Buraco de minhoca
Do Diário de Daniel.
Texto extraído das páginas 1.212 até 1.234. Datado de 17 de abril de 2007, terça-feira. Início: 8:15. Fim: 9:55.
Estranha a aventura que vivi há dez anos. Não a contei para ninguém. Hoje, decidi registrá-la. O que me sucedeu, naquele dia, passados, já, dez anos, não me sai da cabeça. Foram em vão todos os meus esforços para esquecer aquele dia. Desejo, em vão, apagá-lo da memória. Decidi, incapaz de esquecê-lo, registrá-lo. Relutei em escrever o que me sucedeu. Não sei definir o que se passou comigo. Perguntei-me, não raras vezes, porque eu escreveria o que me aconteceu, naquele dia, se para ninguém eu mostraria o texto. Dir-me-iam louco, eu estava, e estou, certo, todos os que tomassem conhecimento deste texto. Meu pai, minha mãe, minhas irmãs e meu irmão, todos eles, fitar-me-iam com o canto dos olhos, se tivessem acesso a este relato, e lamentariam a minha insanidade mental. Meu irmão, Aquiles, dotado de imaginação extraordinária – mas as coisas fantásticas, no entendimento dele, restringem-se ao mundo irreal da imaginação, e nenhum contato têm com a realidade que conhecemos – também não me acreditaria. Nenhum deles, repito, tratar-me-ia como um homem de posse das suas faculdades mentais. A minha timidez, que sempre me impediu de dizer tudo o que penso e de narrar as minhas aventuras, não me permitiu atrever-me a contar o que vivi há dez anos. Neste diário encontram-se os meus pensamentos e o relato da minha vida. E conservo-os comigo, e apenas comigo.
O principio da aventura, inusitada, similar ao início de contos fantásticos; no entanto, ao contrário dos contos, cujos enredos brotam do cérebro de pessoas criativas, a minha aventura foi real. Conservo comigo as lembranças do que me sucedeu e trago uma estranha marca, a qual de todos oculto, em meu joelho direito.
Não me recordo do dia da semana em que o evento se deu – sei que ocorreu há dez anos, um dia após eu comemorar o meu vigésimo aniversário, na minha casa, com meus familiares e amigos -, nem quanto tempo durou.
Foi de manhã. Lembro-me que, na noite anterior, exausto, eu me deitara antes das dez horas da noite. Eu trajava apenas um short. Cobria-me um lençol fino, que me protegia dos mosquitos e dos pernilongos que infestavam o quarto. Era uma terça-feira? Ou uma quarta-feira? Ou um domingo? Não sei. Não sei em que dia, naquele ano, caiu o meu aniversário. Este detalhe é irrelevante. Se foi em uma quinta-feira, se em um sábado, se em uma segunda-feira o teor da aventura que vivi será o mesmo. Foi em Junho, estou certo, pois nasci no dia quinze de Junho.
Eu dormia, profundamente, quando, na escuridão do quarto, luz incomodou-me os olhos. Não despertei, de imediato. Recordo-me de, ainda a dormir, sentir luz intensa atingir-me os olhos e calor atingir-me o corpo. Não despertei, estou certo. Não muito tempo depois, outro clarão iluminou o quarto, e eu, semidesperto, entrecerrei as pálpebras, e vi – a minha visão embaciada – diante de mim uma coisa a flutuar sobre a minha cama, próxima de meus pés. A coisa parecia gelatina de morango. Não dei-lhe atenção. Era como se eu ainda dormisse, e aquela gelatina flutuante fosse uma personagem do meu sonho. Com o lençol cobri-me a cabeça. E dormi. Não sei quanto tempo depois, senti algo a puxar-me o lençol; aliás, senti o lençol a deslizar-me por sobre o corpo. Descoberto, nem adormecido, nem acordado, resmunguei, remexi-me na cama, tateei o colchão à procura do lençol, e não o encontrei.
Senti uma corrente de ar frio invadindo o quarto. Tremi de frio. Procurei pelo lençol. Não o encontrando, descerrei as pálpebras, estiquei-me, e apertei o interruptor. Atingiu-me os olhos a luz, obrigando-me a cobri-los com os antebraços. Habituado à luz, descerrei as pálpebras. E qual foi a minha surpresa ao ver, diante de meus olhos, uma coisa esquisita a flutuar, uma massa gelatinosa, brilhante, avermelhada, que irradiava brilho bruxuleante!
– O quê!? – berrei, assustado, arregalados os olhos, escancarada a boca, acelerado o coração, trêmulo o esqueleto, a fitar aquela coisa gelatinosa.
Berrei uma interjeição de espanto, mas não me ouvi. O medo talvez tenha me assustado tanto que por algum motivo não consegui ouvir o meu berro. Em meu inconsciente, ouvi as palavras que berrei; meus ouvidos, todavia, não as ouviram. Articulei as palavras, mas não as proferi. Eu as ouvi, mas não com meus ouvidos; eu as ouvi com meu inconsciente. Minha voz sumira inexplicavelmente. Assustado, pulei da cama, pronto para, em disparada, se necessário, sair, correndo, do meu quarto. Eu não entendia o que me ocorria. De repente, perdi os movimentos de meu corpo. Eu não o sentia. Meu corpo, imobilizado, ficou, contra a minha vontade, de frente para aquela coisa gelatinosa vermelha e brilhante. E comecei a flutuar. Eu não sentia meu corpo. Era como se eu o houvesse perdido. Ouvi uma voz feminina, suave, dentro de minha cabeça. Eu estava nervoso; meu coração batia acelerado.
– Daniel – dizia-me a voz -, não tenhas medo de mim. Não te prejudicarei.
Eu olhava, ainda assustado, mas não tanto quanto quando eu me deparara, pela primeira vez, com aquela coisa gelatinosa vermelha a flutuar diante de mim.
– Daniel – disse-me a gelatina flutuante (criatura desprovida de boca, nariz, de todos os órgãos que compõem um corpo) dentro de meu cérebro -, eu vim de um planeta distante, localizado em um sistema estelar longínquo – prosseguiu, após uma curta pausa -, situado em uma galáxia que os humanos desconhecem, e na qual há seres inteligentes mais evoluídos do que os humanos. Tal galáxia dista dois bilhões de anos-luz da Via-Láctea. Os humanos só a visitarão daqui doze mil e duzentos anos, quando desenvolverão tecnologia que lhes permitirá viajar através do tempo e teletransportarem-se através do espaço. Sei o que digo, pois viajo através do tempo por meio de um fenômeno que os humanos denominam Buraco de Minhoca, o mais comum meio de transporte empregado pela minha espécie. Empregamo-lo há muito tempo, no passado e no futuro. Descobri-mo-lo como controlá-lo, em um tempo que ainda não chegou para os humanos, e nunca chegará, um tempo que não está no futuro, nem no passado, nem no presente. Está em um instante; instante que não se localiza no passado, nem no presente, tampouco no futuro. Vim de uma galáxia na qual são inaplicáveis todas as leis da física que os humanos conceberam. Encarregaram-me os governantes do meu planeta de contatar um humano e para ele mostrar o que podemos fazer, e provar-lhe, de modo incontestável, que os humanos não são os únicos seres inteligentes no universo, muito menos os mais inteligentes. Os humanos desconhecem bilhões de universos, que compõem aglomerações de universos, que compreendem megauniversos, cuja concepção os seres dotados de inteligência inferior não podem compreender. Escolhi-te para transmitir-te o conhecimento do meu povo. Nenhum motivo especial eu tive para escolher-te. Detive-me no teu quarto, te vi a dormir, e decidi apresentar-te o meu mundo, os outros planetas do sistema estelar ao qual meu mundo pertence, e outras galáxias. O meu objetivo: mostrar-te que os humanos não são os únicos seres inteligentes do universo, e nem os mais inteligentes. Depois, tu difundirás, na Terra, para todos os humanos, os conhecimentos que te transmitirei, e todos os humanos conhecerão o que há no universo, e tomarão conhecimento da nossa existência e da existência de muitas outras espécies de seres inteligentes que vivem em outros planetas, em outras galáxias, em outros universos.
A criatura gelatinosa tentava traduzir para a linguagem humana as idéias que desejava me transmitir. As palavras dela não são as que escrevi; o teor do que ela me disse, no entanto, é, acho, o que registrei. Sou o mais fiel possível ao conteúdo do que ela me disse. Dez anos separam-me daquele dia; não posso me recordar de todas as palavras que a criatura gelatinosa disse-me.
Não sei como definir aquela criatura, a não ser chamando-a de criatura. Uma criatura estranha, uma criatura esquisita. Não sei a qual espécie ela pertence, e em qual galáxia situa-se o planeta no qual ela vive. Tais informações ela não mas passou; se mas passou, delas não me recordo. Talvez ela tenha me dito de qual galáxia ela é originária, mas eu, dominado pelo medo, mal lhe ouvi o relato da viagem que ela empreendera até à Terra dentro de um túnel espaço-tempo e sob influência de outros fenômenos que apenas Einstein, John Wheeler, Chandrasekhar, Roger Penrose, Alexander Starobinsky, Friedmann, Niels Bohr, e outros cientistas da mesma estirpe seriam capazes de entender.
Pouco pude entender do que a criatura disse-me. Aquela criatura estranha, a criatura mais estranha que já vi, mais estranha do que ornitorrinco, do que equidna e do que os animais que habitam os abismos dos oceanos, disse-me que não estava no tempo que eu percebia, ou algo assim; que não estava, nem no presente, nem no passado, nem no futuro. Ela simplesmente estava. Foi isso o que entendi do que ela me disse. Ela também me disse que o universo não foi criado, porque sempre esteve. Não disse que sempre existiu; disse-me que o universo sempre esteve. Não entendi o que ela quis me dizer, e não quero saber o que ela quis dizer-me, e não pensarei mais nisso. Não queimarei meus neurônios. Restam-me poucos, depois de tantos anos a queimá-los em trabalhos árduos e infrutíferos, e não quero desperdiçá-los com mistérios que não posso desvendar.
Encerro a minha tentativa de relatar o que a criatura disse-me, não sei em quanto tempo, pois de tudo o que ela me disse de quase nada me recordo – e nada compreendi do que ela me relatou durante horas (Horas? Posso mensurar, em horas, o tempo quando o tempo sofria não sei quais efeitos com a presença da criatura?).
Não me esforçarei para recapitular o que se passou, no meu quarto, e tampouco pretenderei – pois sei que é-me impossível – reconstituir o discurso da criatura. Não entendi patavinas do que ela me disse; se a minha memória não me engana, ela demorou para perceber que eu não a entendia; para infelicidade dela, ela não entabulou conversa com um indivíduo humano mais inteligente do que eu e com conhecimento em cosmologia; com a sua inteligência inigualável, ela não teve paciência para examinar os humanos e selecionar um que fosse dotado de intelecto vigoroso, e, ousado, não temesse inteirar o mundo de sua história. Se tivesse paciência – o tempo inexiste para ela, segundo entendi -, ela selecionaria um indivíduo humano intelectualmente bem dotado e para ele transmitiria as suas idéias – suspeito que tal humano, tanto quanto eu, intimidar-se-ia com toda a história, recusar-se-ia a contar para outras pessoas o que lhe ocorreu, e conservaria consigo a história, como eu o fiz.
Ao notar que eu não a compreendia, ela disse-me dentro da minha mente:
– Tu, com a tua inteligência inferior – o seu tom de voz, arrogante -, não entendes o que te digo. Creio que nenhum individuo humano é capaz de entender-me – inspirou-me a mente a vontade de encaixar-lhe um soco no nariz. Ela leu-me a mente. – Não te desesperes. Não te enerves. Não dominarei os humanos. Se a minha espécie desejasse dominar-lhe, vós não poderias impor-nos resistência. Não vos dominarei. Estou, neste planeta, para apresentar para um individuo humano os conhecimentos e a tecnologia da minha espécie e o universo. Prepara-te para a viagem.
– Viagem? – perguntei, sem articular a palavra.
– Sim – respondeu-me a criatura. – Viajaremos através de um Buraco de Minhoca.
Expressei confusão de pensamentos. A criatura replicou. Encetamos discussão, eu, nervoso e enfezado, ela, calma e serena. Enfim, ela fez sair de dentro de seu corpo um aparelho menor do que meu polegar, e disse-me que era o controlador do Buraco de Minhoca. O aparelho emitiu um brilho alaranjado, e diante de mim apareceu um círculo. Olhei para o seu interior, que não tinha dimensões, e arregalei meus olhos, assustado.
– O que é isso? – perguntei, tolamente.
– O Buraco de Minhoca.
– Aonde tu me levarás?
– Tu verás – respondeu-me a gelatina flutuante. Tive a impressão de haver visto sorriso escarninho em seu rosto (a criatura é desprovida de rosto).
Em pé, flutuei até o Buraco de Minhoca, que se alargou para que eu nele entrasse, e a criatura posicionou-se à minha direita.
Não sei descrever o que senti quando meu corpo foi puxado para dentro do túnel sem fim. Eu, parecia-me, não me mexia. Mas eu me mexia. Não muito tempo depois (é incômodo falar em tempo, neste caso), me vi diante de uma esfera chamejante. A criatura disse-me tratar-se da Terra em formação. Um espetáculo fabuloso. Vi a Terra a formar-se em ritmo acelerado. Vi dinossauros a caminharem pelos continentes. Vi asteróides atingirem a Terra. E os dinossauros foram dizimados. Diante de meus olhos sucederam-se, num ritmo alucinante, as eras glaciais, erupções vulcânicas, o surgimento da civilização, a construção de grandes cidades. Reconheci os jardins suspensos da Babilônia, as pirâmides do Egito, Macchu Picchu, o Colosso de Rodes, o Farol de Alexandria, a Grande Muralha, o Taj Mahal, o templo de Angkor Vat, e muitas outras maravilhas que os humanos construímos. A história humana desenrolou-se diante de meus olhos. Vi as ruínas de todas as grandes construções. Vi os humanos a esfacelarem-se em guerras sangrentas. Chegamos ao tempo presente: o ano de mil, novecentos e noventa e sete. Não se encerrou a viagem através do tempo. Vi o futuro dos humanos. As viagens espaciais. A construção de colônias humanas na Lua, em Marte, em Titã. As viagens interestelares. A espécie humana a modificar-se diante de meus olhos. Transcorreram-se séculos, milênios, dezenas de milênios. E a espécie humana a transformar-se. Os humanos converteram-se em seres irreconhecíveis. Vi, fascinado, a espécie humana a transformar-se. Se a criatura não me dissesse que aquelas criaturas que eu tinha diante de meus olhos eram humanas, melhor, seres que evoluíram do homo sapiens, eu não saberia que se tratavam de seres nos quais nossos descendentes se transformariam, num futuro distante; para a criatura, disse-me ela, tudo aquilo já havia acontecido. E vi Sol a expandir-se, e a engolir Mercúrio, Vênus e a Terra. E o Sol explodiu. E fez-se as trevas.
Após a viagem através do tempo, na Terra, a acompanhar o progresso da civilização até o seu desaparecimento, que se deu com a transformação da espécie humana em outra espécie, que vivia, além da Terra, em outros planetas acolhedores de outros sistemas estelares, a criatura disse-me que iríamos para a galáxia em que se situa o planeta em que ela vive.
Eu era incapaz de compreender tudo o que vi. A criatura e eu rumamos para planetas nos quais viviam criaturas estranhíssimas, que fundaram civilizações detentoras de tecnologia inigualável.
Detivemo-nos em um planeta em que os indivíduos, como a criatura, comunicavam-se por intermédio da mente, ou de um órgão similar. Eram criaturas de mais de cinco metros de altura, dotadas de três pernas, seis braços, cinco olhos, e desprovidas de boca e de ouvidos. Procriavam-se com o pensamento. Quando uma criatura desejava conceber um descendente, pensava na concepção, e o descendente brotava de um de seus pés e, pouco tempo depois, caminhava, e atingia o tamanho de um indivíduo adulto da sua espécie sem que tivesse ingerido alimento. Possuíam extraordinário vigor intelectual. O planeta que habitavam, mil vezes maior do que a Terra, estava coberto de cidades grandiosas. Quase nada entendi do que eles faziam; os seus gestos e a sua tecnologia estavam longe da minha compreensão.
Daquele planeta rumamos para outro planeta, habitado por estranhas criaturas inteligentes de cultura avançadíssima (não sei se o que vi se passou no tempo presente, isto é, no ano terrestre de mil, novecentos e noventa e sete, ou se a dezenas de milhões de anos no futuro, ou no passado).
Criaturas estranhas e inconcebíveis pela imaginação humana, dotadas de alto grau de conhecimento tecnológico, dominavam alguns fenômenos universais e tinham amplo conhecimento das forças que atuam no universo; construíam naves espaciais que viajavam através do tempo e através do espaço.
A criatura falava-me do que me mostrava, dos planetas, das espécies de criaturas que viviam em cada um deles, das maravilhas que me apresentava – e quase nada me lembro do que ela me disse -, e quase nada entendi, pois, na linguagem humana não há vocábulos para defini-las.
Visitei o planeta da criatura gelatinosa. Era o planeta maior do que a Terra. Presumo, é-me impossível afirmar, que é do tamanho de Júpiter. Centenas de bilhões de criaturas gelatinosas avermelhadas flutuavam no céu do planeta. Entramos em uma construção, na qual havia, instalada, uma máquina de seiscentos metros de altura e que se estendia até o infinito. A criatura disse-me que era uma máquina que criaria um Buraco de Minhoca gigantesco, pelo qual o planeta viajaria através do espaço e através do tempo. Em vão, tentei conceber o que ela me disse.
Durante a viagem, cai, e resvalei meu joelho direito em uma substância segregada por uma criatura. Em meu joelho direito ferido apareceu uma estranha marca, e trago-a comigo, marca que ora emite brilho avermelhado, ora brilho multicolorido, ora abre-se, e em seu interior vejo as galáxias, como se me descortinassem os portões do universo – talvez a existência da marca em meu joelho direito explique porque pude esconder, a partir daquele momento, da criatura gelatinosa os meus pensamentos.
A criatura guiou-me pelo seu planeta, e apresentou-me todos os seus aspectos. Depois de eu haver ganhado, se posso assim dizer, a marca em meu joelho direito, passei, não a entender o que a criatura explicava-me, mas a ver tudo sem a confusão inicial. Se meu consciente não entendia todos os fenômenos dos quais a criatura dava-me explicações minuciosas, meu inconsciente apreendia-os; todavia, não posso explicá-los com a linguagem humana; consigo entendê-los apenas com a linguagem da espécie da criatura gelatinosa flutuante.
As aventuras posteriores foram interessantes, mais interessantes, até, do que as primeiras, pois eu pude, como eu já disse, apreender os fenômenos à medida que eu me familiarizava com a linguagem da criatura gelatinosa. Pude, até, entender o diálogo dela com outros indivíduos da sua espécie. Os humanos do meu tempo estão muito distantes, no que diz respeito à inteligência, daquelas estranhas criaturas; e apenas daqui dezenas de milhares de anos a elas se igualarão, e poderão compreender os mais fantásticos fenômenos do universo.
A criatura não sabia que eu podia entendê-la, e tampouco sabia que eu podia compreender os fenômenos universais que ela e os da sua espécie compreendiam e controlavam. As criaturas gelatinosas falavam de todas as suas tecnologias, fabulosas tecnologias. Controlam forças muito mais poderosas do que as que os humanos controlamos. Forças inconcebíveis para a nossa minúscula capacidade cerebral.
Mal controlo o que escrevo. Descarrego, na minha agenda, todas as palavras que me vem à mente. Mesmo que eu tenha adquirido uma parcela da inteligência das criaturas, eu ainda penso, na Terra, como humano.
Enfim, sem aviso, a criatura gelatinosa encerrou a jornada através do tempo e através do espaço, e devolveu-me à Terra, em uma manhã, ao meu quarto, cuja janela estava fechada, e pelas suas frestas réstias de luz o invadiam, e despediu-se de mim com palavras amigáveis, nas quais não li nem vaidade, nem desejos similares aos dos humanos. Retirei-me do quarto. Em casa, todos dormiam. Não me dei ao trabalho de olhar para um relógio, e verificar as horas. Também não olhei para o calendário na porta do meu guarda-roupa.
Fim do texto extraído do Diário de Daniel
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Chamo-me Aquiles. Sou irmão do Daniel. O texto acima foi publicado, originalmente, pela Editora E***r** B*a***i. Hoje é o dia 21 de dezembro de 2028, quinta-feira, dez anos após a morte de meu irmão. Este conto fantástico eu o encontrei em meio a vários rascunhos de aventuras fantásticas que meu irmão adorava escrever. Publicado o conto há seis anos, meu irmão recebeu, postumamente, mais de vinte prêmios literários. Vertido para o cinema, o filme conquistou grande público em vários países. Lendo-se o texto tem-se a impressão de que Daniel viveu a aventura narrada no conto, mas ela é, unicamente, fruto da sua poderosa imaginação. Meu irmão fascina-me. Não consigo entendê-lo. Como ele podia tomar como verdadeiras as estórias que brotavam da sua criatividade prodigiosa?
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Ano: 2097. 03 de março. Domingo. 5:15 da manhã. Meu irmão morreu há trinta e quatro anos, sete meses e oito dias. Infelizmente, a sua incredulidade impediu-o de tomar como verdadeira a história, que ele toma como estória, que extraiu do meu diário. Leu-a – e a todas as outras – apenas como uma aventura fantástica criada pela minha imaginação.
A criatura, se regressasse à Terra para conhecer o que fiz, isto é, o que não fiz, porque para ninguém contei a minha experiência, saberia que os humanos nada sabem da sua passagem pela Terra, e frustrar-se-ia, porque, primeiro, guardei comigo a história da minha aventura durante dez anos, até registrá-la no meu diário; depois, ao vir ao conhecimento do público, por intermédio de meu irmão, transformou-se a história em um sucesso literário, depois cinematográfico – e não é nada mais do que uma aventura de ficção científica como milhões de outras; e atualmente dela ninguém mais se lembra.
O maior prêmio que recebi, que não dividi com ninguém, foi o aparelho que me permite viajar através do tempo e através do espaço, e que controla o fenômeno universal chamado Buraco de Minhoca. Estou fazendo bom uso dele. Furtei-o, sorrateiro, do interior de um aparelho, quando as criaturas gelatinosas, desatentas, conversavam. As criaturas, desprovidas de mãos, não conhecem o talento humano para a prática do furto. Para a minha felicidade, pude ocultar os meus pensamentos da criatura gelatinosa que me guiava através do tempo e através do espaço, talento que desenvolvi durante a viagem, e que decorria da marca que trago comigo em meu joelho direito. De todos a ocultei. Ela me permitiu – depois do meu regresso à Terra – realizar aventuras inimagináveis pelos confins do universo e de outros universos e dialogar com outras criaturas inteligentes, muitas delas mais inteligentes do que os seres humanos. Ela faz parte de meu corpo, como o fazem minha cabeça, meus braços, minhas pernas, e todas as minhas outras partes.