BRINCANDO COM DEUSES?

Dirigindo meu carro, em algum lugar remoto e silencioso; quando, de repente, tudo é tomado por uma luz, que era tão densa, mas tão densa, que cheguei a pensar que ela estivesse carregando-me pra algum outro lugar e talvez estivesse mesmo. De algum ponto podia se ouvir um suave som, como de uma máquina.

Sem mais nem menos a luz começou a se dissipar e consegui ver; era algo como um redemoinho, sobre uma montanha; cintilaram as últimas centelhas de claridade e tudo voltou ao normal. Se é que se pode chamar aquilo de normal.

Quando os meus olhos se acostumaram, vi, diante de mim, um ser que mais se parecia uma criança de luz. Era uma loira, mas era, também, pretinha, de pele morena, tinha cara de japonesa, no entanto, podia-se até dizer que se parecida com uma índia que tinha em seus olhos todas as cores dos olhares do mundo. Não sei como isso foi possível, mas era assim mesmo.

Ela me diz:

-Vem! Vem! Vem logo!

Numa velocidade estonteante, deixando um rastro de um iluminado amarelo ouro, sumiu; e eu segui mais ou menos o rumo.

Quando a encontrei estava sentada em um feixe de luz dourado que parecia um anteparo dividindo uma claridade ofuscante e intensa de uma escuridão palpável e espessa. A luz não penetrava um milímetro na escuridão. É como se fosse uma parede.

Perguntei:

- Que lugar é esse? O infinito?

A criança franziu o cenho, como que preocupada e disse:

- Lugar, o que é lugar?

- Sim, lugar. Por que? Você não sabe o que é?

Ela disse:

- Deixe-me pensar. Ah, já sei. O que você chama de lugar, de infinito, nós chamamos de sentimento ou possibilidade. À medida que você vai aprendendo a sentir, vai ganhando conhecimento e poderá brincar mais além do sentimento e das possibilidades.

-Brincar? Mas isso é para criança.

Ela era hiperativa, enquanto falava, acenava para tudo o que se movia. Não parava em nenhum canto e jogava brilhos de luzes em tudo o que via:

-Olha, lá de onde você vem, tem o tal de poeta. Ele quando vem pra cá, já fica logo credenciado para conhecer além das fronteiras do sentimento e das possibilidades do jardim. Dizem que é porque, mesmo lá, ele já vive esse sentimento e acaricia essas possibilidades. Os outros que vêm são paradigmáticos, trazem modelos e têm que brincar muito para mudar. Os poetas não. São sintagmáticos; eles realizam; já vivem brincando disso e daquilo, por isso conseguem logo ir brincar além do sentimento e das possibilidades.

- Um olhar foi um dia lá onde você chama de lugar e viu tudo. Mas não contou tudo não. Disse que não era muito interessante.

- Que estranho... Nem perguntei quem é esse olhar... E as lembranças de onde eu vinha não eram tão claras.

Distraí-me um pouquinho só e a criança já havia desaparecido de novo, mas deixara um rastro de luz de outra cor. Eu a procurei e a encontrei de novo; novamente sentada no feixe de luz dourado que mais parecia uma poltrona de fogo.

Perguntei:

- Porque é que seu rastro mudou de cor?

Ela, de novo franziu o cenho:

- Cor? O que é que é isso?

Eu, para mostrar conhecimento científico, disse:

- A cor é uma percepção visual provocada pela ação de um feixe de fótons sobre as células especializadas da retina, que transmitem através de informação pré-processada, no nervo ótico, impressões para o sistema nervoso.

Ela deu uma gargalhada tão gostosa e forte que repercutiu em toda a abóbada celeste. Mais parecia uma orquestra sinfônica. E as cores do som podiam ser vistas em todos os cantos.

-Há, há, há, há, há, há! E para que é que isso serve?

- Ora, é pra a gente poder ver.

- Nós aqui não temos nada disso e podemos ver de tudo. E ria de se lacrimejar. Havia algo de muito engraçado na minha explicação científica. Suas lágrimas caiam e rolavam pelo chão como pedrinhas cintilantes e uns passarinhos de vidro chegavam em voo rasante e as devoravam.

Caminhou do meu lado cantando uma canção desconhecida que fazia abrir umas fendas no tempo, onde apareciam, rodopiando, histórias e sonhos.

Meu coração palpitava, querendo pegar essas nuances de música viva, mas parecia que, ao ver a música ao invés de ouvi-la, os paradigmas acariciados pela minha existência ficavam cada vez mais quebrados e instáveis.

- Olha ali! Mas o que é aquilo?

- É o que você vê.

Alguns velhos brincavam em um parquinho sob o olhar atento de várias crianças que pareciam fazer um tipo de crochê e não tiravam os olhos dos velhinhos.

- O que elas estão fazendo? Perguntei espantado.

- Elas estão costurando as existências rotas e ensinando as brincadeiras que eles têm que brincar.

Ela me mostrou um de cabelos bem branquinhos e disse:

- Aquele ali tem muito que brincar ainda.

Eu, encabulado, boquiaberto; Questionei:

Mas brincar não é coisa de criança? Como é o nome dele? Por que é que ele tem ainda muito que brincar?

- Vou te responder o que sei: Primeiro não sei o que é criança, nem por que é que brincadeira é só para elas. Depois você pode me dizer o que é nome.

E falava que nem uma matraquinha linda, fazendo gestos com as mãos e com o corpo, como se tudo fosse poesia. E era mesmo:

- Quanto ao fato de eles terem que brincar; é porque eles brincaram muito pouco lá onde eles moravam; lá onde existem lugares que você falou, lembra? Não conhecemos.

E continuava falando e encenando como uma cantora de ópera:

- É o único castigo para eles. Brincar, brincar e brincar. Aquele que você me perguntou, está brincando muito... Muito... Muito... Ele era o que vocês chamam de papa e provocou a tal da inquisição.

- Está muito alegre para tecer a teia da existência dele, ela rasga muito fácil. Ele tinha muito poder. Não soube usá-los.

Eu, que achei que estava começando a compreender, perguntei:

- Por que, muito alegre?

Ela me disse:

Espera aí! É a minha vez. Primeiro me diga o que é nome.

Lá fui eu de novo para a explicação científica:

-O nome é um vocábulo ou locução que tem a função de designar uma pessoa, um animal, uma coisa ou um grupo de pessoas, animais e coisas.

Ela caiu no chão com a mão na barriga, e rolava e ria; as lágrimas pulavam para todos os lados e os passarinhos de vidro em voos rasantes, as amparavam sem que elas tocassem no chão.

- O que você chama de nome não existe! Aqui, depois de muito brincar, todos ganham um novo olhar. É isso que mostra quem e o que são. Nunca falharam. Todos somos olhares, cada um tem um e cuida muito bem onde os depositam.

- Porque é que os pássaros comem as lágrimas?

É porque um olhar daqui, o único credenciado, foi até lá uma vez, onde você chama de lugar. Voltou falando que não se podem derramar as lágrimas, que elas são valiosas. Não me pergunte por quê.

- Quanto a ser muito alegre tecer a teia existencial do cabelo branquinho, quem disse foi o olhar superior. Aquele que tudo vê. Ele falou que quanto mais se brinca mais se aprende; que aquele papa vai ficar muito sábio.

- É... E parece que você disse sobre pessoas animais e coisas? O que são coisas?

- É muito simples: Qualquer objeto inanimado. Aquilo que existe ou pode existir. Realidade; facto: “essa é que é a coisa”. Negócio: “tenho uma coisa a tratar”. Ato. Causa.Espécie.

Dessa vez não houve gargalhada, a criança engoliu bufando, colocou a mão na boca. Escapou um sopro forte de ar por entre os dedos, mas ela segurou o riso. Os passarinhos de vidro, que já estavam de prontidão, perderam a viagem, ficaram voando em redor, sem as pedrinhas cintilantes de lágrimas boas para comer.

Vem cá! Vem cá! Dá uma olhada!

Eu não sabia o que dizer. Parecia um momento de distração ou descontração. As crianças que cuidavam dos velhos no parquinho riam de se esborrachar. Enquanto as agulhas que elas usavam para tecer as existências rotas faziam-lhes cócegas; e os objetos do parque brincavam com os velhinhos que também riam como se estivessem em um show de comediantes, rolavam no chão. Até o papa com seu cabelinho de algodão rolava no chão em gargalhadas tão gostosas que até peidava.

Depois ficamos sabendo. Era uma brincadeira tão engraçada que tudo acabou ficando naquele inexplicável frisson.

Perguntei o que era aquilo, ela disse:

- É assim; tudo é vida, não existem coisas animais e pessoas por aqui. Todos os olhares se voltam para a vida. Ela é a dádiva, o fruto do olhar superior.

- Então por aqui tudo é alegria? Tudo é bom? Tudo é bonito?Tudo está sempre bem? Perguntei eu na minha sapiência acadêmica.

Ela pela primeira vez ficou séria. Olhou-me longamente e disse.

-Tomamos muito cuidado. Ouvimos dizer, pelas palavras do olhar superior, que lá onde você chama de lugar, tentaram buscar a alegria a qualquer custo e tiveram que se contentar com a tal da tristeza, mãe das lágrimas que não deixamos cair por aqui. O mesmo aconteceu com o bom, com o bem, com o bonito... Eles têm em sua própria essência, o germe da oposição. Começam com eles os juízos de valor que trazem os velhinhos para reaprenderem a brincar e coloca a gente na prazerosa função de tecer os fios das suas existências rotas.

- Por que você não está tecendo fios de existências rotas?

- É porque a minha função é receber os que chegam para estes sentimentos e lhes mostrar as possibilidades.

- Por que só os velhinhos brincam ou têm que reaprender a brincar?

- Bem que se vê. Você ainda é pessoa, deve ter até um nome, não é um olhar. Só conseguiu ver velhinhos. Tá certo eles são a maioria por aqui. Quando você for um olhar, vai poder ver de tudo. Eles demoram muito para reaprender, por ter deixado a brincadeira e envelhecido sem ela. E nos dão a chance de brincar mais com eles. Os outros, logo esquecem esse tal de nome que você disse, e passam a ser cada um o seu olhar; e ganham a joia do sentimento e das possibilidades que para você é o infinito.

- Tem uma festa. Quer ver comigo?

- Claro que quero. O que é que é?

- Casamentos! Muitos casamentos! Milhares de casamentos!

E rodopiava como um peãozinho laborioso, soltando fagulhas de luzes de todas as cores; dançando algo parecido com valsa:

- Vem cá ver! Vem! Vem!

Passamos por uma espécie de cascata de luz multicolorida que descia perene e maravilhosa. Do outro lado, milhares de crianças de luz, em duplas deixando seus rastros, cada um em uma tonalidade diferente, que só eu chamava de cor; para eles era como tudo, não tinha definição para não se criar limitações. Eram como a poesia de Manuel de Barros.

Havia alguns vestidos de uma luz azulada. Esses abençoavam os casais com um aceno, em uma cerimônia simples e rápida. Depois de um beijo os casais se separavam, voando cada um em uma direção, deixando um rastro de luz que permanecia por alguns minutos e se desfaziam em centelhas que choviam sobre os outros como confetes.

Perguntei de novo: Já estava envergonhado de tanta pergunta, mas perguntei:

- Eles casam-se e se separam, nem vão morar junto?

- Quando dois olhares se cruzam, o sentimento de querer para si é o menor de todos. De modo natural se amam; e dois olhares vão, gradativamente, se tornando um a tal ponto que o sentimento vê milhares de possibilidades. Cada um, através do casamento, dá ao outro, pela força do amor que vem do olhar superior, a licença de ser cada vez mais livre. E assim, vão possuir novos jardins para novas brincadeiras, para tecer milhares de fios de novas existências rotas.

Ou você pensa que é só esse sentimento que nós temos? Esse é o que você, apesar de não ser um olhar, pode ver.

Eu já estava gostando da brincadeira, não deu nem para sentir saudade da minha terra. Aliás, não me lembro de ter ao menos pensado nela enquanto estive lá no coração do sentimento.

Perguntei para a menina de luz, quase gritando, pois ela já estava longe de novo; aliás, era assim mesmo, nunca parava quieta:

- E eu? Quando vou começar a brincar?

Ela respondeu:

- Vem cá! Vem cá! Vem logo!

Sempre acenando e declamando a vida em poesia; dava para ver as centelhas que ela deixara no vôo até lá; eu as segui, elas pareciam neve caindo, mas não era não; eram luzes.

Ela fez aparecer diante de mim, como se fosse uma imensa tela de cinema, os eventos mais catastróficos, tanto os naturais, como os cometidos por todos nós; mostrou-me, também, todas as lágrimas derramadas na terra, por todos os séculos de nossa existência. Eram como imensos oceanos de valiosas lágrimas, que, não se sabe por que, deixamos escorrer aos cântaros.

Eu ainda estava absorvendo as imagens, quando a luz espessa e o suave som de máquina tomaram, de novo, conta de tudo o que se via; no fundo do redemoinho de luz que se dissipava, podia-se ouvir a voz da menina, que dizia:

-vai, ensina aos homens de bem como se brinca, como se protegem as lágrimas para que elas nunca mais voltem a cair!

Meu carro estava ali, como um cavalo alazão, encilhado, pronto para conduzir um herói para a realização de alguma façanha, que, até naquele momento, eu não sabia muito bem qual era, porém, imaginava.

carlinhos matogrosso
Enviado por carlinhos matogrosso em 21/01/2020
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