O Peso dos Nossos Pecados

As expedições de coleta na Cidade Morta eram em parte atividades festivas, contando com grande número de mulheres e crianças. Os Yelocaah quase sempre dirigiam-se aos mesmos lugares onde, por gerações, seus antepassados haviam realizado seu trabalho de catadores. Como a Cidade possuía muitas áreas sujeitas a desmoronamentos, ou que davam abrigo a criaturas potencialmente perigosas, a palavra de ordem era não se afastar dos locais conhecidos. Foi o que Maren explicou a Jepp, quando partiram a pé na manhã seguinte, com um grupo de uma dúzia de pessoas que contava com cinco mulheres e três crianças, entre 8 e 12 anos de idade, além de quatro mulas de carga.

- Por que crianças? - Indagou ele, enquanto subiam o caminho das montanhas que cercavam o vale.

- Para que aprendam, é claro - arguiu a Virgem Consagrada. - Lembre-se que elas terão que fazer esse trabalho em não muito tempo.

- Se levam crianças, significa dizer que só frequentam as partes seguras da Cidade Morta - retrucou Jepp. - Talvez tenhamos que nos afastar um pouco delas para localizar os componentes de que preciso.

A Cidade Morta ocupava uma área de centenas de quilômetros quadrados, e os Yelocaah muito provavelmente só haviam explorado uma pequena parte dos subúrbios próxima das montanhas, o que fazia sentido, por várias razões; dentre elas, a de que originalmente havia ali usinas de polímeros sintéticos. Plástico, era basicamente tudo o que eles precisavam de industrializado. A tecnologia utilizada pelos Antepassados era complexa demais para que os contemporâneos tivessem a pretensão de tentar compreender como funcionava; no máximo, valiam-se de remanescentes funcionais daquela suposta Era Dourada, como o Reprodutor Primário, ou o Muro de Jericó dos Beryte.

- Eu frequento a Cidade Morta... ou ao menos a parte que meu povo conhece... desde pequena - comentou Maren. - Se me explicar exatamente o que procura, posso lhe dizer se há algum lugar próximo onde encontrá-lo.

- Parece-me bastante justo - acedeu Jepp. - Embora eu gostasse de levá-la para as partes que ainda não conhece, como a Ponte do Trovão, que, dizem, foi derrubada por um raio e hoje tem as suas duas metades mergulhadas no rio.

- Os Yelocaah não são um povo aventureiro - riu ela. - Mas se conseguir cumprir a sua missão... sim, talvez eu queira conhecer esse lugar com você.

- É uma promessa? - Questionou Jepp, encarando-a.

- É uma promessa - disse Maren, solenemente.

O grupo chegou ao topo do caminho por volta do meio-dia. A partir daí, a estrada descia sinuosamente para a planície, na qual descortinava-se a silhueta megalítica da Cidade Morta, e mais adiante, envolto em brumas, o mar azul.

- Nunca havia visto a Cidade Morta desta altura. A paisagem é linda - admitiu Jepp, fascinado.

- Linda e assustadora - assentiu Maren.

Havia muitas lendas circulando entre os vários povos que residiam no entorno da Cidade Morta, dando conta de quem haviam sido seus habitantes e o que fora feito deles depois que sua civilização entrara em colapso. Entre os Yelocaah, por exemplo, rezava a tradição que eles voltaram para as estrelas, de onde viriam algum dia buscar seus descendentes. O Reprodutor Primário era um símbolo dessa aliança, e venerado como tal.

Jepp sabia que a realidade era um pouco mais complexa do que isso, mas nada ganharia de bom expondo seu conhecimento para os crentes. Há quem não queira ver sua concepção de mundo questionada, mesmo com o uso de argumentos sólidos; principalmente, se fizesse parte da religião oficialmente reconhecida, como Maren.

A meio caminho da planície e das primeiras construções dos arrabaldes da Cidade Morta, o grupo parou para comer o farnel que transportava, à sombra de um grupo de esculturas brancas, aparentemente uma alegoria representando criaturas míticas subjugando e esmagando seres humanos.

- São o peso dos nossos pecados - explicou Maren para as crianças junto dela.

Jepp estava convicto de que a cena ali retratada era real. Os humanos usavam roupas estranhas, do mesmo tipo que ele já vira em livros e imagens encontrados entre as ruínas. Se aqueles eram os Antepassados, haviam enfrentado um inimigo extremamente poderoso - e perdido.

[Continua]

- [24-03-2020]