Os mísseis de outubro e o verão de 1973 (Final)

FOME E PERSONALIDADE

A comida era escassa, apenas alguns nacos de carne de frango, dos poucos que conseguiam criar, ovos, milho e ervilhas enlatadas. Quantidade insuficiente para um grupo de mais de trinta pessoas. Mesmo assim a divisão era rigorosamente igual para todos.

A fome era uma companheira constante daquele pequeno grupo de homens e mulheres.

Anos de privações e sofrimento transformam qualquer ser humano. Alguns passaram a ser mais solidários, empreendedores e combativos, outros ficaram mais egoístas, taciturnos, impulsivos ou covardes.

O medo, a fome e o desespero estavam moldando o caráter dos sobreviventes.

O primeiro ano foi o mais difícil de todos. O frio intenso, as doenças e a violência que tomou conta das cidades ceifaram a vida da maioria das pessoas. Talvez fosse a primeira vez na história da humanidade que uma tragédia atingiu totalmente as pessoas independente de raça, gênero, credo religioso, etnia, condição social ou situação geopolítica.

O mundo nunca mais foi o mesmo depois dos misseis de outubro.

Eleonor nunca mais foi a mesma. Aquela garota de dezesseis anos que gostava de passear na praça e se envaidecia com os olhares que recebia não existia mais. O que existe agora é uma mulher de vinte e nove anos que sobrevive às duras penas com o que restou após ser brutalmente violentada: um filho de doze anos e uma vontade férrea de sobreviver.

UM CORPO NA NEVE

Eleonor acha que o frio será para sempre e que nunca mais haverá um único dia de calor. Ela daria tudo por uma tarde bem calorenta, dessas em que o suor faz com que as roupas fiquem grudadas no corpo.

Ela anda desajeitada com as roupas improvisadas para combater o clima hostil, seus pés afundam na neve. Por um segundo ela lembra-se da cena de um filme antigo em que a mocinha fica brincando de jogar bolas de neve com o seu namorado. Ela amava ir ao cinema. Rapidamente ela afasta esse pensamento, não existem mais cinemas.

Ela e seu grupo já estavam há mais de uma hora andando naquela campina gelada quando se depararam com o corpo de um homem. Inicialmente acharam que ele estava morto. Havia um ferimento extenso em suas costas e o sangue havia manchado abundantemente suas roupas. Apesar da vasta barba que lhe cobria o rosto percebia-se que era um homem ainda jovem.

Houve uma breve discussão sobre a viabilidade de levá-lo com eles ou se seria melhor deixa-lo para morrer. Decidiram carregá-lo com eles até o seu abrigo.

CONFRONTO

Um mundo em que as convenções sociais foram, literalmente, explodidas, as fronteiras entre o certo e o errado tornaram-se rarefeitas e anárquicas. Em um contexto assim conflitos tornam-se a regra. Matava-se e morria-se por comida, por território, pela posse de um simples casaco ou de meia dúzia de ovos.

O grupo de Max era menor que o outro, na proporção de três para um. Não dava para vencer, mas também não havia como fugir. Paus, facas, lanças e pedras eram as armas. Max agradeceu aos céus pelos adversários não terem armas de fogo, assim eles teriam uma chance.

A luta não durou muito. Seus quatro companheiros foram logo mortos contra apenas dois dos atacantes.

Em pouco tempo os gritos e gemidos cessaram. Restava o sangue espalhado na neve e corpos que logo seriam esquecidos.

O ferimento em suas costas era profundo, mas não impediu que corresse. O medo o empurrava para frente. Dava para sentir seus inimigos muito próximos. De repente o chão fugiu sobre seus pés e ele deslizou por aquilo que antes deveria ter sido uma ribanceira qualquer.

Seu corpo caiu em uma posição esquisita e lá ficou. Por algum motivo seus perseguidores resolveram deixá-lo no fundo daquela ribanceira, talvez acreditando que ele morreria congelado em pouco tempo.

UM OUTRO AMANHECER

Sentia seu corpo muito dolorido e parecia que suas costas tinham explodido. Aos poucos foi abrindo os olhos e explorando o ambiente ao redor. A última coisa que se lembrava era de ter caído enquanto corria.

Agora já estava totalmente desperto e descobriu-se em um lugar que jamais havia visto.

Percebeu que estava com roupas limpas e que lhe tinham aparado os cabelos e raspado a sua barba.

Onde estava? Quem havia trazido ele para aquele lugar?

Respirava devagar pois suas costas pareciam querer arrebentar a cada movimento que fazia.

Percebeu que estava em um lugar maior e mais confortável que aquele onde ele e seu grupo se refugiavam.

À frente dele haviam várias pessoas que nunca tinha visto antes. Não pareciam hostis e, definitivamente, não faziam parte do grupo que o atacou.

Percebeu entre aqueles que lhe salvaram um rosto levemente familiar. Era uma mulher. Quem seria? De onde a conhecia? Ela ainda era jovem e parecia também lhe conhecer.

Mesmo cansado e respirando com uma certa dificuldade teve que responder a várias perguntas que lhe eram dirigidas. Ninguém iria aceita-lo ali, mesmo que por poucos dias, sem ter a menor ideia de quem era ele, afinal era um mundo perigoso em que viviam.

Finalmente deixaram-no descansar. Enquanto tentava pôr os pensamentos em ordem alguém se aproximou e falou.

- Ei, eu lhe conheço. Sempre via você na praça da minha antiga cidade. Todas as vezes que ia passear com umas amigas você estava lá. Chegamos a conversar muitas vezes. Você se lembra?

Fatos há muito tempo esquecidos emergiram do fundo de um oceano de coisas perdidas.

De repente um pouco do seu antigo mundo retornava. Fazendo um certo esforço para sorrir Max respondeu.

- Seu nome é Eleonor ....

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 18/10/2019
Código do texto: T6773144
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