Acerto de contas

Hoguina não era muito ligado em política, mas quando viu o torso de Sanazaro encher o telão interativo que ocupava a parede dos fundos do seu apartamento-cápsula, lembrou-se que, daquela vez, tinha um bom motivo para exercer seu direito cívico. Sanazaro, naturalmente, discordava desta presunção.

- Meus concidadãos - conclamou o velho político, expressão tensa. - Estou aqui novamente para lhes pedir que não votem em mim nas eleições da próxima semana! Há outros candidatos com pontuações muito mais expressivas na Classificação Geral! Só para lembrar de dois: Masafor e Henodal!

- Nem Masafor nem Henodal tiraram meu emprego - rosnou Hoguina, sentado na cama-sofá de solteiro que podia ser recolhida à parede quando não estava em uso.

No telão, Sanazaro piscou por trás dos óculos cenográficos sem grau que usava, supostamente para lhe dar um ar mais inteligente. Ou menos estúpido, segundo seus detratores.

- Olá, Hoguina! Você me deu seu voto de confiança por três vezes, e creio ter correspondido em cada uma daquelas instâncias - respondeu no telão um Sanazaro gerado por um algoritmo de inteligência artificial em tempo real. Este Sanazaro estava sorridente, como nos velhos tempos. - Agora eu peço que me ajude, abstendo-se de votar ou dando seu voto para qualquer um dos outros à minha frente na Classificação Geral!

- Creio que minha tendência de votar em você não mudou, Sanazaro - replicou Hoguina, começando a limpar as unhas com a ponta de uma tesourinha.

- As circunstâncias agora, são outras, Hoguina, você sabe disso! - Exortou-o o Sanazaro do telão. - Onde foi que eu falhei com você?

- Onde foi que você falhou com o povo dessa cidade, Sanazaro? - Retrucou Hoguina, apontado-lhe a tesourinha de modo ameaçador. - A maioria de nós está sem emprego, desde que a fábrica de comida sintética foi 100% automatizada. "Não daremos nossos empregos aos robôs", não era esse o seu slogan de campanha? O que você fez com ele?

No telão, um ar de compreensão inundou o rosto redondo do Sanazaro ilusório.

- Sim, lembro-me bem disso, Hoguina; mas você deve convir que a não automação da fábrica estava condicionada a uma série de contrapartidas, as quais deveriam ser obedecidas pela população. Como, por exemplo, a redução voluntária nas taxas de natalidade. Isso, infelizmente, não foi atingido, e o Governo Central tem a última palavra nestes casos.

Hoguina apenas balançou a cabeça, como se concordasse, mas o que disse foi bem diferente:

- Você poderia ter ao menos LUTADO por nós, Sanazaro! Mas está muito longe daqui, não é?

Perante o silêncio do rosto no telão, complementou:

- No que depender do meu voto, e do de todos que conheço nesta cidade, você vai acabar esta votação em primeiro lugar, Sanazaro. Talvez nunca recuperemos nossos empregos, mas você vai voltar a ser apenas um cidadão comum!

E dedo em riste:

- E nem pense em voltar para cá: aqui não há empregos, principalmente para gente como você!

- [11-01-2020]