A ruiva do 782
Um dia comum, como todos os outros...me pus de pé, tomei meu café ligeiro e sai pedindo a benção da minha mãe, que já estava na cozinha desde muito cedo cuidando de fazer as quentinhas dos operários, de uma empresa de construção civil. Como de costume, ela me dava a benção e sempre dizia: “Mantenha a visão fixa, filha! Tenha cuidado, essa cidade anda perigosa demais”, e eu sempre revirava os olhos, pois sempre achei um exagero da parte dela. Dei uma última passada pelo espelho, dando uma ajeitada no cabelo, e sai batendo o portão, visto que eu já estava atrasada. Desci a escadaria correndo, e lá estavam os mesmos moleques que sempre ficavam ali, fazendo o “comércio”, deles. Eu já era acostumada com a presença deles, e até mesmo já os conhecia da comunidade, afinal eu cresci ali, junto com eles. Mas digamos que eu tenha tomado um rumo diferente, e sempre é um incômodo ter que passar, e perceber que se voltavam para me ver, e faziam algum comentário, que eu não conseguia entender o que era, e não me importava saber também. Já cheguei no ponto, juntamente com o 782, busão que me deixava a cinco quadras do meu trabalho. Como sempre, Lotado! Entrei, passei pela catraca, e fiquei em pé mesmo já que não tinha lugar para sentar-se. Ali estavam, as mesmas pessoas, de sempre...que sempre estavam no ônibus na mesma rotina que eu. Mas percebi que a garota do cabelo ruivo, não estava. Ahhh! deixe-me explicar, essa garota sempre me marcava mais, o cabelo ruivo dela era lindo, e ela sempre estava no 782, trabalhava na Hostinol, uma loja de granfinos. Mas nesse dia, ela não estava, pensei que certamente poderia estar de férias, ou até mesmo ter sido demitida, ela sempre voltava também no mesmo horário que eu, no 782 de 21hs. Bom, parece bobo...,mas ausência da garota ruiva me intrigou, é como se eu a conhecesse...fazia em média um ano que estávamos no mesmo ônibus, nos mesmos horários, mas nunca trocamos uma sequer palavra. __ AHAHAH, ironia do destino! Eu me preocupando, com uma desconhecida__
Desci do 782, comecei a caminhar até meu trabalho, e senti que alguém vinha caminhando atrás de mim, passos pequenos, e calçados que faziam barulho como aqueles de quem faz sapateado. Não me excitei, comecei a caminhar um pouco mais rápido, quando de repente, uma voz rouca, como de quem fuma uns dez maços de cigarro por dia, diz: “Moça, você deixou cair isso”, me virei ainda assustada, e se tratava de um homem alto, um pouco mais de 40 anos, bem vestido, com um terno cinza e perfumado...e estendia a mão ainda fechada, para me entregar algo. No automático, abri a mão para pegar o que ele iria me entregar, e se tratava de um escapulário, de Nossa Senhora que eu sempre carregava comigo, e em um impulso agradeci e sai andando com o escapulário nas mãos, dizendo obrigada sem olhar no rosto do homem.
Chegando ao trabalho, já estava atrasada... todas as telefonistas já estavam em seus postos, e eu me justifiquei com o supervisor devido ao atraso do ônibus. Ainda com o escapulário na mão, simplesmente o coloquei sobre a mesa, ao lado do computador, e comecei a trabalhar, incessantemente. Ao final do expediente, como de costume...fui ao banheiro social do prédio, cujo qual havia um espelho enorme, que eu gostava de retocar meu batom, e arrumar meu cabelo. Quando, em um olhar abaixo do pescoço percebo que estou com meu escapulário, mas não me lembrava de o ter colocado, saí correndo pelos corredores da empresa, até chegar em minha mesa, e lá estava o escapulário que o homem engravatado havia me entregado. Mas como pode? Será que era de outra pessoa? Fiquei intrigada, olhos atentos...peguei o escapulário que estava sobre a mesa, e nele havia alguns fios de cabelo ruivo enrolado, em meio a Nossa Senhora, fiquei em estado de choque. Será que era real? O homem de terno era real? O escapulário era real? Não sei! Em um gesto automático, peguei minha bolsa e deixei o escapulário sobre a mesa novamente, e sai rumo ao ponto de ônibus. Chegando lá, eu estava tão pálida quanto um cadáver, minhas mãos estavam frias, e em uma olhadela rápida, vi que passava na TV, do bar que ficava do outro lado da rua, uma reportagem sobre o desaparecimento de uma moça, quando vi quem era, meu mundo desabou. Realmente, estou ficando louca? Será que era um sinal dela pra mim? Era a ruiva do 782, que na foto divulgada no jornal, estava com um escapulário de Nossa Senhora, exatamente como o meu, exatamente como o que o homem engravatado havia me entregado. Chegou o 782, desse horário, já era mais vazio, entrei ainda em pânico, passei pela catraca e me sentei, trêmula...assustada, olhando fixamente para o piso, quando em um olhar despercebido, ali estava o sapato , tipo daqueles de fazer sapateado, a barra da calça cinza, fui subindo o olhar... e era o mesmo homem que havia me entregue o escapulário, meu olhar se encontrou com o dele, e ele com um sorriso enfumaçado de cigarro, disse __”O escapulário fica bom em você, não o perca”_, eu fiquei ainda mais assustada, queria pergunta-lo sobre aquilo, queria o questionar, mas eu perdi a fala, a reação.
Desci do 782, ao chegar no meu ponto, e comecei a andar o mais rápido que eu podia, virando uma esquina e outra...quando senti que pequenos passos, com um barulho daqueles sapatos de quem faz sapateado, começou a me perseguir, lembrei da fala da minha mãe: “Mantenha o olhar fixo, filha!”, desta forma eu não olhava para trás, e aumentando cada vez mais os passos sentia que os passos que me seguiam, ficavam cada vez mais ligeiros, quando senti algo me puxando a garganta através do escapulário, eu era enforcada e arrastada até um beco escuro, onde a voz rouca falava: “você é só mais uma”, e minha respiração sumia, minha visão começou a se perder, e junto com ela se perdia a minha dignidade. Sim! Eu era só mais uma, só mais uma para as estatísticas do feminicídio, assim como a ruiva do 782!E a fala da minha mãe, vinha em minha mente: “Essa cidade anda perigosa demais”, e dessa vez eu revirei os olhos, que nunca mais se viraram de volta...