Cuidado com Armadilhas

Naquele lugar, eu percebia como todo mundo me seguia com os olhos. Eu já esperava isso. Ouvi Ab’par, da Empresa Ocidental, conversando com alguém, “Olha, o Ba’laa veio gastar o que restou da pobreza dele”. E eu pensei, sim, vim mesmo, seu miserável.

Era o primeiro leilão em uma década, então não era estranho existirem tantos lotes e tantas pessoas interessadas, abarrotando os corredores e se exibindo por aí.

Odiava estar ali. Eu estava devendo para metade dos presentes, e já estava cansado deste negócio de Colonização Comercial, de ficar dando lances. Porém, um lote me chamou atenção. Valia o risco estar ali, afinal.

O pequeno planeta marítimo Lote X10 era uma exploração fácil, rico em água facilmente potalizável, e, a princípio, sem uma espécie nativa interessante. O mais imediato: era longe de tudo e todos.

O relatório anexo ao lote não informava nada detalhado sobre seus habitantes. Veja bem, geralmente estudamos a fundo os habitantes dos planetas os quais vamos ocupar, e se não tinhámos informações, de duas uma: ou os habitantes eram atrasados, a ponto de não poluírem o espaço com barulhos que poderíamos espiar, ou eram inteligentes o suficiente a ponto de saberem que estão sendo espiados, e então se esconderem.

Bem, três séculos nesse jogo me diziam que este seria o primeiro caso. Essas espécies marítimas são as mais fáceis do universo. Uns moles. E se eu estivesse errado, que seja.

O primeiro lote, o maior interesse de todos ali presentes, era um satélite natural, abarrotado de água congelada, orbitando um grande planeta gasoso qualquer. Bastante riqueza na mão. Mas estava em um sistema solar já habitável por um povo com certa tecnologia incipiente, daquelas espécies primatas agressivas. Muito trabalho para um velho como eu. Sobretudo, porque, se estourasse uma guerra, eu aguentaria ter que assinar mais documentos e mexer com toda aquela burocracia da Assembleia, sobre ocupações longas, solicitações de armas e militares, e o pior, prestação de conta.

Quando anunciaram o X10, dei o primeiro e único lance. O lance máximo, sem lucro algum, sem chances para retrucarem. Eu não estava comprando um empreendimento, mas uma aposentadoria. O bastante para viver meus últimos 100, 120 anos de vida. Viveria no perrengue, ok, mas afastado de todos esses almofadinhas.

....

Os serviços de escolta da Assembléia eram custosos, com seu exército pomposo e naves exageradas. Contratei uma pequena frota particular, de alguns párias qualquer. Foi um bom negócio. E foi mais fácil do que eu pensava. Simplesmente, chegamos e ocupamos.

Certo, fizemos bastante sujeira e barulho desde o início, mas o único problema que tivemos surgiu alguns anos depois após a instalação da colônia. Alguma reclamação local sobre o lixo que estávamos despejando por aí.

Alguns habitantes locais tentaram nos sabotar, de forma infantil. Pensei em retrucar, mas resolvi negociar com aqueles escamosos. Não mexeríamos em nada no grande oceano – além de pegar e processar a água, o que convenhamos, não faltava – e eles nos deixariam em paz.

Era um incomodo ter que processar nosso lixo, e ficar enviando para fora. Também acordamos não pescar, por assim dizer... Um incomodo a mais, termos que sintetizar proteínas com gosto de metal. Devo estar velho mesmo, em aceitar essas condições.

...

Não tínhamos quase contato nenhum com as capitais ou com outras colônias, nem mesmo a Assembleia enviava alguém para aquele local.

Ficamos quase 80 anos em pleno isolamento, apenas trocando recursos, e despachando nossa produção.

A operação era simples: processávamos a água, deixávos ela potável, e a cada três ou quatro meses enviávamos ela para Posto Comercial distante, mal ocupado.

Minha equipe era reduzida ao máximo, graças a automatização de processos.

A assembleia não gostava muito de automatização, dado a quantidade

de indivíduos a esmo por aí. Alguma coisa sobre desemprego e revoltas. Era por isso que nossa espécie gosta de ocupar outros lugares. Muita gente sobrando. Mas, enfim, era para isso que eu estava longe. Ficar longe de palpites e questões políticas.

Foi com muito espanto quando me chamaram, com urgência, para anunciar que um tal Alis’ton, enviado da Assembleia, vinha nos visitar, e já estava pousando sobre nosso teto.

Meu sossego de 80 anos, terminava.

...

Mandei prepararem um jantar rebuscado, nos moldes da Assembleia, matando duas kaprès que arduamente mantínhamos em cativeiro, econdido dos habitantes locais. Uma relíquia. Queria impressionar e amenizar quaisquer problemas, que, por certo, estava vindo.

Assim que vi o representante da Assembleia entrando no recinto, estendi todos os meus braços em saudação.

- Bem-vindo, senhor Alis’ton. Estava ansioso para rever meus caros colegas da Assembleia. É uma inestivável honra ter a graça de sua brilhante presença. De certo, nosso planeta está iluminado. - Eu disse, ardendo de ódio, mas com uma perfeita máscara amigável. Contudo, não consegui esconder a irônia. Nunca conseguia.

- Senhor Ba’laa, sabemos que sua relação com a Assembleia não é a melhor, sobretudo por seus métodos não usuais. Mas precisamos conversar, de forma sincera, sem rodeios. Por favor – Ele respondeu, seriamente.

Estreitei os olhos. Pela quantidade de emblemas em seu uniforme, ele era de alta patente. Alguém importante, o que era estranho. Eu conhecia todo o alto escalão – já fui dele. Esses 80 anos que estive fora não era tempo bastante para alguém novo ascender tão rápido.

- Claro, claro. Então deixe-me começar. Espero que sua visita seja apenas porque você estava passando pela região, precisava mijar em algum lugar, e que vá embora assim que apreciar o jantar.

Alis’ton não se intimidou. Esses jovens, são tão cheios de si. Na verdade, ele pareceu triste. Inesperadamente, triste.

- Sim, faz muito tempo que tenho a oportunidade de comer algo assim... Ba’laa, você esteve fora, buscou ficar fora. Aceitamos e deixamos você de lado, pois sua presença além de desagradável, tumultuaria a Assembleia, ainda mais da situação de fragilidade que nos encontramos. Estamos desesperados.

Fiquei espantado que um membro de alto escalão, de fato, fosse sincero como disse que o seria, mostrando inclusive fraquezas da Assembleia. Mas fiquei mais espantado ainda, em saber que a Assembleia agora se auto-declarava frágil.

- E que situação de fragilidade é essa? - não pude deixar de perguntar. Seria uma isca? Para que?

- Guerra Ba'laa. Guerra.

- Guerra? Vivemos em guerra, tomando o mundo dos outros. Guerra é nosso negócio, nossa história e nosso motivo de existir. Nossas crianças nascem pensando em guerra. A Assembleia nunca ficou... frágil, por causa disso.

- O senhor se lembra de quando comprou esse planeta? Lembra do outro lote do mesmo leilão?

Assenti e relembrei verbalmente

- O satélite gelado? Lembro.

- O sistema dele já era habitado. Você leu os relatórios?

- Sim. Um povo terrestre, primatas. Um tipo agressivo. Se não me engano, só dois planetas ocupados por eles. Contando desde o Sol deles, ocupam o terceiro planeta, azulado, e o quarto, avermelhado. Não era um povo eficiente, em termos de energia. Provavelmente, eles se destruirão sozinhos.

- Assim pensamos. Não demos muita atenção, mas eles atacaram nossas primeiras bases de exploração e sondagens profundas já no satélite. Declararam que o Sistema era deles. Foi um ataque inútil, sem efeito, claro. Mas resolvemos ocupar os planetas deles também, ambos. Eles possuíam algumas cidades em órbita, mas não demos atenção. Elas eram muito pequenas e dependentes dos planetas, para viverem sozinhas. Pensamos que ocupando os planetas, essas cidades-satélites minguariam.

- Imagino que foi uma operação cara. Ocupar dois planetas plenamente habitáveis. E para que? O grau de poluição deles não compensaria. Quem era o responsável pelos custos?

- Um consórcio, de vários magnatas. Mas não quero falar sobre seus concorrentes. Por favor, não me interrompa mais, esses assuntos econômicos não importam.

E então ele esperou alguns segundos. Ficamos ambos em silêncio, e continuou.

- Mas sim, a operação foi cara. Não por causa da ocupação inicial, já que conseguimos entrar facilmente. Mas porque não esperávamos o que aconteceria logo em seguida. Eles simplesmente, se explodiram.

Fiquei curioso, e não pude deixar de interromper

- Como assim?

- Exploriram o próprio planeta deles. Dizimaram sua própria população e infraestrutura para nos atingir. Utilizaram um tipo de armamento nuclear, antigo até mesmo para eles, provavelmente guardado no subsolo por centenas de anos, mas eficaz, em termos de tornar o solo inabitável para qualquer ser.

Não pude deixar de rir, mesmo que contido.

- E a tal Inteligência da Assembleia não previu isso? Não examinou as táticas de guerra? Não é comum um povo suicida, mas com certeza na história deles haveria precedentes.

- Na verdade, sim. Parece que eles chamam isso de terra arrasada. Mas não esperávamos algo... naquela escala. Pensamos que eles tentariam contaminar o satélite alvo, algo assim. Talvez se focar em poucas áreas. Nunca vimos isso, em milênios de ocupação, de milhares de civilizações, um suicídio nessa escala.

Era verdade, eu tinha que concordar. Provavelmente eu não pensaria nisso. Não de imediato. Mas então perguntei:

- E a Assembleia não poderia simplesmente descontaminar os planetas? Reocupar? Aproveitar que eles mesmos se reduziram?

A vantagem numérica sempre foi a nossa maior vantagem. Na verdade, somos tantos, nos reproduzimos tantos, que podemos nos dar esse luxo.

- O senhor deve entender melhor do que eu os motivos econômicos por trás disso. Seria a escolha da Assembleia, um dinheiro sem retorno, mas criaria uma situação estável. Mas a Empresa, o consórcio de magnatas, resolveu que os custos seriam altos de mais. Resolveram devolver o lote. Devolver o lote, abandonar as ocupações... finaceiramente era mais vantajoso.

Quis retrucar o jovem militar. É impossível falar de Guerra sem falar de Econômia. Logo imaginei que eu seria escolhido pela Assembleia em formar um novo grupo e manter o projeto. Quis me adiantar a qualquer oferta:

- Bom, nem pense em me chamar para ir explorar aquele satélite e limpar a bagunça no resto daquele sistema solar. Estou fora de jogo, velho, tive prejuízos de mais e....

Alis’ton piscou os olhos várias vezes, o equivalente a mostrar indignação.

- Não, o senhor ainda não está entendendo a gravidade. Resolvemos abandonar a exploração. Olha, tudo isso que estou falando aconteceu logo depois de sua saída. Mas em 80 anos, aquele povo se reestruturou um único objetivo. É um sentimento difícil de traduzir para nós, mas que eles confundem com Justiça. Empregaram seus recursos em entender tudo que deixamos para trás, inclusive nossos sistemas de navegação, escudos, armas. Foi mais uma empreitada suícida por parte deles, pois, tais esforços, com certeza demandaram sacrifícios científicos em outras áreas. Demorou 80 anos, mas eles nos atacaram. E perdemos.

Fiquei bastante impressionado. Já fomos antes atacados, claro. Infinitas vezes. Tivemos várias colônias revoltosas. Nenhum ataque foi, até então, significativo. Esses ataques, e conhecer milhares de culturas, nos fez se adaptar a táticas de guerra diversas.

Apenas um único povo, um daqueles malditos seres telepatas raríssimos, conseguiu nos infringir algum dano. Mas um termo de paz foi assinado, e honrado.

Imaginei que uma civilização como aquela de primatas, após uma perda tão grande, e em apenas 80 anos de preparo, não fosse uma ameaça real. Possivelmente, a Assembleia também o pensou.

- E como foi esse ataque? - Não conseguia não me envolver. Por pura curiosidade.

- Um ataque estranho. Veio uma nave, se assim podemos chamar, para cada grande planeta colônia-capital nossa, e para nosso próprio planeta nativo. Seis. Imagino que eles tenham fundido tudo que puderam nelas. Não eram grandes, mas eram pesadas, botaram tudo possível na couraça. Eles conheciam nossas armas, que não evoluíram muito em 80 anos, então escolheram bem os materiais. Rechearam cada nave com aquelas bombas nucleares antigas. E mandaram para cima de nossos planetas. Começamos a atirar nas naves, que resistiam bem aos ataques.

- Parece uma medida desesperada, até demais. Com certeza havia algum truque.

- Também achamos. Conhecíamos suas bombas e conseguimos as sensar, sabíamos que não faria grande estrago mesmo se conseguissem chegar em solo, mas pensamos que poderia ter um novo tipo de arma lá dentro, escondido. Uma bomba evoluída mascarada.

Após um momento de silêncio, e então continuou

- Em pouco tempo paramos de atacar e resolvemos interceptar. Na verdade, era nossa ideia desde o início. Apenas fingimos entrar no jogo deles e testar a fusilagem. Foi bastante fácil a interceptação, atrasamos o avanço daquelas naves a içando com outras naves nossas, muito maiores. Foi como uma simples pesca. A princípio, desativamos todas suas bombas e a isolamos em abrigos. Não havia nada mascarado, eram as mesmas bombas nucleares que eles já tinham desde sempre. Depois, pensamos melhor, e explodimos tais bombas, longe de tudo.

- Parece que ficaram com medo de armadilhas, ein? Mas isso não explica você estar aqui, e nem o que você quis dizer com “perdemos”.

- Quando digo perdemos, quero dizer que a Assembleia, como você conhecia, se desfaleceu. Bem como 70% de toda nossa população. Um número alto o suficiente para colapsar nossa estrutura. Espero que entenda a seriedade da situação agora.

Eu realmente estava assustado. Pensei e pensei, mas não consegui imaginar como a maioria de nossa população foi morta. Alis’ton percebeu meu espanto e resolveu minar o suspense rapidamente.

- A verdadeira engenharia reversa deles não foi sobre a nossa tecnologia, armas, sistemas de propulsão, navegação. Não, foi pior. Foi mais sombrio. Foi quanto a nós mesmos. Nossa biologia.

Eu ainda não entendia.

- Eles criaram uma arma biológica. Pensamos certo: havia uma bomba nova escondida. Mas na forma de um vírus. Cada nave que interceptamos eram muito simples. Não eram tripuladas, não possuíam sistemas de ambientação. Eles criaram um vírus bastante resistente e oculto. Na verdade, um vírus diferente para cada capital, para piorar. Não tínhamos, até então, um processo de descontaminação para contatos não tripulados... pelo menos, não um tão minucioso.

Quando percebemos, já estávamos contaminados e espalhando doenças para todas as demais colônias e naves. Isso foi há dois meses. Eles sabiam, ou apostaram, que interceptaríamos as naves. Demorou três dias para descobrirmos os vírus, altamente contagiosos. Descobrimos junto dos primeiros sintomas. Não tive contato algum. Eu, como você, estava isolado, nos confins. Eu sequer tinha uma maldita patente significativa, ascendi em questão de dias, conforme cada superior meu morria afogado em seus próprios excrementos.

Fiquei sem palavras. Fomos bastante negligentes, sem dúvida. A Assembleia era burra, mas não pensei que tanto. Não esperávamos uma arma biológica, nem a maioria das espécies esperaria. Mas, não podemos dizer que os os sinais não estavam ali. Na cultura deles, na história deles. Eles mesmo quase foram dizimados por doenças. O poder agora estava equilibrado, entre eles e nós.

- Entendo, e agora me explique finalmente, por que você está aqui? – Por fim, perguntei.

- Estamos estudando a cultura deles. E agora entendo o sentimento de justiça deles, o que eles chamam de vingança. Estou em missão de reunir todos com experiência, todos que estavam isolados, e retrucar. Sabemos que eles não irão parar também. Eles têm se articulado com outras civilizações, criando insurgências. Nem mesmo sabemos se aqui é seguro. Mesmo reduzidos, ainda somos fortes... Porém logo o equilíbrio de forças irá pender para o lado deles, conforme alianças novas são feitas. Várias colônias nossas tiveram que ser abandonadas por falta de gente nossa. Sim, eu sei, você sempre defendeu a automatização... Mas de qualquer modo esses primatas são vistos como heróis galáxia a fora. Falaram que o senhor tem bastante experiência em civilizações diferentes. Precisamos de pessoas experientes.

- Que merda. Seria melhor se você viesse dar só uma mijada e aproveitar a comida. Mas se eu topar, o que ganho com isso?

- Bom, sabemos de suas dívidas. Seus credores morreram, na maioria. A Assembleia, no entanto, herdou suas dívidas. Podemos liberar você. Além disso, a razão patriótica deveria ser suficiente.

Eu já não pagaria ninguém antes, e não seria agora que pagaria um governo na iminência de ser extinto por um bando de primatas enraivecidos, afinal, eu não deveria ninguém se todo mundo estivesse morte. Esse tipo de honra que os jovens acreditam, não me cabia mais. Mas, como ele disse, existe um sentimento difícil de definir, até mesmo para nós, Talvorianos. Vingança misturada com Justiça. Mas, sinceramente, meus sentimentos eram contra a Assembleia.

- Claro que aceito ajudar a minha cara assembleia e meu povo - Eu estava melhorando nisso, finalmente consegui esconder minha ironia.

--- continua ---

Thomas J S
Enviado por Thomas J S em 30/12/2019
Reeditado em 30/12/2020
Código do texto: T6830389
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