INVERNO EM SÃO PETERSBURGO.
Rússia, 1836. Tudo estava branco, gelado e frio em São Petersburgo. A cidade sofria com o inverno rigoroso. A chuva fina dava a impressão que estava muito mais frio que os doze graus abaixo de zero. A água caía nos telhados, formando belas esculturas geladas. Pedaços de gelo nadavam, silenciosos, no leito azul do rio Nieva. Anatole Krushev estava há seis meses no exército. O jovem de dezoito anos aguardava, ansioso, a rendição da meia noite. Loiro, alto de olhos azuis. Teria vinte minutos preciosos. Uma pausa para uma ida ao banheiro, um lanche ou uma sopa quente. O recruta fora designado para o posto de vigilância treze, na torre sul do palácio. Era o pior posto. O último a ser visitado pelo oficial rondante. Era geralmente ocupado pelos jovens soldados. Os veteranos ocupavam os melhores postos, inclusive aqueles dentro do luxuoso palácio imperial. O vento castigava a pequena guarita, de frente ao rio. Krushev tirou a neve com a pá. O capitão Ygor chegou. -" Boa noite, soldado Krushev. Assine a prancheta, por favor." Com uma olhada, o oficial analisou a limpeza do local, as condições do uniforme do jovem e de sua arma. Pigarreou e acenou, afirmativamente, com a cabeça. Era rígido e eficiente. -" Puxa!!! Está frio aqui!! Vou colocar carvão na lareira!!!" Krushev fez continência e se retirou. Enveredou pelo pátio do palácio. -" Lareira??? Quatro tijolos com carvão, ele chama aquilo de lareira!!!!!" Krushev chegou ao refeitório. Os recrutas eram os últimos em tudo. Desolado, viu as garrafas de chá vazias. Os caldeirões de sopa!! Também vazios, assim como o saco de pães. Se fosse um oficial iria na cozinha do palácio mas um soldado raso jamais faria isso. Era passível de punições. -" Gorki....ele traz uma garrafa com chá!!!! Vou ao posto dele!!!!" Lembrou-se do outro recruta. Krushev correu até o posto do amigo. A porta entreaberta. -" Gorki.... fiquei sem sopa!!!!" O outro sorriu. -" Ontem foi Kasparov, hoje você!!! A vida de um recruta não é fácil, Krushev!!!!! Por isso trago meu chá e meu pão!!! Deveria fazer o mesmo." Krushev tirou o quepe. -" Me dê chá, colega!!!" Gorki ficou triste. -" Daria com prazer mas Demianenko e Prodasolski passaram aqui e tomaram tudo. Lamento!!!" Krushev deu de ombros e saiu. Precisava retornar ao posto. Tinha um pedaço de pão na mochila. Era o que tinha pra passar a noite. A porta entreaberta. Uma fumaça saía da guarita. O capitão estava com as botas sobre a mesa. -" Retornou, Krushev!!! Agora está quente aqui. Não tranque a porta pois, se dormir aqui dentro, será um cadáver amanhã cedo!!! Essa fumaça mata!!!!" Krushev meneou a cabeça, afirmativamente. -" Achei um pedaço de pão na sua mochila. Usei o pão com óleo pra acender o braseiro!!!! Bom trabalho!!!!" Krushev disfarçou a ira. -" Grato, capitão. Bom trabalho para o senhor!!!!" Não era salutar discordar ou discutir com oficiais. As punições eram severas, como prisão, açoites ou expulsão. Krushev sentou-se. Não tinha ânimo para ler. Saiu e olhou o prédio do palácio. Poucas janelas com luz. -"Um soldado jamais abandona seu posto." Disse a si mesmo. O estômago dele roncou. O jovem colocou a arma no ombro e começou a dar voltas na guarita. Cantava músicas do exército e hinos religiosos. Dançava pra se aquecer. -" Por gentileza, nobre Natasha, feche a janela!!!!" A moça não deu ouvidos a empregada. Nem notou que seu lenço vermelho caiu da janela, prédio abaixo. Ele pousou suave na neve. -" Não tenho sono, Ecatherine. Meu casamento com o duque, velho e rabugento, me dá pesadelos!!!!" Natasha estava prometida ao duque Aleksander Rosmov, de Moscou. O duque ficara encantado com a beleza da sobrinha do czar. Condicionou o envio de seus quatro mil soldados ao Cáucaso, na guerra Circassiana, com seu casamento com Natasha. O czar concordou. A empregada foi até a janela. -" Conjecturas políticas que uma sobrinha do czar deveria saber!!! Pode se resfriar, nobre Natasha!!!!!" A moça sorriu. -"Ohhhh... veja!! Aquele soldado vai acabar abrindo uma trincheira de tanto dar voltas no posto!!!!! Parece um bêbado dançante!!!!!" Natasha sorriu com a cena. A empregada ficou séria. -" Meu tio serviu o exército. Ele dizia que soldados com fome e frio dançam!!! Isso aquece e faz a hora passar!!! O pobre deve estar faminto!!!" Natasha ficou triste e teve pena do homem lá embaixo. Fechou a janela de seu quarto, no terceiro andar do palácio. -" Quero um caldo quente! Um pão! Tenho fome, Ecatherine!!! Providencie, sim???" A empregada se curvou. -" Com licença, nobre Natasha. Vou providenciar!!!!" A empregada saiu. Ela caminhou, resmungando, pelos corredores vazios do palácio. Há tempos servia no palácio. Encontrou Anabele e Berthold na cozinha real. O mordomo dormia. -" Nobres!!! A sobrinha do czar quer um caldo e pão, amiga Anabele!!!!" O mordomo roncava numa cadeira. -" Estou exausta como você, Anabele!! Esses nobres!!! Natasha saiu há pouco de um baile com jantar. Sei que não tem fome. Viu um soldado com fome e frio. Vai levar a comida pra ele, certamente. Esses nobres fazem solidariedade com alguns pobres pra terem assunto na corte!!!! Conheço!!!" Anabele colocou sopa numa vasilha. -" Fazem algum bem pra receber elogios do clero, também!!!" Quando a empregada retornou ao quarto, Natasha estava debaixo dos cobertores. Folheava um livro. A empregada depositou a vasilha e o pão no aparador. Fez a pergunta mesmo já sabendo a resposta da moça. -" Quer auxílio para comer, nobre Natasha????" A moça sorriu. Olhou para o teto. -" Agradeço seus préstimos mas pode se retirar e descansar. Está tarde, Ecatherine!! Boa noite!!!!" A empregada se curvou. -" Grata por servir a nobre Natasha nesse dia. Tenha bons sonhos e se precisar de mim, toque a sineta!!! Boa noite!! Durma com os anjos!!" Assim que a empregada saiu, Natasha pulou da cama. O livro foi ao chão. Ela conferiu se a sopa estava quente. Natasha saiu do quarto. A porta no final do corredor. Pouca iluminação. Natasha abriu a porta e saiu do palácio. O vento frio a recebeu com fúria. Ela colocou o capuz na cabeça. Ecatherine a vigiava, detrás de um pilar de mármore. Natasha afundou os sapatos na neve. Olhou para o alto do palácio. Viu sua janela. Estava a poucos metros da guarita de Krushev. Viu a porta entreaberta. O jovem soldado estava de gorro e luvas. Um grosso casaco. Pés sobre a mesa. Ele percebeu um vulto. Achou que era o capitão. O oficial sempre tirava uma pestana entre uma e quatro da manhã, após o carteado com os veteranos. Krushev pegou a arma. -" Alto. Identificação, por favor!!!!" Ele saiu pra fora. Natasha estava congelando. A chuva cessara mas o vento era muito frio. Os lábios tremiam. Ela entrou. -" Trouxe sopa pra um soldado!!!!" Era uma voz feminina!!! O doce perfume dela invadiu o ambiente. O cheiro da sopa o deixou feliz. Krushev pensou que estava sonhando. Ela colocou a vasilha na mesa grosseira. Era um milagre!!! Alguém se importava com ele. Krushev não conhecia nem cumprimentava os cozinheiros do palácio!! Ela devia ser empregada da cozinha. Natasha tirou o capuz e sorriu. Krushev ficou sem palavras. Sem chão. Sem reação. Ela era belíssima. Olhos azuis, como os dele. -" Obrigado!!! Muito obrigado." Só disse isso. Tímido. Ela saiu. Krushev sentou. Era mesmo verdade! Conferiu a quentura da vasilha. O pão. Era real. Ele saiu e não viu a moça. As janelas do palácio sem nenhuma luz. De onde veio aquele anjo??? Pensou ele. Orou e agradeceu a Deus. Agradeceu o envio daquele anjo. Saboreou a sopa. Era divina. Muito rica e apetitosa. Digna de reis e nobres. O pão era macio e de trigo bom. Um néctar dos deuses. Aquela refeição era um bálsamo. Ecatherine viu Natasha retornar ao quarto. A moça parecia feliz. O sono demorou a vir pois Natasha pensava naquele soldado da sua idade. Era lindo. O coração dela estava descompassado. A alma feliz por fazer o bem. Krushev passou o restante da noite lendo. Estava feliz. Os primeiros raios de sol. O soldado Ostappenko rendeu Krushev. Ao sair, o recruta viu um lenço vermelho na neve. Recolheu o lenço e o guardou no bolso. O jovem soldado foi a cozinha do palácio e deu a vasilha a um serviçal. Não entrou em detalhes com o empregado da cozinha. Queria sua casa e sua cama. Apenas isso. Resolveu não contar o fato a ninguém. A noite chegou. Natasha abriu a janela. Olhava para a guarita de Krushev. O jovem soldado, prevenido, levara uma garrafa com chá. Escondera seu pão no armário dessa vez. Ali o capitão Ygor não encontraria. Ele acendeu o carvão. A rendição da meia noite. O mesmo capitão. Krushev tomou um pouco de sopa no refeitório. Isso era raro. Gorki deu-lhe uma batata. Ficaria ótima assada na brasa. O capitão Ygor se foi. Krushev abriu o armário pra pegar o pão. Um rato grande pulou sobre ele. O pão na boca do rato. Krushev pegou a pá de retirar neve. O rato saiu da guarita. A neve alta. Krushev deu voltas em torno de seu posto, atrás do bicho. Natasha olhava a cena. Já tinha dispensado Ecatherine. Já tinha deixado caldo e pão no quarto. Em pouco tempo ela já estava em frente a guarita de Krushev. Ele havia perdido o rato de vista. -" Boa noite. Trouxe caldo pra você, soldado!!!!" Só então ele notou a presença de Natasha. -" Boa noite. Muito obrigado!!!! Entre..." Ele pegou a vasilha e os dedos dele tocaram a mão dela. Natasha sentiu um arrepio. Tirou o capuz. Krushev estendeu a mão. -" Krushev!! Prazer!!!" Ela ficou tímida. -" Naty. Sou do palácio!!!!" Ele intuiu que ela trabalhava na cozinha do palácio. Ele se virou e ficou frente a frente com Natasha. -"Deliciosa a sopa, moça. Deus a abençoe!!!" Krushev estava muito perto. Natasha abriu os lábios e fechou os olhos. Krushev a puxou e, num impulso, a beijou. Natasha flutuava. Ele tinha dado seu primeiro beijo, assim como ela. Natasha voltou ao seu quarto, apaixonada e radiante. Na noite seguinte ela retornou, após a meia noite. Poucas palavras e muitas carícias. Krushev pensava em se casar e se mudar com ela pra Minsk, na casa do tio Olaf. -" Eu a quero, Naty!!!" Disse ele, se referindo ao casamento. Natasha soprou e apagou a vela. A lua cheia no céu. A neve caía lá fora. Natasha o abraçou. Deixou o casaco de pele cair. Estava nua. Krushev ficou sem reação mas logo se entregou ao amor. Mal viram a hora se adiantar. Natasha se foi. Estava feliz demais. Krushev vivia um sonho. A família real retornou de Viena. O czar convocou os ministros. Os ânimos da guerra estavam exaltados. A Rússia queria dar fim ao armistício e conquistar de vez o Cáucaso, região entre o Negro e o Aral. -" Mande Natasha se aprontar!!! Vai casar com o duque! Já!!! Quero as tropas dele, todas no Cáucaso!! Imediatamente!!!!" Natasha e a família real partiram, dois dias depois, para Moscou, local do casamento com o duque Aleksander. Os moscovitas partiram para a guerra, o que alegrou o czar. Krushev e o exército de São Petersburgo marcharam para o front. Jovens e adultos da Rússia, todos convocados pra guerra. Ecatherine, no palácio do duque, em Moscou, percebeu os enjôos de Natasha e intuiu a gravidez da nobre. O duque ficou exultante. Teria um filho, finalmente. Krushev amarrou aquele lenço vermelho na arma. Beijava as iniciais N e W bordadas no tecido fino. O pelotão do capitão Ygor se destacava. Krushev era bravo e eficiente na morte dos inimigos. Três anos de lutas e Krushev ganhou o apelido de urso pois lutava ferozmente. O capitão Ygor morreu em combate. Gorki também pereceu. Dez anos depois, Krushev era alçado ao posto de sargento, depois capitão. Tinha medalhas e honrarias. Sete anos depois, a Rússia dominava o Cáucaso, definitivamente. Krushev voltou pra São Petersburgo. Procurou por Naty. Ninguém a conhecia. Nenhum sinal da moça. Ele aceitou o pedido do ministro da guerra e foi servir na Sibéria. Ali ficou doze anos, comandando e treinando os bravos soldados daquele território gelado. O duque Aleksander Rosmov morreu, envenenado por rivais. Viúva, Natasha retornou pra São Petersburgo. Levou consigo o filho, o duque Petrov. Um rapaz alto, forte, de olhos azuis. O oficial Krushev foi destacado para o Cazaquistão, onde ficou por treze anos. Mancava da perna direita. Tinha asma e a vista fraca ao ser dispensado do exército. Morou em Minsk por seis anos. Tio Olaf já tinha morrido. Krushev tentou trabalhar de ferreiro, em vão. Desde sempre fora militar. Haveria uma parada militar em São Petersburgo. Krushev e outros soldados foram chamados pra receber medalhas de honra ao mérito das mãos do czar. Krushev decidiu morar de novo na cidade onde nascera. A neve caía. A população eufórica com o desfile militar. Natasha e o filho duque no palanque, ao lado da realeza. Após os desfiles, os soldados veteranos subiriam ao palanque real. Um a um. Medalhas, aplausos e sorrisos. Krushev reviu antigos amigos. Estava feliz. Os membros da família real e os ministros colocavam as medalhas nos pescoços dos soldados. Krushev ergueu o olhar. Estufou o peito e fez continência. Um jovem soldado anunciou seu nome. O povo aplaudiu muito pois todos falavam da bravura daquele soldado russo. Natasha se arrepiou. Seria mesmo ele???? Ela procurou por ele. O duque Petrov pegou a medalha. Ele cumprimentou Krushev. Um aperto de mão firme. Olho no olho. -" Já ouvi falar de sua dedicação a Rússia e sua bravura, oficial Krushev." Natasha, ao lado do filho, chorava. Krushev a reconheceu. Ele ficou sem reação. Se estava no palanque era porquê era da realeza!!!! -" Mãe! Esse é o Krushev!!! O urso do Cáucaso!!" Disse o duque. -" Naty..." Krushev sorriu e saiu do desfile. A noite caiu. Houve festa ao povo e aos soldados. O rio Nieva estava calmo. Frio e calmo. A neve cobria a cidade de branco. A velha Ecatherine abriu as janelas do antigo quarto de Natasha. Ela ficou boquiaberta. Saiu do quarto, tentando correr. O quarto do duque. Ela bateu. Natasha saiu. -" Minha nobre Natasha. Venha ver!!!!" Elas foram ao quarto antigo. Natasha olhou da janela. Um soldado dava voltas na guarita. Ecatherine sorriu. Natasha saiu do palácio. Era ele. Krushev a esperava. O duque Petrov viu a mãe saindo e a seguiu. -" Krushev!!! Sou eu." Gritou Natasha. Krushev se apoiou na guarita. Ergueu a cabeça e abriu os olhos. -" Esse lenço é seu?!? N e W.... iniciais suas? Você é nobre!!!" O duque Petrov e Ecatherine se colocaram atrás de Natasha. -" Sim. Natasha Wadigorov. Sou sobrinha do czar e viúva do duque Aleksander Rosmov." Alguns oficiais e soldados se aproximaram. Krushev deu um passo mas caiu na neve. O duque o amparou. -" Esse homem precisa de um médico!!!" Gritou o duque. Krushev sorriu. -" Deixe o médico dormir, filho. Já encontrei meu anjo salvador!!!" Natasha chorava. Ela abraçou o velho soldado. -" Pensei em você cada minuto, todo dia, Krushev!! Esse é seu filho. Nosso filho!! Petrov é um duque!!!" Krushev olhou para o duque. Era mesmo parecido com ele, quando jovem. Krushev sorriu e deu o lenço vermelho a Natasha. -" Olá, meu filho!!!" Fechou os olhos e morreu!!! FIM