Mas eu quero morrer.

— Vai ser melhor para você. — Eu disse enquanto dirigia.

Ao meu lado meu avô olhava as coisas pela janela. Quando você tem cento e dezenove anos, nada é novo. Meu avô tem essa feição entediada. Suas rugas são pele derretida pelo seu rosto.

Ele como sempre me ignorava. E tossia muito naquela manhã.

Antes de sair de casa sua esposa correu em nossa direção e beijou meu avô, ela já estava com cento e quinze anos de existência.

Ela disse:

— Vai ser melhor assim, querido.

E disse:

— Você vai sentir-se muito melhor.

Ela usava um macacão bege naquela manhã, tinha o cabelo soltos até os ombros e sorria com seus belos dentes esbranquiçados.

Ela havia feito a troca a dois anos.

No carro vovô disse que aquilo era tolice, que não tinha interesse em fazer tal coisa. Falou algo sobre um universo por trás das coisas, sobre uma tal de matrix, coisas de seu tempo.

Vovô já foi um escritor, gostava de contar histórias sobre pessoas pelo espaço e robôs. Certa vez disse que o djavu na verdade era o sinal de que sua vida foi reiniciada em algum momento.

Com sua voz rouca, calma e baixa, ele dizia:

— Às vezes vivemos vidas que ainda estão sendo vividas, por isso temos o djavu.

E dizia:

— Alguém acima de nós as vezes faz uma cagada e reinicia o sistema e nós que pagamos o pato.

Chegando ao centro, meu avô começou a falar mal dos enormes letreiros neons, reclamou da música sintetizada e as caixas de som da loja de móveis tocavam. No caminho diversas pessoas passavam e tiravam uma foto com ele.

Eu disse:

— Como é ser famoso em vovô?

Ele grunhiu, tossiu, se engasgou com a tosse e disse:

— Um bando de idiotas.

E disse:

— Isso é a coisa mais natural do mundo.

Rindo eu disse:

— Já foi natural, agora a moda é outra.

Meu avô estava careca, manchas surgiram em sua cabeça. Suas costas não ficavam eretas. Ele caminhava lentamente, abrindo espaço pela calçada, pessoas paravam para tirar uma foto desse raro espécime. Lentamente, meu avô deslizava pela calçada.

Chegamos em frente à loja. Meu avô deu uma boa olhada na vitrine. Olhou cada modelo que estava exposto.

Ele disse:

— Meu Deus.

Seu rosto de tédio foi trocado por espanto. Ele abriu a porta da loja e correu em direção ao manequim parado no meio da loja.

Com sua mão tremula ele tocou a face do manequim. Passou a mão sobre o cabelo, pelos olhos e boca do simulacro.

Um atendente aproximou-se e disse:

— Boa tarde, é uma honra ter o senhor por aqui.

E disse:

— Gostou desse modelo?

Meu avô me encarou. Olhou de voltou para o manequim. Pasmo e sem dizer nada, nem percebeu que não segurava mais sua bengala, agora apalpava com as duas mãos o manequim.

O atendente disse:

— Deve ser uma enorme felicidade ser neto do último idoso que existe.

Meu avô ouvindo disse:

— Ele não é meu neto.

O sujeito, corou, olhou para mim e eu disse:

— Claro que sou, para de bobagem.

Apertei a mão do atendente e vi que sua pele era um simulacro. Ele notou que percebi e disse:

— Tenho sessenta e três anos.

E disse:

— Para vender preciso saber como é — Entre os lábios ele deixou um sorriso duro e seco.

Meu avô continuou olhando o manequim. O simulacro era alto, com cabelos escuros, um nariz arrebitado, braços magros. Usava uma camisa xadrez de flanela, calças jeans rasgadas nos joelhos e um par de tênis all star.

Eu disse:

— E aí vovô, o que achou?

Ele me encarou com os olhos semicerrados. Ainda mexia pelo corpo do manequim, tive que impedi-lo quando tentou abrir as calças e disse que gostaria de ver como fizeram o instrumento.

Ele disse:

— Não sou seu avô.

Eu disse:

— Igualzinho com o senhor mais novo, não é?

Ele balançou a cabeça afirmativamente. Uma lagrima escorreu pelo seu rosto. Provavelmente lembrava de sua vida mais jovem. Ele caminhou em minha direção e do atendente. E perguntou:

— Como?

O atendente abriu um sorriso e disse:

— Após muitos estudos, a transferência neural finalmente foi descoberta. Esse manequim que o senhor admirou foi feito em base em fotos antigas, material genético e com a linha óssea mais atual. A pele é feia de uma fibra plástica para imitar os poros da pele. Tudo foi feito com a ajuda de familiares, dizendo traços físicos como altura, peso, espaçamentos.

E disse:

— Então tudo que o senhor está vendo ali, é a cópia perfeita do que o senhor já foi.

Meu avô havia entendido. Ele parou e ficou pensativo. E disse:

— Mas eu gostaria de morrer.

Sorriu e disse:

— Já vivi demais.

E de repente o velho deu um passo para trás. De repente cambaleou. O atendente segurou em seu braço antes que ele caísse. Eu disse:

— Tudo bem vovô?

Ele pediu para que o soltasse, disse estar tudo bem, mas voltou a cambalear, colocou a mão sobre o peito, seu rosto se contorceu, ele tossiu e cambaleou para traz, tentou segurar em algo, caiu sobre o manequim. O simulacro foi ao chão junto com meu avô.

Todos na loja, correram para tirar foto do último idoso no chão.

Eu gritei:

— VOVÔ!

E no chão sobre o manequim, o velho quase morrendo disse:

— Eu não sou seu avô.

Ele tossiu, engasgou-se e ficou imóvel. As pessoas em volta tiravam fotos, faziam vídeos.

O atendente veio ao meu lado, colocou a mão sobre meu ombro e me ofereceu um lenço.

Ele perguntou:

— Ele era seu avô?

Eu secando as lagrimas artificiais que brotavam em meus olhos falsos disse:

— Não.

E disse:

— Era meu filho.

Maicon Moura
Enviado por Maicon Moura em 05/12/2019
Reeditado em 05/12/2019
Código do texto: T6811411
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