentos no central, aonde eram “tolerados” pelos outros, apesar de sua peculiar característica: sua pele tinha uma coloração “normal” ou no máximo o tom roxo ou verde era bem mais brando.

O outro passatempo preferido de Fernando era se esconder no viaduto que separava os dois lados, para expiar o movimento dos roxos que ali passavam. Eles tinham que passar por baixo do viaduto para ir ao central, pois ficava no lado roxo.

Em especial, ele gostava de olhar um grupo que passava em uma determinada hora pela manhã, porque desse grupo fazia parte uma menina, que parecia ter a mesma idade, ou próxima da sua. Ela tinha uma beleza que para Fernando, era quase hipnotizadora. Ele não faltava um dia, depois de descobrir o horário em que o grupo dela passava, somente para vê-la por alguns minutos.

Um dia descuidou-se e ela pareceu vê-lo por um instante, então ele abaixou-se rápido para atrás da mureta do viaduto quando ela olhou para cima e pareceu olhá-lo nos olhos.

Fernando ficou bem assustado, apesar de ver uma expressão suave no rosto dela, parecia sem ódio ou medo, ou seria impressão dele?

Saiu correndo dali em direção a biblioteca, para fazer a sua “ronda” diária, e tentar descobrir entre outras coisas o porquê de os habitantes ali não parecerem hostis e nem aparentavam sentir ódio por nenhum dos lados.

Mas sentiam medo, isso com certeza, tanto dos roxos quanto dos verdes.

Fernando se aproximou de uma janela, tentou olhar para dentro, quando, bem perto dali, sentiu um barulho de uma porta se abrindo, a poucos metros. Assustado, deu um passo para trás a tempo de ver uma mulher mais velha do que ele saindo. Quando o viu, ela arregalou os olhos de susto, e voltou pela mesma porta de onde saiu, e deixou cair dois livros. Fernando os pegou e escondeu rapidamente em sua sacola. Todos tinham grandes sacolas de pano que usavam para transportar os mantimentos recolhidos no central.

À noite, em casa, quando se sentiu seguro (livros eram ridicularizados por todos) pois viu que todos dormiam, foi olhar os livros que havia pegado.

Um deles se chamava “Romeu e Julieta” e o outro “O Mensageiro das Estrelas”.

 

3.Elisa

Elisa era dos verdes, e pertencia à mesma faixa de idade de Fernando. Assim como ele, não sabia quem tinham sido seus pais, e assim também como ele, foi adotada por um grupo de pessoas.

Ela não compartilhava do ódio que todos ao seu redor tinham pelos roxos, achava que o mundo era muito grande, que havia muitos mais coisas e assuntos a serem debatidos do que simplesmente dividir tudo em duas tribos.

Também não gostava do rei machado, o achava irracional, não entendia por que tinha tanto poder, poder esse conseguido somente por despertar ódio nas pessoas.

Ela achava que todos deveriam se reunir e, chegando a um consenso, eleger um líder que fosse do agrado da totalidade, ou pelo menos, da maioria das pessoas.

Sua rotina diária: em determinada hora da manhã, ir com um grupo até o central. Às vezes, ao passar pelo viaduto, tinha a impressão de ser observada.

Á noite, gostava de se reunir com outras mulheres em volta de fogueiras ao ar livre, e ouvir histórias que algumas contavam, geralmente histórias românticas remanescentes do pré-bomba ou que elas mesmo inventavam ou tinham ouvido em algum lugar.

Depois de ouvir algumas histórias sentava-se sozinha e olhava o céu, as estrelas, a lua, e imaginava se no pré-bomba as pessoas tinham curiosidade sobre tudo isso, se estudavam essas questões a fundo.

Assim como imaginava que o mundo era maior do que parecia, sonhava em conhecer outras pessoas, lugares diferentes, formas de pensar diferentes.

Também imagina se na época as pessoas viviam situações espetaculares ou tristes como nas narrativas contadas em volta da fogueira, se registravam essas histórias.

Ela tinha ouvido falar dos livros, mas sabia que estavam todos na biblioteca e nas ruas só havia fragmentos, pedaços deles.

Uma manhã, ao passar pelo viaduto, teve de novo a impressão ser observada e quando estava quase embaixo, instintivamente olhou para cima e viu um rosto observando-a e esforçando-se para não ser visto. Era um roxo, sim, um roxo, que se assustou ao ser descoberto, arregalou os olhos de uma maneira que poderia fazê-la até sorrir, se soubesse como fazer isso.

 

4.O Mensageiro das Estrelas

Na mesma noite em que pegou os livros, Fernando esperou que todos dormissem, foi até o lado de fora, e ao lado de uma fogueira, começou a ler.

Como muitos de seus contemporâneos, ele tinha uma dificuldade para a leitura, mesmo assim estava acima da média, e leu “Romeu e Julieta” em algumas noites, sempre ao lado da fogueira. Achou que era uma história triste, mas muito bem contada, em uma linguagem que o deixou maravilhado, não entendeu algumas expressões, mas conseguiu acompanhar a história até o seu final trágico.

Imaginou que as mulheres gostariam dela, pois tinha mais ou menos o estilo das histórias que elas contavam umas para as outras quando se reuniam a noite. Pensando nisso, ele teve uma ideia: e se ele desse o livro como presente para a garota verde? Sim, aquela que o encantava, que o fazia estar todas as manhãs no viaduto só para vê-la. Seria uma forma de se aproximar e fazer amizade.

Logo que terminou Romeu e Julieta, começou na noite seguinte a leitura do segundo livro.

“O mensageiro das estrelas” era sobre um cientista de tempos muito antigos que descreve suas observações do céu, feitas com uma luneta. As primeiras páginas traziam uma biografia do cientista e Fernando gostou de um pensamento dele:

“A natureza produz seus efeitos mediante formas impensáveis por nós, e é surda e inexorável a nossos vãos desejos”.

Isso o fez pensar que a natureza sempre segue seu curso, e não dá nenhuma importância para o que pensamos a respeito. Algo de que ele sempre desconfiou.

Maravilhado com o livro, Fernando leu mais rapidamente do que o anterior, e, quando terminou, deitou-se ao lado da fogueira e ficou olhando o céu, pensando nas observações do cientista e em seus desenhos tão bem-feitos, reproduzidos no livro.

Tentou ver Júpiter e suas luas, os anéis de Saturno, “montanhas elevadas e vales profundos” da lua, conforme descreveu o autor.

Nessa e nas noites seguintes foi difícil dormir, e acabou relendo o livro, sempre tentando ver no céu estrelado o que o cientista descrevia.

Olhando o firmamento, ele pensou que existiam coisas ali que iam muito além do que as pessoas imaginavam.

Ao mesmo tempo, começou a pensar em como presentearia a garota verde com o “Romeu e Julieta”.

 

5. O presente

Teve várias ideias, mas a que lhe pareceu melhor foi: ele tentaria, do alto do viaduto, tentar chamar a atenção dela, e apontar para um monte alto de entulho que havia na calçada, um pouco antes do viaduto. Através de gestos, indicaria que gostaria de encontrá-la ali depois que ela voltasse do central. O monte de entulho era tão grande que ninguém poderia vê-los da rua.

Ao mesmo tempo, Fernando começou a pensar em tudo o que diria a ela na hora de entregar o presente.

Uma manhã, decidido, colocou o livro na sua sacola, junto com “O Mensageiro das Estrelas”, que sempre o acompanhava, e encaminhou-se ao viaduto.

Com muita ansiedade, esperou a hora da manhã que o grupo dos verdes costumava passar por ali. Então, na mesma hora de sempre, avistou o grupo, formado por umas duzentas pessoas, e já de muito longe viu o rosto dela. Aquele era o momento decisivo, pois precisava chamar-lhe a atenção, sem que outros percebessem. Tarefa que talvez fosse facilitada pelo fato de que ela já o tinha visto ali, e por curiosidade poderia olhar para cima.

Foi que aconteceu, e dessa vez ele não se escondeu, e fez os gestos indicando o monte de entulho, e que queria falar com ela ali na volta. Notou a mesma expressão suave no rosto dela como da outra vez, e ficou ainda mais ansioso por vê-la de perto, ouvir sua voz.

Mais ou menos uma hora depois, que era o tempo que geralmente o grupo ficava no central, Fernando dirigiu-se ao monte de entulho, tomando todos os cuidados para não ser visto, e esperou.

Sentou-se, olhando para a capa de “Romeu e Julieta” e começou a relembrar palavras que ele havia ensaiado para o momento do encontro.

Ouviu o ruído do grupo se aproximando e passando, ficou torcendo para que ela tivesse entendido o recado, e, além disso, que aceitasse o convite.

De repente ele levantou a cabeça e a viu, parada ali bem em frente. Levantou-se rapidamente, olhou para o rosto dela e disse:

-Bom dia. Ela respondeu da mesma forma.

-Sou Fernando.

-Sou Elisa.

Seu rosto de perto era ainda mais bonito e suave, e ele sentou um arrepio que lhe percorreu o corpo todo.

Esticou o livro na direção dela.

-Eu tenho pres..umpres..

-Um presente, ela completou.

-Sim, isso. É um presente de mulheres de fogueira..., não, não foi isso que eu quis dizer. Dentro deste livro, tem uma história de romance, do tipo que as mulheres contam em volta da fogueira, à noite. Pelo menos as mulheres do lado roxo têm esse costume.

Ela olhou para a capa, interessada, e parecia gostar de tudo que via e ouvia naquele momento.

-Eu agradeço muito, vou começar a ler logo que puder.

Fernando tirou o “Mensageiro” de sua sacola e mostrou a ela.

-Eu li esse, é um cientista falando sobre o céu.

Ela olhou para o livro com curiosidade.

-Tenho que ir, disse, - mais uma vez agradeço. Vou ler e, por isso, deixar de ir uns dias para o central, de tanta curiosidade que estou, podemos nos falar aqui daqui uns três dias?

-Claro, eu combinarei, digo, então combinamos assim.

Elisa se despediu e foi se juntar ao seu grupo. Fernando ficou ali parado, para ele parecia um sonho que aquilo tinha acontecido. Mas aconteceu.

6. Romeu e Julieta

Nos dias e noites seguintes, Elisa ficou totalmente absorta pelo livro. Se encantou com a narrativa, achou a história bonita, na realidade a mais bonita que ela já tinha conhecido.

Admirou Julieta, por não deixar de lado seu amor por um membro de uma família rival, inclusive desafiando seu próprio pai.

Gostou da coragem e determinação dela, e de sua certeza em saber o que queria, quando por exemplo, incógnita, oficializou religiosamente o casamento com Romeu, apenas alguns dias depois de tê-lo conhecido.

Torceu imensamente para que tudo desse certo para os dois, apesar de tantas barreiras que os impediam de ficar juntos.

Não segurou lágrimas ao ler os acontecimentos trágicos que marcaram a união do casal.

Imaginou que, no pré-bomba, essa deveria ser uma história muito conhecida, talvez a história de amor mais popular de todas. Os romances que foram escritos depois deveriam ter algo de “Romeu e Julieta”.

Será que as pessoas se expressavam tão bem assim antes da bomba? Será que se sacrificavam pela pessoa amada, ao contrário de hoje, em que elas pareciam fazer sacrifícios apenas pelos odiosos líderes dos dois lados? Questões que ela não soube responder. Raciocinou, como em outras tantas vezes, que talvez se ela conhecesse outros lugares, lugares distantes de sua estranha cidade, poderia ter contato com outras pessoas, diferentes das que ela conhecia. Imaginou-se saindo um dia dali para nunca mais voltar, e ver o mundo, compará-lo com sua realidade local.

Uma noite, depois de ter terminado a leitura, contou o que leu para um grande grupo de mulheres em volta da fogueira. Depois que terminou, elas olhavam pasmas para Elisa, com expressão de espanto nos olhos.

Uma delas, boquiaberta, perguntou se ela é que tinha inventado. Elisa mentiu, dizendo que tinha ouvido de uma mulher muito mais velha, muito tempo atrás.

Nessa mesma noite, depois que todos foram dormir, Elisa sentou-se e ficou olhando para a arte da capa do livro e ficou repassando a história, várias vezes seguidas.

Planejou encontrar Fernando no dia seguinte (era o prazo combinado) para dizer o quanto tinha gostado do livro.

7. Planejamento

Fernando costumava reunir-se também a noite em volta da fogueira com os homens do seu grupo. Era tudo muito barulhento. Havia demonstrações de força, lutas e competições como queda de braço. Alguns contavam seus feitos corajosos, muitas vezes exagerando na narrativa.

Notava também as diferenças na fala: Alguns apenas grunhiam, outros usavam poucas palavras, e uma minoria tinha mais articulação, com esses Fernando se identificava e tinha mais proximidade.

Sempre ficava em um canto, ouvindo. Depois de ouvir algumas histórias sentava-se sozinho e olhava o céu, as estrelas, a lua, e imaginava se no pré-bomba as pessoas tinham curiosidade sobre tudo isso.

Mas nos últimos dias ele pensava mesmo era em Elisa. Conhecê-la pessoalmente fez com que ele a admirasse mais ainda, e contava as horas para poder conversar com ela novamente.

Na noite anterior ao dia combinado para os dois para o novo encontro, a ansiedade tomou conta de Fernando. Para aliviar, ele saiu após todos estarem dormindo, e foi admirar as estrelas, lembrando do “Mensageiro das Estrelas”.

Pela manhã, posicionou-se no mesmo lugar no viaduto, Elisa, ao passar, discretamente fez sinal apontando para o monte de entulho.

Depois que o grupo passou pelo viaduto, certificando-se como sempre se ninguém o observava, desceu e posicionou-se no lugar combinado.

Depois de uma espera que pareceu muito longa, Elisa chegou.

-Bom dia.

-Bom dia.

-Gostei muito do livro, ela disse. Muito melhor do que a s histórias contadas na fogueira. No pré-bomba, essa história devia ser muito conhecida.

-Quem bom que você gostou, respondeu Fernando. Sim, fiquei com essa impressão também, mas não cheguei a terminar a leitura.

-Por falar em pré-bomba, Fernando, nós dois somos mais articulados do que a maioria, falamos melhor, pensamos melhor. Será que antes esse nosso comportamento era normal? Ou o comportamento da maioria é que era considerado “o normal”?

-Já pensei nisso, Elisa, penso nisso quando observo o comportamento dos outros, todos tão diferentes. Talvez o que nos diferencie seja o gosto pela leitura, ou a curiosidade.

-Sim, talvez, ela disse. Eu gostaria muito de saber se o resto do mundo é como aqui, nessa cidade. Se em todo lugar existem divisões com essa, se as pessoas têm essa coloração de pele que nós temos.

-Só tem um jeito de saber, Elisa. Sairmos daqui e vermos por nós mesmos.

Isso pareceu acender uma luz dentro dela. Era justamente o que ela queria fazer.

-Vamos fazer isso então, Fernando! Ela disse com entusiasmo.

Começaram a planejar o que levar, como por exemplo, um pedaço de pano grande que serviria com uma tenda ou barraca, mantimentos, roupas, o que coubesse as grandes sacolas de pano, que Fernando adaptaria para colocarem nas costas, como mochilas.

Elisa perguntou se Fernando sabia o caminho para a estrada que levava para fora da cidade. Fernando respondeu positivamente e disse como chegar lá.

-Vamos marcar para daqui a uma semana? Uma hora antes do amanhecer, no começo do caminho que leva a estrada.

-Combinado, ela disse.

Assim, como haviam acertado, depois de uma semana partiram.

 

8. A estrada

Tomaram a saída e entraram na estrada, deixando aos poucos a cidade para trás. Andavam o maior tempo que podiam, quando estavam muito cansados, paravam e descansavam a beira da estrada, quando tinham fome buscavam alimento, na natureza e em eventuais estabelecimentos que encontravam no caminho. Evitavam andar à noite. Quando escurecia, improvisavam uma barraca e dormiam.

E essa rotina seguiu-se durante semanas, que depois viraram meses.

Não encontraram nenhum lugar do porte do que eles tinham deixado, apenas algumas cidades pequenas ou vilarejos, aonde as pessoas viviam em condições precárias, mas a rivalidade entre roxos e verdes sempre estava presente.

Uma noite, logo nas primeiras semanas, fazia calor e eles resolveram se deitar em um lugar de mato rasteiro, deitaram-se lado a lado e ficaram observando o céu. A lua estava enorme e não havia nuvens, o que inspirou Fernando a falar do “Mensageiro das Estrelas”: das observações do cientista, dos desenhos, da lua e suas “montanhas elevadas e vales profundos”.

Falou dos anéis de saturno, das luas de Júpiter, e de como o cientista teve a ideia de usar a luneta, recém-inventada, para observar o céu.

Depois de falar bastante, pediu a Elisa que falasse sobre “Romeu e Julieta”, que ele havia quase esquecido da história, maravilhado que ficou com o “Mensageiro”.

Elisa repassou a história de maneira muito bem contada, pois lera o livro mais de uma vez. Contou sobre o romance proibido, pois o casal desafiava a rivalidade entre as famílias para ficarem juntos.

Fernando gostou principalmente da coragem de Romeu, que não fugiu de nenhum dos duelos a que foi desafiado, inclusive no último, quando desiludido por pensar que havia perdido sua amada, ainda avisou seu oponente: “Não provoque alguém que não tem nada a perder”, ou algo assim.

Lamentaram o final trágico. Apesar disso, a história acaba em um clima de reconciliação entre as famílias, e ficaram imaginando se algo assim poderia acontecer no mundo real.

Elisa pediu para Fernando falar mais sobre o “Mensageiro” sobre o céu, as estrelas. Fernando repetiu coisas que aprendeu com o livro.

Ainda estava falando, quando olhou pro lado e parou de repente, espantado com o que via: o rosto de Elisa assumiu um semblante diferente e inusitado enquanto ela o ouvia e olhava o céu: ela estava sorrindo.

 

9.Renascimento II

Mais de um ano se passara, e Fernando e Elisa, mais do que amigos, cúmplices e colegas de aventura, eram um casal. Cada vez mais unidos, ajudavam-se sempre que necessário, nunca faltava apoio de nenhum tipo.

Fernando com o tempo aprendeu a sorrir também, foi um processo natural.

Mas estavam cansados. Perderam a conta de tantos lugares que conheceram, mas nenhum parecia um porto seguro, ou, no mínimo, que oferecessem alguma garantia de passariam pelo menos algum tempo em paz.

Um dia, estavam no alto de um aclive na estrada quando avistaram uma cidade, alguns quilômetros adiante. Era grande, a maior que tinham encontrado desde a partida. Quando estavam chegando, avistaram um portal, bem na entrada da cidade, e viram ao lado dele uma mulher, vestida de branco, sentada em uma cadeira fazendo anotações em um bloco. Repararam que sua pele tinha coloração totalmente normal.

Quando ela os viu, levantou-se rápido e veio ao encontro dos dois. E sorria!

-Olá viajantes!!!! Eu me chamo Ângela, e vocês?

Olhou para eles de cima a baixo.

-Nossa, vocês estão precisando de roupas limpas, um banho e descanso. Há quanto tempo vocês não comem? Estão muito magros!

Fernando e Elisa se apresentaram, e contaram sua história, de onde vieram e porque partiram.

-Bom, vamos cuidar um pouco de vocês. Como disse, me chamo Ângela e faço parte de um grupo nacional chamado Renascimento II. Vamos caminhar até a sede local do grupo, fica perto daqui. Somos uma espécie de força-tarefa criada para tentar dar um rumo melhor para as pessoas, pelo menos no nosso país, tentando amenizar os estragos causados pela bomba. Eu, por exemplo, sou médica, pois antes da bomba eu havia acabado de me formar em medicina. As pessoas que fazem parte da força-tarefa são direcionadas para trabalhar em suas especialidades, ou para aonde sua vocação os conduz.

Modéstia à parte, a minha área está dando uma grande contribuição, pois conseguimos criar uma vacina que está devolvendo a cor natural da pele às pessoas. Mas estudos e estatísticas mostram que essa coloração estranha, com vacina ou não, está diminuindo com o tempo.

Temos instituições de ensino, psicólogos, engenheiros, cientistas e vários outros profissionais totalmente voltados para o esforço pós-bomba.

Elisa e Fernando estavam cada vez mais contentes com o que ouviam, parecida que tinham finalmente achado seu lugar. Ficaram sabendo também que o sorriso ali era algo natural.

Falaram dos livros que tinham lido e gostado tanto, mostraram a Ângela, que pegou os dois e ficou olhando as capas, e devolveu-os enquanto chegavam à sede do Renascimento II. Havia um grande pátio na frente do prédio, parecia ser a hora de algum intervalo, pois havia várias pessoas ali espalhadas, conversando em pequenos grupos. Quase ao mesmo tempo todos viram a chegada dos dois viajantes e os saudaram aos gritos e levantando os braços.

Ângela pegou o “Mensageiro”, das mãos de Fernando, levantou bem alto e disse de uma maneira solene: “O Mensageiro das Estrelas!!”. As pessoas responderam com gritos de admiração.

Fernando, sempre querendo dizer algo importante em ocasiões especiais citou sua frase preferida:

“A natureza produz seus efeitos mediante formas impensáveis por nós, e é surda e inexorável a nossos vãos desejos”. Todos riram e aplaudiram.

10. A natureza e seus efeitos

Um mês depois de sua chegada, os dois estavam plenamente integrados. Estudavam educação formal pela manhã, e a tarde dedicavam-se aos estudos profissionalizantes. Elisa encantou-se com o trabalho de Ângela e decidiu estudar medicina. Fernando decidiu-se por física, com ênfase em astronomia, queria ser professor.

Estavam ainda maravilhados com o mundo em que estavam vivendo, que nem imaginavam que pudesse existir. Veículos elétricos estavam sendo produzidos, ainda em pequena escala, mas essa indústria era promissora.

O plano era acabar com o uso de veículos de tração animal, que naquele momento eram usados apenas quando não se podia evitar. Psicólogos cuidavam de alguns efeitos do pós-bomba, como os problemas de cognição, que estavam sendo resolvidos em conjunto com a educação formal, problemas de fala sendo tratados por fonoaudiólogos. O sorriso, algo que há pouco tempo era algo quase desconhecido para Fernando e Elisa, era natural.

O curioso era que algumas pessoas continuavam com os hábitos de antes, odiando aqueles que tinham a coloração de pele diferente. Mesmo depois do tom de pele normalizar, continuavam com sua rivalidade, pois, segundo diziam, “roxo é sempre roxo”, ou “verde é sempre verde”. Não conseguiam enxergar o obvio, de que suas vidas e suas lutas eram idênticas as dos “rivais”.

Fernando e Elisa ganharam uma casa, depois de um tempo morando com um grupo grande de pessoas em uma espécie de mansão aonde ficavam os visitantes até que se estabelecessem ou decidissem ir embora.

Uma manhã, Fernando estava no banho e Elisa o esperava na sala. Era dia da aula favorita dos dois, “História geral do pré-bomba”.

Quando saiu do banho encontrou Elisa sentada e pálida, com uma aparência de cansada. Fernando logo pensou que ela poderia ter adoecido depois de tanto esforço, apesar de eles terem descansado bastante depois da viagem. Mas foi uma viagem longa.

Assustado, perguntou o que ela estava sentindo, e Elisa contou que havia passado mal e ainda tinha náuseas.

Decidiram encontrar Ângela antes de irem para os estudos. Ângela tinha se tornado uma grande amiga, estava sempre com eles. Entraram no hospital aonde ela trabalhava pediram para chamá-la.

Ângela veio apressada e encontrou os dois na recepção.

Fernando foi logo falando:

-Elisa passou mal e vomitou.

Ângela levou Elisa para alguns exames e Fernando ficou esperando.

Depois de um tempo que pareceu para ele uma eternidade, Ângela voltou, olhou para ele, sorriu e disse:

-A natureza produz seus efeitos mediante formas impensáveis por nós, e é surda e inexorável a nossos vãos desejos.

Assis Júnior
Enviado por Assis Júnior em 02/05/2020
Reeditado em 05/07/2020
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