CÉU AZUL
— O Céu...
— O que você disse Ana? Vê alguma coisa? – Ronaldo perguntou sobressaltado, preparando para o pior e olhando atônito para onde Ana mirava seus olhos.
— Não é nada... Apenas... Quase nunca olho para o céu.
— Compreensível, quase nunca há nada de bom para se olhar nele. – Respondeu o rapaz, respirando, aliviado. – De qualquer forma, temos de ir, já está quase na hora.
— Só mais um instante Rô... Já irei.
Ela voltou, novamente, seus olhos azuis para cima, para aquela massa revolta e escura que cobria o firmamento e lançava sobre a terra sombras perpétuas. Uma brisa fria lhe tocava a face e sua mente vagava, nesse breve instante de paz desoladora, procurando lembranças da infância e de sua vó, Olga, dos momentos que passou junto a ela e das histórias loucas que ela contava, de como era o mundo antes, no passado, em seu tempo. Aquela senhora havia dito que o céu costumava ser, na maior parte do tempo azul, e que durante a noite estrelas belíssimas brilhavam, e que algumas pessoas ainda achavam que era, no céu, em que se vivia Deus. As lágrimas eram inevitáveis; mas, com estoicismo, controlou-se para não irromper em uma torrente de choro... Lembranças da avó, lembranças de um mundo que nunca viu. Ana, mais uma vez, olhou para as nuvens de cinza chumbo, e buscava alguma forma débil e confusa de oração, afinal nunca rezou, e não sabia se deveria orar, buscando, Deus nos céus, pois se Ele existe, não está no céu... Não existem deuses no céu, apenas demônios e ela e todos os humanos hoje sabiam disso.
Há mais de setenta anos, antes dela ou de sua mãe nascer, quando Olga era apenas uma criança, foi quando tudo mudou. O mundo, na época, regozijava-se de esperança, afinal acabava de sair de uma Grande Guerra Mundial, foram longos seis anos de inúteis e irrelevantes conflitos contra um mal humano, uma nação liderada por um louco que se levantou em cobiça contra o mundo e, quando, enfim, aquele tirano foi derrotado, o mundo comemorava sem saber da ameaça de um mal maior que pairava sobre as tolas almas humanas. Ainda, durante a guerra, alguns pilotos, de ambos os lados do conflito, relatavam verem coisas estranhas em meio ao campo de batalha, bolas luminosas, na época chamadas de Foo Fighters, que voavam entre os aviões em combates e deixava os generais atônitos. E, devido ao comportamento pacifico que tal fenômeno apresentava, os líderes mundiais decidiram deixar tais acontecimentos de lado, o que foi um erro colossal.
Os olhos mareados de Ana desceram e contemplaram aquela vastidão cinza, praticamente vazia e moribunda, pontilhada por entulhos, sujeira e pó. Do alto da colina onde estava, era possível avistar a cidade nova de aço cromado e dourado, que, agora, ardia em chamas e a poucos quilômetros dela, as ruinas decrépitas de uma antiga grande cidade, as ruínas de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Lembrou-se do arremedo de casa em que um dia viveu. Aquele amontoado de concreto, ferro retorcido e tijolos, no qual ela, sua mãe e avó se protegiam do frio, ao redor de uma parca fogueira bruxuleante em que Olga tentava preparar alimentos ou contava as histórias sobre o passado.
— Meu pai foi um Pracinha, durante a guerra, na Europa, e na que veio posterior, assim, quase não tenho lembranças dele, lembro-me de que era um homem forte... – disse Olga em uma noite álgida de inverno.
— Que pena que não pude conhecê-lo... Ou o vô, ou meu pai...
— Seu pai ainda está vivo, não se esqueça. – Interveio Denise. – Ele apenas nos trocou por eles, desistiu de tudo e, agora, vive naquela cidade brilhante.
— Ainda existe esperança? – perguntou Ana para sua mãe. Esta se calou, e voltou a comer a sopa de camundongos.
— Ana, temos que acreditar. – respondeu Olga, com um sorriso bondoso em seu rosto marcado.
— Vó, você se lembra de quando eles chegaram?
— Lembro querida, infelizmente. A Guerra tinha acabado... O mundo pensava estar em paz; mas, logo nos vimos cercados por um mal terrível e absoluto.
Olga era uma criança na época e, por isso, suas memórias eram limitadas e, com toda a destruição que se seguiu, poucos sabiam dos exatos detalhes de como o mundo acabou. Após a vitória dos aliados, mais objetos estranhos foram vistos, na Europa, sobre os céus da derrotada Alemanha, assim como na Suécia, e nos Estados Unidos. Em 1947, o piloto Kenneth Arnold foi um dos primeiros a ver uma esquadrilha de objetos, batizados pelos jornais de Discos Voadores; logo, pessoas, no mundo todo, também viam os Discos Voadores. Os governos das maiores potências negavam a veracidade dessas histórias, e quase ninguém mais no mundo, hoje, sabe o que se desenrolou de forma oculta por aqueles primeiros anos, pois tanto os Estados Unidos como a União Soviética sabiam o que eram esses objetos temíveis. Em 1947, os Estados Unidos derrubaram um desses Discos Voadores, na cidade de Roswell, no Estado do Novo México, e se defrontaram com a horripilante aparência humanóide dos seres que pilotavam tais máquinas. Seres que pareciam um escárnio da anatomia humana, mais baixos, com a pele acinzentada e uma grande cabeça desprovida de pelos, nariz, orelha ou individualidade... Apenas adornada por dois nefastos olhos amendoados e negros como o inferno. Na época, era segredo, mas uma nova guerra estava sendo travada. Ocultada da humanidade, com batalhas, geralmente, no oceano e no Ártico, onde os seres, por trás dos Discos, ergueram sua primeira base de comando.
Em poucos meses; porém, mediante a derrota das grandes nações, com sua tecnologia obsoleta, não havia mais como ser ocultado do público a realidade, e os Discos Voadores, agora, revelavam-se em sua plenitude para a humanidade bestializada. Eram aeronaves de tamanhos destinos, algumas chegando ao tamanho de grandes estádios de futebol, em forma de grandes discos, semelhante a dois pratos sobrepostos de uma cor metálica cromada, outras menores, com oito metros, tinham a forma de meia lua, era os caças de combate; e havia monstruosas estruturas em forma de cilindros negros com centenas de quilômetros de extensão, eram com elas que tais criaturas cruzavam o éter entre o cosmos.
Cientistas conjecturavam que esses serem vieram do espaço; mas, nunca se soube exatamente de onde, se de algum planeta do Sistema Solar, como Marte, Vênus ou o distante e frio Plutão ou se essas criaturas nefandas atravessaram a vastidão cósmica de estralas distante até encontrarem nosso mundo. Alguns alemães, nos dias finais de soberania humana, afirmavam que o Terceiro Reich havia teorizado que, talvez, os Foo Fighters viessem do centro da Terra, e fossem fruto de uma espécie que evoluiu em um mundo intra-terreno. Mas, fosse qual fosse à origem de tais monstros hediondos, o certo era que a paz nunca foi uma de suas perspectivas.
As máquinas extraterrestres que, a partir de bases, nos pólos e no mar, avançaram sobre os exércitos até chegar às metrópoles, não pouparam os civis em sua invasão, e com raios de plasma incandescente, reduziram a ruínas incandescentes as principais cidades da Terra. Estados Unidos e União Soviética, em um último e pífio esforço, usaram as bombas atômicas de forma massiva. O impacto de tal ataque nunca foi bem, ao certo entendido, o dano que provocou aos invasores permaneceu um mistério... Contudo, a civilização humana não sobreviveu às explosões e a subseqüente mudança climática, ironicamente, auxiliamos a vitória de nossos inimigos.
— Ana... Acorde. – dizia Ronaldo, estralando os dedos, ao lado do rosto da moça...
— Rô... Por um instante, imagine como seria ter crescido no mundo sem eles? Será que estaríamos aqui? Que existiríamos? Que teríamos relevância? Será que isso é real, e se for um sonho?
— Ahhh... General Artese. Além de ser uma formidável guerreira é, também, uma filósofa.
— Culpa da minha Avó, ela me ensinou a ler... E pensar...
— Que seja... Respondendo sua pergunta, talvez o mundo fosse um lugar melhor, mas não temos outra opção, e sonho ou não, estamos contando com você. Você precisa dizer alguma coisa às tropas.
A General Ana Artese virou-se para o sopé daquele morro, ali, estavam centenas de soldados, ao lado de aeronaves, apostos para a batalha.
Mesmo com a derrota, a humanidade ainda encontrou meios para lutar, e os invasores, após a magnitude catastrófica da ultima batalha, abrandou seus ataques, a final, eles haviam vencido a guerra. Poucas semanas após as explosões atômicas, os seres de cor cinza iniciaram um processo de colonização do planeta Terra. Eles se comunicaram aos humanos sobreviventes como os novos senhores do mundo e, em um ato de benevolência digna dos tiranos, poupariam a vida dos que se rendessem e se submetessem ao domínio alienígena, como uma classe inferior, quase escravizada, com nenhum direito nessa nova ordem mundial. Os primeiros a colaborarem com os invasores garantiram alguns privilégios, como o direito de residir nas novas cidades de vidro e aço, metrópoles douradas erguidas em meio aos desertos de caos e cinzas, convivendo, lado a lado, com os extraterrestres. Colaboradores como o pai de Ana, que trocou a família pelo conforto da servidão resignada... Ana e sua mãe nunca mais o viram. Ao restante da humanidade, restavam os escombros e o duro trabalho compulsório nas minas extraterrestres ou em suas fábricas.
Contudo, foi nesse derradeiro momento, que surgiram os movimentos de resistência. Antigos soldados da guerra contra os aliens permaneceram lutando, usando, agora, táticas de guerrilha e terrorismo, usando o velho código da Maquina Enigma da antiga Alemanha Nazista como meio de se comunicar. A resistência, com vitórias e derrotas se arrastou por décadas, quando, então, os seres humanos perceberam que os cinzentos, apelido pelo qual os dominadores eram chamados, estavam todos aqui... Onde quer que tenha sido seu lar, ele não existia mais, não havia reforços em outras estrelas, apenas os que aqui se fixaram e seus descendentes. Talvez, fosse seu modus operandi, destruir um mundo, sugar seus recursos e partir para o próximo. Nas ultimas décadas, a luta humana que chegara a ser insipiente, crescia em adeptos, algumas naves de combate alienígenas abatidas ou roubadas, passaram por modificações e foram incorporadas aos exércitos humanos.
Nesse contexto, é que Ana Artese apareceu, vinda de uma infância difícil, o avó provavelmente morto em uma fabrica alienígena e sem o pai, um traidor de sua espécie; sobrevivendo de restos, com 12 anos, foi recrutada por uma célula de rebelião humana. Logo, mostrou-se uma guerreira nata, uma exímia pilota e estrategista. E, conforme derrotava as bases e cidades invasoras, nos territórios do que um dia foi a América do Sul, ascendia ao posto militar.
— Soldados. – começou Artese, seu discurso em um microfone diante da multidão que esperava por seus comandos. – guerreiros, humanos... Talvez, não tenhamos muito pelo que lutar, nosso planeta é, agora, uma caricatura do que nossos avós dizem que ele foi um dia, em vez de verdes florestas e campos, temos desertos moribundos, e nosso céu é, perpetuamente, cinza, como é a cor de nossos inimigos. Mas, eu e vocês, meus irmãos e irmãs, temos nossa liberdade, e nossos sonhos... Talvez, possamos construir juntos um ‘amanhã melhor’, recuperar o verde e o azul de nosso mundo; porém, antes temos de destruir essa escória cinza, olhar nos olhos negros e sem vida desses invasores e dizermos que somos seres humanos, filhos da guerra e que seremos nós a espécie inteligente a triunfar no final. Como sabem, iremos, agora, voar em um ataque conjunto com todos os países do mundo, para uma última batalha, contra nossos inimigos que, em derrota, fogem para o ártico, local de sua maior e mais antiga base... Possivelmente, muitos de nós não sobrevivamos; porém, teremos a vitória em nossas mãos e para sempre o mundo irá se lembrar de nós e de nossa luta, pois somos humanos e é isso que fazemos, lutamos até o fim. Por séculos, treinamos contra nós mesmos para esse momento. Até à vitória! – Gritou Ana Artese, promovendo uma catarse em todos ali.
Os batalhões se aprontaram em suas aeronaves, a correria pré-batalha estava se iniciando, o destino da humanidade estava em jogo naquele momento. As naves, feitas dos destroços da tecnologia alienígena, ou roubada de suas fábricas, todas traziam emblemas próprios dos pilotos, suas asas pintadas cada uma a sua maneira, com símbolos de escárnio contra o inimigo, ou antigas bandeiras dos países e Estados que, um dia existiram naquele continente, enfeitavam algumas aeronaves. Antes de adentrar ao cockipt de sua nave, Ana voltou-se para Ronaldo, precisava-lhe contar uma coisa.
— Amigo... Tive um sonho estranho esta noite.
— Lá vem você com seus sonhos, com todo respeito a sua patente e a nossa amizade, temos de nos focar na luta.
— Mas, é importante, tenho sonhado com isso há algum tempo. – Ana respirou fundo, antes de continuar. – Sonho que estou em outro lugar, sem a guerra contra os cinzas, e usando não nossas fardas, mas roupas diferentes, comuns, que tenho um quarto bonito, diferente dos escombros em que vivi ou dos que existem nas cidades que nossos inimigos ergueram. Às vezes, vejo-me usando um computador, e conversando com pessoas que nunca vi, na maior parte do tempo, futilidades, ou tendo longas discussões acaloradas e inúteis com desconhecidos, sobre assuntos tão bobos e triviais. São sonhos tão reais que, quando acordo, tenho dúvida se eram sonhos... E se isso, que vivemos é realidade.
— Discussão? Pelo computador? – Indagou seu amigo incrédulo.
— Sim, eu e outros escrevemos textos enormes, às vezes, parecemos zombar de assuntos que, naquele contexto são sério; mas, que nada tem haver com esse horror de vida que levamos.
— Ana... Ninguém perderia seu tempo discutindo por um computador, o usamos para traçar planos, fazer cálculos. Esse mundo que você diz, mesmo sem a guerra e a invasão, é absurdo. Temos de lutar, minha general, pelo que é verdadeiro e real.
— Você tem razão meu amigo... Conhecemo-nos há muito tempo, sei que posso confiar em você. Obrigada. Agora, vamos, tenho uma guerra para vencer.
As naves decolaram e rumaram para o Ártico, onde combates inimagináveis determinariam o futuro do mundo. Caças humanos e dos invasores singrariam pelos céus, explosões de plasma derrubariam os grandes cilindros negros sobre o gelo Ártico. Mas, mesmo em meio à batalha, as lembranças daquela outra vida não saiam da mente de Ana, como se as duas de alguma forma fossem reais.