Chegando em Yadi

Passara-se cerca de cem milhões de anos desde que o sistema planetário, outrora denominado Loáha, do antigo idioma da civilização Yamkuche que significa, “mãe de todos”, fosse visitado por alguma nave vinda do espaço interestelar, entretanto, neste exato momento, nos confins do alcance da sua estrela, algo inusitado estava prestes a acontecer. Num piscar de olhos, em um ponto onde nada havia – além do próprio espaço – uma espaçonave aparentemente acabara de contrariar as leis da física, quando, de forma abrupta, emergiu em pleno espaço vazio.

A nave em questão é a Daemon, tratada como o artefato tecnológico de maior prestígio e prova incontestável do avançado nível de desenvolvimento científico alcançado pela humanidade; concebida para levar a espécie aos lugares mais distantes do universo. No entanto, a nave nunca chegou a cumprir o propósito a ela atribuído pelas lideranças que, durante séculos, investiram enormes quantias de recursos para viabilizar o projeto de uma espaçonave feita para dominar a antimatéria e utilizá-la como combustível capaz de dobrar o espaço-tempo. Agora, Daemon atendia apenas aos propósitos de um único indivíduo.

Tudo começou quando, por razões ainda desconhecidas às autoridades de uma das principais colônias humanas, localizada no sistema ¹Alpha Centauri, a nave fora sequestrada por seu idealizador e coordenador do projeto que lhe deu origem, o professor Tales, desde então, juntos, passaram a explorar exoplanetas distantes, até então inacessíveis, na busca de vestígios de vida inteligente e de outras coisas obscuras das quais a mente do professor inquietava-se em segredo já há muito tempo. Hoje, Daemon empenha-se em ajudar o seu mestre a alcançar seus obscuros objetivos — obscuros por ser eles tão confusos e enigmáticos, pois aparentemente nem o próprio Tales possuía muita clareza do que procurava.

A poderosa inteligência artificial da qual Daemon fora dotada assume como responsabilidade o comando de todas as complexas operações da espaçonave, cabendo-lhe ainda o suporte necessário as necessidades dos seus únicos dois tripulantes, principalmente o mais frágil, o seu mestre — professor Tales — que naquele momento jazia serenamente em seu leito de hibernação. Por quanto tempo ele dormia? Não importa. Assim como também não há necessidade de ser tão específico a respeito da sua idade. Basta saber que Tales existe há cerca de três mil anos.

Era de conhecimento geral de toda a civilização o fato dele ser o humano mais antigo ainda vivo. Sua origem remonta a antigos calendários, o gregoriano em específico, onde o seu nascimento deu-se em meados do segundo século do terceiro milênio desse longínquo modo de datar. Quando abandonou a incrível civilização dos humanos, que naquela época se estendia por mais de 15 anos-luz de distância do sistema solar, estava no ano 3287 da era chamada ²transhumanista, época em que os humanos já haviam consolidado sua imortalidade, graças aos avanços de áreas como a biotecnologia e engenharia genética.

Ele percorreu algo em torno de oitenta mil anos-luz desde o dia em que, em segredo, deixou Alpha Centauri a bordo da recém-criada Daemon, porém, na perspectiva da nave, havia passado apenas pouco mais de dois séculos, isso, graças a proteção da ³bolha de dobra produzida pela nave ao criar uma distorção no tecido do espaço-tempo, dobrando-o, de tal maneira, a ponto de conseguir chegar ao seu destino muito mais rápido do que a própria luz. Dessa forma, a espaçonave havia atravessado a Via-láctea e agora encontrava-se no outro lado da galáxia, ainda inexplorado pela civilização humana, exatamente no sistema o qual Tales ambicionava alcançar. Eis a hora de despertá-lo — julgou Daemon.

Primeiro a tampa da cabine abriu sem fazer ruído, elevando-se graciosamente até o limiar da câmara, logo em seguida todos os complexos sistemas referentes a hibernação virtual e preservação física foram, um por um, trazendo de volta o sonhador para a realidade.

Como de se esperar, demonstrou dificuldade em manter os olhos abertos, estavam desabituados a claridade, logo, instintivamente, esfregou-os de maneira preguiçosa enquanto se postava sentado, até que, aos poucos, pôde reconhecer o seu diminuto dormitório. Sentia-se confuso e precisava de algum tempo para recobrar-se, quando, felizmente, uma voz familiar o trouxe de volta a realidade.

— Olá Tales! Acabei de acordá-lo. — era Daemon.

A voz preencheu todo o recinto e aparentava vir de todas as direções. Embora imitasse quase que perfeitamente a voz de uma mulher, sutilmente trazia as peculiaridades de uma inteligência artificial, no entanto, para Tales, era reconfortante voltar a conversar com Daemon.

— Olá! — ele disse, quase ao mesmo tempo que bocejava – Chegamos?

— Sim, Acabamos de chegar ao nosso destino. Como previsto, trata-se de um sistema com dez planetas orbitando uma estrela anã jovem, muito parecida com o Sol da Terra. Um desses planetas se encontra na zona habitável da estrela, parece promissor.

— O planeta origem do suposto sinal alienígena.

— Exatamente.

É difícil descrever o que ele sentia naquele momento. Estava excitado, ansioso por finalmente poder tocar o solo do planeta no qual, há alguns anos, havia detectado um estranho sinal que em nada parecia provocado por fenômenos naturais do universo, ao mesmo tempo em que sentia um assombroso pavor por não fazer ideia do que poderia encontrar no distante mundo. Além de tudo, havia uma forte possibilidade de nada existir de tão diferente do que já encontrara anteriormente; de tratar-se apenas de mais um planeta morto e inútil, de onde a vida inteligente nunca emergiu, porém, estava prestes a descobrir que tal visão pessimista não correspondia a grandiosidade da história desse planeta, antes, conhecido por Yadi, termo que traduzido para a língua comum transhumana consiste em algo correspondente a “lar” ou “casa”.

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¹ Alpha Centauri é o sistema estelar mais próximo do Sistema Solar, a uma distância de 4,37 anos-luz do Sol. Consiste de três estrelas unidas gravitacionalmente: o par Alpha Centauri A e Alpha Centauri B, duas estrelas brilhantes e próximas no céu, e uma anã vermelha pequena mais afastada, Proxima Centauri (também chamada de Alpha Centauri C). A olho nu, os dois componentes principais são vistos como um ponto único de luz formando a estrela mais brilhante da constelação de Centaurus e a terceira mais brilhante do céu noturno, superada apenas por Sirius e Canopus.

² O transhumanismo é um movimento intelectual que visa transformar a condição humana através do desenvolvimento de tecnologias amplamente disponíveis para aumentar consideravelmente as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas humanas. O que impele a filosofia tranhsumanista é aerradicação de qualquer forma de sofrimento causado por doenças, pelo envelhecimento ou mesmo pela morte.

³ A Propulsão de Alcubierre (ou Dobra Espacial) é um modelo matemático teórico para uma forma de viagem espacial mais rápida que a luz, utilizada na série de ficção científica Jornada nas Estrelas (Brasil). Em 1994, o físico mexicano Miguel Alcubierre propôs um método de alongamento do espaço em uma onda que, em teoria, poderia fazer com que o tecido do espaço à frente de uma nave espacial se contraia, enquanto que o tecido que está atrás da nave se expanda. A nave se deslocaria surfando esta onda dentro de uma região conhecida como bolha de dobra, onde as características normais do tecido espaço-tempo se manteriam inalteradas. Uma vez que a nave não estaria se movendo dentro desta bolha, mas transportada junto com ela, os efeitos de dilatação do tempo, previstos pela Teoria da Relatividade Especial não se aplicariam à nave, mesmo com a altíssima velocidade de deslocamento em relação ao espaço normal em volta da nave.

Maurício Ravel
Enviado por Maurício Ravel em 19/11/2019
Código do texto: T6798629
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