Fortaleza Digital Parte 1
As noites já não são iluminadas como eram antes do “Domínio”. Fora das grandes Metrópolis, nas poucas fazendas antes existentes, era possível enxergar brilhantes estrelas em um imenso céu negro. Os antigos costumavam se guiar por elas. Navegações, explorações e até mesmo personalidades eram traçadas com base em suas combinações. O mundo era um lugar mágico, envolto a mistérios que perduraram durante séculos, e que hoje, já não existem mais, ou se tornaram mitos, passados de geração a geração, na expectativa de que não se percam no tempo, ou que desapareçam antes de nós.
Hoje os céus são negros como óleo, cobertos por resíduos industriais expelidos das pandemónicas fortalezas digitais, onde a cadeia de produção jamais para. Diferente de nós, as máquinas não precisam dormir, se alimentar e não perdem tempo com hobbies, lazer ou esportes, até mesmo o conceito para elas é algo inexistente. São programadas para a defender o coração da fortaleza, sua fonte de energia. É o que as mantem ativas, em produção.
Quando o “Domínio” se iniciou, alguns humanos fugiram, se abrigaram em bunkers ou nas primeiras bases subterrâneas, por já saberem o que estava por vir. Outros lutaram, e morreram com bravura. Nenhum foi lembrado, nenhum ato heroico jamais será escrito ou cantado. Não houve luta no “dia D”, houve um massacre. A única lembrança deixada, foi que, em um confronto direto, as máquinas não podem ser destruídas, e que não há armas capazes de derruba-las.
Após a “Dominação” nossa vida mudou de forma drástica. Muitos não se adaptaram e morreram. A cada dia o céu se tornava mais negro, e toda a vida dependente de sol passou a desaparecer, as que sobreviveram, logo foram dizimadas pela “Nova era da industrialização”.
A brisa que antes era fresca e refrescante se tornou quente e abafada, e a cada dia, o simples ato de respirar se torna mais árduo. Minhas paradas são constantes, o suor quente escorre por meu rosto, os cabelos estão molhados e grudentos, colando em minha testa, atrapalhando a já ténue visão na imensa escuridão da noite. Não ah tempo para seca-los, para descansar, devo continuar minha missão.
Tomo a rota das montanhas, jamais ousaria usar as estradas para chegar Fortaleza, o que antes era seguro, passou a se tornar suicídio. Por mais que o caminho seja pedregoso e cansativo é o com maiores chances de sobrevivência. Em outros tempos esse mesmo local estaria envolto em vida. Pássaros e arvores dariam som e cor a tudo a minha volta, mas não hoje. Árvores que antes eram verde vivo, não passam de toras escuras e muitas vezes carbonizadas, os animais foram levados para servir de fonte de energia a seus raptores, assim como os que não morreram nos ataques.
Assim com nós, as Máquinas também precisam de energia. Inicialmente elas se utilizavam do sol, mas com a aumento da poluição nem mesmo o sol nos alcançava, foi então que elas passaram a caçar toda a fonte de vida, para dessa forma, utilizar o calor que essas emanavam, como energia para sobreviver, ou para servirem aos seus terríveis experimentos com código genético.
Mesmo do alto das montanhas não é possível enxergar as estrelas ou a brilhante lua. As únicas luzes visíveis são as vermelhas piscantes, situadas em diversos pontos de uma imensa estrutura escura de metal, que se estende até onde os olhos podem alcançar. Em seu centro esta meu alvo, o coração de toda a inteligência, o Vírus.
Chuvas ácidas já são um fator comum, essa é a reação de um mundo que jamais fora projetado para suportar a essa realidade, nem mesmo nós humanos esperávamos algo assim. A resistência montou túneis subterrâneos para proteção e locomoção de curtas distâncias, passamos a viver neles, é mais fácil viver privado dos dias escuros a viver privado da vida. A chuva não é o único perigo no novo mundo, rastreadores passaram a procurar qualquer ser humano na superfície, nem mesmo alguns animais deixam de ser caçados. Apenas aqueles que ficaram por tempo demais expostos as inúmeras fontes de radiação eram poupadas, pois, também se tornavam perigosos por suas novas anomalias. Dentre elas, a agressividade muitas vezes se tornava latente, e nem mesmo as máquinas possuem interesse nessas novas criaturas.
Vivemos sempre escondidos, alguns planejando, outros rezando. Para aqueles que não escolheram lutar, esse é o fim do mundo, aquele descritos nos textos antigos. Esses buscam a salvação por meio da submissão total a sorte, ou a algum Deus misericordioso que terá pena de suas pobres almas. Não seria a primeira vez na história que isso fora utilizado, os fracos sempre buscam o meio mais fácil de lidar com as adversidades da própria existência.
Para aqueles que buscam liberdade, a luta é a única escolha. Grandes mestres do passado já diziam, muito se tem a aprender com o erro e a derrota, e nós aprendemos. Os pucos mecânicos e engenheiros que se salvaram nos ensinaram tudo que sabiam sobre as máquinas, suas fraquezas e resistências, formação e composição dos inúmeros metais que as compõem. Com base nessas informações, elaboramos um treinamento do qual fiz parte, chamado “sombra Cibernética”. Similar as antigas artes marciais orientais, buscamos nos tornar um com a sombra, controlar a intensidade dos batimentos cardíacos e até mesmo o calor corporal, tudo para evitar qualquer forma de sermos detectados pelo inimigo. Todo o treinamento com apenas um propósito, alcançar o coração da fortaleza e desativar o Vírus, pois, caso ele seja desativado, toda a fortaleza desmorona, e assim, vencemos a guerra.
Chego ao pé da colina, onde o calor é insuportável, sei que a missão é suicídio, que mesmo obtendo sucesso, ainda assim não voltarei a ver minha família e amigos. A radioatividade que emana da fortaleza já alcançou meus ossos, posso senti-la, tamanha sua intensidade. O chão, mesmo a mais de cem metros dos muros já é pegajoso como enxofre, e fede da mesma forma. A vinte metros avisto um rastro do que parece ter sido deixado por um Rastreador. Com a aproximação, as deformidades do solo se tornam mais claras, a marca de três poderosas garras dianteiras e uma traseira confirmam minha teoria, os Rastreadores estão a espreita.
Como que buscando tempo para pensar, me vejo correndo em direção a um pequeno aglomerado de escombros, o que é o mais próximo de proteção que encontro neste vale inexpugnável. Não ah mais volta, sei que o único caminho é em direção ao pandemônio obscuro que se encontra diante de meus olhos. Jatos de fumaça são constantemente expelidos dos chifres do imenso titã negro. Essa é sua respiração, dentro dele se procria os maiores assassinos que este velho aglomerado de terra espacial já viu. Eles já foram chamados por vários nomes, Aberrações, Androides, Cyber Dinos, mas hoje são conhecidos como Velocidrones, ou mais popularmente, Rastreadores.
Poucos dias após o “Dia D”, passamos, da pior forma possível, a conhece-los.
Foi uma carnificina. As imagens dos corpos encontrados naqueles túneis me assombram até hoje. Após recebermos um chamado de socorro, fomos rapidamente enviados aos túneis da ala norte em uma rápida missão de resgate. A princípio pensamos ter se tratado de um chamado por engano, tudo se encontrava em um silêncio mortal e cada entrada dos túneis estavam ocultas pela escuridão da noite. Passamos a compreender nosso equívoco ao adentrar nas estreitas passagens que nos levava as várias veias subterrâneas. O cheiro de podridão não nos deixava dúvidas sobre o que havia acontecido.
Os poucos pontos de iluminação revelavam membros e vísceras dilaceradas que se espalhavam pelas paredes e corredores dos estreitos túneis usados como esconderijo por inúmeras famílias inocentes. Aquilo não havia sido uma espécie de reconhecimento, havia sido pura crueldade. Aqueles que lutaram foram rapidamente eliminados, todos os sinais demonstravam que não houve tempo de reação, gargantas foram abertas muitas vezes deixando jugulares expostas, crânios se encontravam no chão, parcialmente esmagados por o que parecia se tratar pesadas patas de algum imenso animal. As crianças e idoso que não podiam se defender acabaram servindo ainda vivos, a macabros experimentos. Seus corpos foram abertos de forma brutal, como se quem o tivesse feito não possuísse nenhum respeito pelo corpo ou pela vida. Larvas já se posicionavam nos fragmentos de carne, se alimentando do que uma vez fora um ser humano.
Durante alguns minutos, que para todos pareceu uma eternidade, ficamos imóveis, apenas observando a carnificina, ainda sem entender quem havia acionado o sinal de resgate. Os corpos já se encontravam no primeiro estágio de decomposição, o que significava que a carnificina teria que ter ocorrido a dias, não nas poucas horas que se passaram.
O silêncio ara interrompido apenas pelo som dos pingos que escorriam do topo dos túneis ao solo. Em meio a todo o silencio conseguíamos imaginar, até mesmo ouvir, nas camadas mais profundas da mente, os gritos e choros daqueles que viviam ali, daqueles que foram surpreendidos pelo ataque. Crianças chorando a perda dos pais, sem saber que não demoraria para se reencontrarem.
Envoltos em pensamento, não imaginávamos o que estava por vir.
De uma das bifurcações dos caminhos subterrâneos, tivemos o primeiro vislumbre daquilo que viria atormentar a mente dos poucos sobreviventes aquela carnificina.
Das profundezas do túnel era possível enxergar apenas o brilho amarelo dos seus olhos, a uma altura de aproximadamente dois metros. O som emitido pela criatura já demonstrava sua animalidade pré-histórica, era um rosnar metálico, porém remontava a um terror primal. De suas mandibulas pendia dilacerado, o que uma vez fora uma criança, um dos seus braços e pernas já haviam sido arrancados do corpo, não restado dúvidas sobre a sua possibilidade de salvação.
A criatura era composta por escuras placas de metálicas, que se estendiam da ponta do focinho até a extremidade da cauda, medindo aproximadamente dois metros e meio de comprimento. Podia andar sobre quatro poderosas patas compostas por três garras extremamente letais, ou também poderia se posicionar em suas reforçadas patas traseiras para um bote letal.
Meio máquina, meio dinossauro, a tecnologia em conjunto com uma espécie que até mesmo a própria natureza fez questão de extinguir. Essa junção foi a responsável pelo maior caçador que a história já presenciou. Híbridos criados a partir de um DNA que nenhum humano foi capaz de codificar, se tratava de um quebra-cabeça impossível de se resolver, principalmente em um mundo coberto de debates filosóficos acerca da moralidade de se trazer uma criatura extinta de tempos remotos. Infelizmente para o Vírus, a palavra impossível, ou os infindáveis debates morais não possuem nenhum significado. Na escuridão dos túneis presenciávamos os primeiros Velocidrones.
A fuga foi o primeiro e o ultimo pensamento de muitos dos Shadows daquela noite. O ataque não veio pela frente, a minha esquerda já se encontrava um soldado com o corpo sendo pressionado contra o solo, por uma criatura idêntica a que se encontrava a nossa frente. O Homem passou do silencio a um grito frenético em questão de segundos, que na mesma velocidade cessou, sendo abafado pelo som do sangue que jorrava de sua garganta, onde um enorme focinho se encontrava encharcado em vermelho. As poderosas patas da criatura terminavam o trabalho, dilacerando os braços do experiente soldado.
A minha direita outro guerreiro iniciou uma serie de disparos contra a criatura a frente, que se posicionava para a investida. Ninguém sabia na época, mas munição comum jamais surtiria efeito sobre aquele metal, mas o instinto de um soldado sempre o mandava atirar.
A criatura passou do preparo a um salto extraordinário em questão de segundos, alcançando e partindo a face de mais um heroico pai de família. A saraivada cessou com o estrondo de ossos sendo partidos, e do leve urrar demoníaco do monstro atacante.
Todo o ataque não durou mais que alguns segundos e já me via perdido, um homem que já esta morto, mas não sabe ainda. A pesar do desespero, meus músculos agiram mais rápido que meu pensamento, passando da imobilidade a uma corrida frenética em direção a saída daquele pesadelo, para outro tipo de escuridão muito mais libertador, de um mundo em caos.