O Conto do Três vezes Três - parte seis
Era 1994, o Real estava dando seus primeiros passos e eu naquela época com 6 anos, não fazia ideia do que acontecia no mundo. Eu só fazia ideia do que acontecia no meu mundo. A solidão me fez criar um lugar mágico e épico onde os adultos viam apenas pasto, cercas e terra seca. O sol daquela época não era tão forte, aquecia no ponto certo, era quase como um carinho no rosto.
Mamãe cuidava da casa, papai trabalhava. Cada um fazendo seu melhor no seu canto. Primeira viagem dos dois ao mundo psicodélico de cuidar de uma criança, pior ainda, uma criança especial. Uma criança que, quando nem sabia falar direito e entender as coisas, via a trajetória que fez até renascer neste corpo. Com a sensação de que não pertencia aqui.
Toda noite era o mesmo sofrimento, um homem com uma carabina nas mãos me perseguia enquanto o cenário que eu corria mudava de cor: rosa, azul, amarelo, verde e quando chegava na cor preta, eu levava um tiro. Eu não corria com pés e mãos, eu levitava, eu não sei explicar bem como era. Eu não sentia a dor do tiro, não sei explicar a sensação. Mas sempre após esse episódio, eu acordava suado e chorando. O deboche e o desprezo do homem que me matava, me doía. Olhava para o teto e via borboletas e mariposas roxas sobrevoando a minha cama, como se me vigiassem ou cuidassem de mim.
O tempo foi passando e a conexão foi caindo, mas nunca desapareceu.
Dias após os últimos sonhos magníficos onde eu era perseguido e morto, outra coisa começou a me chamar atenção. Mamãe tinha acabado de ganhar uma máquina de lavar, naquela época era item de luxo e poucas pessoas tinham. Acontece que ela veio com um zumbido e mamãe teve que usar assim mesmo, pois naquela época nem assistência autorizada tinha, e fora o zumbido ela funcionava perfeitamente. Notei que o zumbido diminuía quando eu saia de perto e ficava apenas a observando. Mas todas as vezes que ela estava na função de centrifugar, o zumbido reaparecia cada vez mais forte. A nossa casa era grande e nos fundos era onde ficava a máquina, próxima a cisterna de água, um pé de maracujá e uma pequena horta morta. Eu comecei a observá-la dia após dia, e ficava tentando entender de onde vinha aquele zumbido. Não era um barulho comum, eu também não consigo descrevê-lo, mas parecia algo como uma interferência de rádio misturado com um som sintetizado de uma voz que falava as vogais "U" e "A". Um detalhe que esqueci de contar pra vocês, era que meus pais ouviam a máquina fazer o zumbido, porém muito baixo, quase imperceptível. Eu ficava louco com aquele barulho ensurdecedor.
Terça-feira a tarde mamãe estava conversando com a vizinha no portão, a máquina de lavar começou o processo de centrifugação. Eu corri para perto dela, queria ouvir o zumbido mais uma vez, eu estava começando a ficar impressionado com ela. A máquina de lavar tinha se tornado uma coisa na minha vida, eu queria me comunicar com ela, ela estava falando comigo. UA! Enquanto centrifugava, a máquina começou a dar pequenos pulos e bater a tampa de vidro, hoje sabendo mais um pouco do mundo, imagino que mamãe tinha colocado mais roupa do que podia. Eu na minha inocência comecei a rir, bater palmas e a pular junto com a máquina. O sol batia forte em cima de nós, o vento quente do verão soprava uma brisa relaxante. A máquina de lavar voltou ao normal, o processo de centrifugar chegou ao fim e eu fiquei triste, pois o zumbido havia enfraquecido e se desconectado de mim. Nessa noite, em meus sonhos coloridos e borrados, o homem voltou para me perseguir, estávamos correndo alucinados em uma floresta e ele com a mesma arma atrás de mim. Ele usava um chapéu preto de abas redondas, tinha barba e a presença dele sufocava mais do que qualquer outra coisa que eu possa descrever.
Do que eu me lembro, dessa vez ele não me matou. Enquanto corria desviando de árvores e com medo de ser morto a qualquer momento, avistei ela, uma amiga, uma esperança: a máquina de lavar! Meu coração se esquentou e meu rosto ficou vermelho de calor, nessa floresta fazia frio. A primeira coisa que pensei foi pular dentro dela, e assim o fiz. Quando pulei, senti uma leveza que nunca havia sentido antes, na minha respiração vieram notas fortes e intensas de hortelã e uma súbita paz tomou conta de meu corpo. Eu estava rodando 360º sem parar por muito tempo quando de repente fui sugado por uma força gigantesca que nunca sentirei igual. Ao invés de acordar na cama, chorando e gritando como normalmente acontecia quando sonhava com isso, eu abri os olhos e estava dentro da máquina de lavar nos fundos da minha casa. Um zumbido no ouvido terrível, uma dor de cabeça que eu nunca tive igual. Era tarde, minha mãe estava conversando com a vizinha no portão. Eu não sabia se chamava ela, pois estava com medo, ou se ficava quieto pelo resto de minha vida. Essas coisas não acontecem com qualquer um. Eu decidi ficar quieto.
Sai de dentro da máquina de lavar, eu estava lavado de suor. Algo estava diferente, mas eu não sabia o que. O céu estava com um azul diferente, as cores à minha voltam estavam com um tom fosco. Nos fundos de casa eu sempre avistava as vacas pastando e dessa vez eu pude ver de longe como elas eram bonitas e imponentes, grandes e gordas. Eu me movia numa leveza impressionante, apesar do zumbido incessante e da dor de cabeça. Comecei a sentir arrepios por todo corpo, um vento que soprava e eu me estremecia inteiro. Os raios de sol ultrapassavam o meu corpo, me aqueciam por fora e por dentro. O gosto do ar que eu nunca tinha sentido antes, agora sentia e era impressionante. Os pés no chão sentindo cada centimetro de grama e terra. O cheiro da terra, o cheiro da água, o cheiro do ar e o sentimento de calor no coração sem igual. Quando menos me dei conta, todas as vacas do pasto estavam enfileiradas na cerca de arame que tínhamos para demarcar nosso lote. Elas me olhavam fixamente, eu não conseguia entender, elas estavam calmas, eu também. A dor foi passando, o zumbido ficando quase inaudível, o cheiro absurdo de hortelã passou por minhas narinas vindo não sei de onde. E eu só conseguia olhar para as vacas, sentir a natureza sob meus pés e enxer meu pulmão daquele ar diferente que eu estava me acostumando a sentir. O zumbido estava baixo, a voz sintética com as vogais U, A complementavam a cena. Foi então que dentro da minha cabeça, ouvi uma voz feminina, mas essa voz não falava nada que eu podia entender, eu só conseguia sentir.
Senso de urgência, minhas pernas começaram a coçar, parecia que tudo estava voltando ao normal. Mas que normal? A maior das vacas me olhava sem piscar, roçava as patas na grama inquieta. O que vou relatar agora aconteceu em frações de segundos: a maior das vacas avançou sobre a cerca de arame farpado vindo em minha direção. A cerca arrebentou, as outras vieram atrás. Todas se machucaram com os arames, estavam sangrando. Vi o olhar da maior das vacas desviar de mim por um segundo. Ela olhou para trás. Eu levantei meu olhar para olhar por trás dela. O homem de chapéu de aba preta com uma carabina nas mãos vinha correndo do pasto em nossa direção…