O escorpião na areia

[História anterior: "O plano dos Alhuq"]

O assunto, polêmico como era, foi levantado com grande cautela e circunlóquios. Numar Alhuq queria saber a opinião de alguns conceituados uluma sobre a reintrodução de máquinas capazes de fazer o serviço humano, mas que não violassem as proibições (punidas, basicamente, com a morte) estipuladas há milhares de anos durante o Jihad Butleriano.

- Que espécie de máquinas? - Indagou o álim Huraira Altamer desconfiado, cofiando a longa barba grisalha.

- Máquinas controladas remotamente, para operação em ambientes hostis - descreveu Numar, de forma vaga.

- Nem vou perguntar se são máquinas construídas à feição da mente humana, posto que isso é haram - atalhou o álim, testa franzida.

- Seriam máquinas que não possuem capacidade de decisão autônoma, dependem de um operador humano para moverem-se e realizarem suas tarefas, syd - informou respeitosamente Numar ao álim. - Algo como uma garra de manipulação para erguer objetos pesados.

- O operador então comandaria estas máquinas por controle remoto? - Indagou o álim, dando a resposta a si mesmo em seguida.

- Neste caso, não vejo problemas.

Numar Alhuq agradeceu a análise e passou para o próximo álim da sua lista, Nazmi Elraman. Elraman tinha fama de ser mais duro em suas avaliações sobre potenciais inovações, do que a média dos uluma. Se a análise de Elraman fosse favorável à proposta dos Alhuq, havia uma grande possibilidade de que o projeto fosse aprovado pelos guardiões da fé, os Muhaymin.

- Então, o que você propõe é uma bidá que substitui o trabalho humano? - Questionou o álim, de longa barba negra e rosto ascético.

Numar ponderou sobre qual conceito de bidá estaria ali em jogo, visto que há boas e más inovações. Deu uma resposta cautelosa:

- É uma bidá que amplia a força humana, como um exoesqueleto mecânico - explicou Numar. - A principal diferença para os exoesqueletos tradicionais, é que neste, o operador não precisará estar dentro da estrutura, mas poderá controlá-la à distância, a partir de uma sala de controle pressurizada, por exemplo.

- Um exoesqueleto mecânico, para muitos, poderia lembrar um dos antigos cymeks, proscritos após o Jihad Butleriano - comentou Elraman em tom casual.

"Isso é um teste", pensou imediatamente Numar. "Uma resposta errada, e ponho tudo a perder".

- Syd, um sayara transporta pessoas em seu interior, e permite que elas se desloquem em grande velocidade sem precisar usar suas pernas, mas é patente que se trata apenas de um veículo, não de um cymek. Um cymek exige que um cérebro orgânico seja utilizado para controlar a máquina que o transporta, o que não é o caso aqui discutido.

- Se esta sua bidá tiver forma humana e parecer se movimentar de forma autônoma, mesmo que haja uma pessoa controlando seus movimentos na sala ao lado, prevejo que terá problemas com os Muhaymin - previu Elraman.

Diante do silêncio de Numar, enunciou de forma didática:

- Perceba, eu falei em "forma humana". Se a sua bidá movimentar-se sobre quatro ou seis pernas, como um animal, é provável que os guardiões da fé relevem a parte da semelhança com os antigos cymeks. Naturalmente, irão exigir esquemas detalhados da sua invenção, para ter certeza de que não é haram.

Numar balançou a cabeça, em concordância. Sim, ele havia entendido. Robôs humanoides estavam fora de cogitação, mas havia margem de manobra para máquinas que lembrassem insetos ou bestas de carga.

Quanto à possibilidade de operação autônoma das citadas máquinas, isto era algo que ficaria para a fase seguinte do plano, depois que os Muhaymin houvessem aprovado o projeto de construção original, onde tal hipótese sequer seria aventada.

- [11/11/2019]