O Fim da Inocência
Texto originalmente publicado na coletânea Adeus Planeta Terra, da editora Literata.
O contexto: De repente e sem aviso, a humanidade teve a resposta se estávamos sozinhos no Universo. E eles eram hostis. Em meio a guerra e o desespero criamos uma arma biológica chamada "Vírus Santa maria" com o objetivo de matá-los; uma vez que eram muitos e nada, até agora, havia surtido qualquer resultado. Esta ação criou algo muito pior: seres modificados geneticamente, ferozes, violentos e sem qualquer consciência. Uma evolução forçada criou uma nova raça que ficou conhecida como "Mutanos". Mas isto é outra história.
– Quando eles chegaram éramos nove bilhões. – Disse o velho de cento e três anos para o bisneto enquanto caminhavam entre destroços de naves, membros de androides tão humanos quanto os dois andarilhos, e ossos humanos e não humanos. –Morreram quatro bilhões nos primeiros meses da invasão. – As lágrimas do velho caíam sobre o exoesqueleto que cingia todo o corpo, a fim de sustentar seus ossos frágeis – Amigos, família... nosso mundo começou a morrer lentamente durante os anos de guerra.
– Como deixamos isso acontecer? – Perguntou o mancebo que mal saíra da adolescência.
– Ahh! Fomos dormir soberbos com os avanços de nossa tecnologia e acordamos violentamente em meio ao caos. Milhares de pontos brilhantes como diamantes surgiram no céu e em poucas horas o fogo caiu sobre nossas cabeças. Mas isso não foi nada comparado ao que viria depois. – O velho falava com dificuldade; o ar estava impregnado de doenças, vírus e poeira. As máscaras com filtros eram sua única proteção. O céu estava enegrecido e as poucas chuvas eram contaminadas com substâncias ácidas. – Quando eliminamos os desgraçados alienígenas achávamos que estaríamos em segurança; ledo engano. Eu lembro-me da primeira nave de fuga singrando os céus e depois, dezenas de outras. Meu único filho, que viria a ser seu avô, nasceu no dia em que a primeira colônia foi construída em Marte. Eu nunca tive vontade de ir para marte, principalmente depois que soube das centenas de naves que perderam o rumo ou explodiram. – Divagou o ancião.
– Vô? – Interrompeu o rapaz olhando pelo binóculo – Lá estão os silos. – Disse ele apontando para um enorme complexo de armazéns e máquinas abandonadas distantes cerca de três quilômetros – Acha que ainda há alguma comida armazenada lá?
– Sim! E talvez alguma arma, combustível... Nós armazenamos muita coisa antes da alvorada dos “Mutanos”.
– E se encontrarmos algum deles por lá? – Perguntou o jovem com certa preocupação. Seu bisavô fez questão de vir junto, já que era o único que conhecia o caminho.
– Nós os matamos! São como animais: instintivos e mortais.
– Então vamos embora! – Disse Dante descendo uma ladeira – E quanto a Europa?
– O quê?
– O senhor disse que nunca se interessou em fugir nas primeiras viagens para marte. E para Europa, teve algum interesse? – O jovem tentava manter a conversa na longa viagem em busca de mantimentos. O velho contou sobre as primeiras colonizações de Europa: uma das luas de Júpiter. O rapaz olhava para o bisavô enquanto ele tossia. Sabia que a idade avançada e aquele ambiente inóspito o levariam em breve. Os pais de Dante foram mortos na época da colonização de Europa, de modo que as lembranças dessas colonizações são tristes para Dante e seu bisavô.
– O senhor está bem?
– Sim! Ainda estou... – Disse o velho sorrindo.
O tênue brilho avermelhado do sol tentou timidamente banhar a depressão onde se encontravam os silos. Isso permitiu que Dante e seu bisavô vissem que alguns campos ainda estavam verdes. Era bom sinal. As sombras chegaram quando nossa estrela foi embora. A distância entre os dois andarilhos e os silos era pequena, mas eles caminhavam cuidadosamente. De repente Dante ouviu gritos.
– O que foi isso? O senhor ouviu?
– Não! O que você ouviu filho? – Perguntou o ancião nitidamente preocupado.
– Ouvi gritos e sussurros... – O velho olhou para Dante e seus olhos denunciaram que as coisas iriam piorar muito.
– Mutan... – Antes que a frase fosse pronunciada mãos brancas como leite e garras similares as de uma ave de rapina rasgaram o tórax dele. Carne e metal – Filho... desculpe-me! – Dezenas de Mutanos em sua essência mais selvagem, estraçalharam o corpo frágil do centenário.
– Vovô! – Dante observava os restos do velho sendo devorados. O jovem lembrou-se de como seus pais haviam morrido. Seu bisavô contara os detalhes que agora ele via acontecer a poucos metros. O velho ensinou ao rapaz, odiar essa raça. Homens-feras transformados pela arma que por um tempo foi a nossa salvação: o vírus “Santa Maria”. Dante os execrava. Puxou a sua arma e atirou bombas nas bestas. Fogo misturou-se com sangue, vísceras e gritos aterradores, quase humanos; até que a arma fez um barulho abafado: estava vazia.
– Acabou a munição. – Dante correu depressa em direção aos silos. Enquanto fugia da horda atrás dele, procurava munição no fundo da mochila. Cerca de vinte Mutanos gritavam em uníssono em seu encalço. Dante não encontrava nenhuma bomba ou qualquer outro artefato. Estava perdido. O ódio que nutria pelas criaturas fez com que puxasse a faca, mesmo sem chance nenhuma, e esperasse pelo menos, pintar o chão com o sangue de alguns deles. Mas eram muitos, e aumentava a cada segundo. Dante desferiu o primeiro golpe tão logo as garras de um deles alcançaram o seu pescoço. O grito da criatura fez Dante sorrir. O inevitável estava para ocorrer quando subitamente os olhos frios e negros das criaturas, brilharam com o fogo que vinha de trás de Dante. O jovem viu apenas a enorme arma e sua chama queimar Mutanos à sua frente. A silhueta era de uma mulher. Os gritos de terror dos monstros arrebatou a atenção de Dante. Ele viu as criaturas serem consumidas pelo fogo. Uma a uma elas morreram. As poucas que sobraram correram pelo cemitério de equipamentos.
Dante olhou para trás e seu coração disparou quando viu a bela mulher segurando a arma. Era alta. Seus olhos eram azuis como o oceano. O corpo era belo e perfeito. Seus cabelos eram compridos e de um tom azulado encantador. Ela usava roupas colantes evidenciando o porte atlético.
– Você está seguro, agora! – Disse ela com voz doce e hipnótica mesmo através da máscara contra gases tóxicos.
– Quem é você? – A mulher permanecia em silêncio virando-se em direção a uma porta em um dos silos.
– Você vive aqui? Onde é o seu acampamento? Há mais alguém neste lugar? – Insistiu Dante caminhando atrás dela apressadamente.
– Sim! Eu moro aqui. Meu nome é Sigma e não há mais ninguém neste lugar.
– Viver sozinha aqui pode ser perigoso. Por que não vem para nosso acampamento?
– Ainda assim eu o salvei. – Disse ela, enquanto guardava a sua arma em uma estante, deixando Dante sem resposta por alguns segundos.
– A noite está chegando, seria prudente que eu dormisse aqui. É muito perigoso voltar hoje para o acampamento com esses desgraçados em volta deste lugar. – Sigma olhou para ele com certa inquietude.
– Parece que você os odeia. Já pensou que podem ser vítimas como os humanos? – Perguntou ela enquanto sentava-se em uma bancada de metal.
– Eu os odeio mesmo. Eles mataram todos os membros de minha família. O último foi meu bisavô estraçalhado como um pano velho.
– Eles são criaturas instintivas...
– Instintivas, consciente, não importa. São assassinos e devem ser punidos como tais. – Sigma observava o ódio emanando de todo o corpo de Dante.
– Foram os humanos que os criaram. – Disse ela.
– Não defenda esses malditos! – Gritou ele jogando alguns equipamentos no chão, fazendo com que Sigma se assustasse – Desculpe-me.
– Onde é o seu acampamento? – Perguntou Sigma mudando de assunto.
– Nas montanhas do outro lado.
– Vocês andaram muito em busca de comida. Acho que deve descansar agora.
– Sigma? Por que não vem comigo, para o nosso acampamento? – A mulher desvia o olhar do rapaz por alguns instantes.
– Você fica ali. – Disse ela apontando para um canto em que havia uma espécie de tapete no chão – Amanhã você escolhe as armas e a comida que quiser e vai embora.
Os gritos noturnos não deixaram que Dante adormecesse. Mutanos corriam livres lá fora. Sigma também não dormiu. Ela pensou na proposta de Dante durante toda a noite.
No dia seguinte Dante colhe alguns legumes, frutas, sementes e folhas para remédios. Seleciona três armas e um punhado de munições. Sigma observa tudo a certa distância. Ao terminar Dante aproxima-se da bela mulher e informa que está pronto para partir. Ele agradece por tudo e sai pela porta do complexo. Ao caminhar alguns metros lá fora ele ouve o chamado suave de Sigma:
– Dante? Eu vou com você. – Ele sorri e os dois caminham pelo deserto de maquinaria.
Eles conversam sobre as dificuldades da vida naqueles tempos. Sigma é mais comedida em falar sobre seu passado. Mas Dante está claramente atraído pela jovem. Quando eles caminharam metade do caminho Sigma parou:
– Eu preciso dizer algo! – Dante ainda sorria enquanto ela fitava seus olhos. Vagarosamente ela retirou a máscara de proteção do rosto – Eu sou uma deles!
– Ponha a máscara, você vai... você o quê?
– Eu sou o que vocês chamam de Mutano. – Aquela revelação causou um caos nos sentimentos de Dante.
– Não pode ser! Você... você é inteligente... eles são apenas criaturas assassinas movidas pelo instinto. Você mesma disse isso.
– Nem todos são assim... – Ela põe a mão no ombro do rapaz.
– Tire suas mãos imundas de mim. – Sigma entristece enquanto Dante desaparece na floresta enegrecida. Ela permanece ali parada por um longo tempo, imaginando o dia em que as duas raças possam conviver em paz e que talvez possa haver amor entre eles.