Meio termo
Era raro que um integrante do Corpo de Monitores interferisse nas operações de representantes legais de um estado-membro da Federação Galática, salvo em algumas situações bem específicas: quando tais operações pusessem ostensivamente em risco a vida de inocentes, e simultaneamente, ocorressem no espaço interestelar, fora dos domínios planetários do citado estado-membro. A bordo do seu cruzador, em missão de patrulha, o capitão Oscar Espinoza logo concluiu que estava diante de um caso que pedia a sua intromissão, quando recebeu um SOS oriundo de um velho cargueiro zizamuh, em rota para o planeta colonial huganari Tlalak-IV.
- Coordenadas do pedido de socorro, Irma? - Indagou à Chefe de Operações, Irma Gabor.
- Alfa 4 Delta 6 Épsilon 2 - Replicou ela. - Podemos chegar lá em... dez minutos.
- Mude o curso para interceptação, Monicelli - ordenou Espinoza para o navegador.
- Entrando no hiperespaço em 3, 2, 1... - informou Piero Monicelli.
A escuridão cravejada de estrelas ao redor do cruzador, dissolveu-se num turbilhão cinzento, quando a nave saltou para o hiperespaço.
Espinoza então voltou-se novamente para Gabor:
- Com o quê estamos lidando?
- O cargueiro informa que estão sendo atacados por duas naves de combate, e que seus campos de força estão cedendo.
- Naves de combate... de quem?
- Zizamuh.
Espinoza franziu a testa.
- É um assunto legal do governo zizamuh?
Irma Gabor esforçava-se para entender o que estava sendo dito em seus auscultadores, ao mesmo tempo em que traduzia a situação para seu comandante.
- Os atacantes ordenam que o cargueiro se renda e desligue os campos de força... informam que a nave foi roubada e que a tripulação é constituída por criminosos. Já os atacados, afirmam que são cidadãos comuns e que possuem mulheres e crianças a bordo.
- Avise às naves de combate que cessem imediatamente o ataque - deliberou Espinoza. - Estamos chegando para avaliar a situação.
Gabor transmitiu a instrução por escrito, via ansível. A resposta não tardou.
- Afirmam que estamos nos intrometendo num assunto interno da Federação Zizamuh, capitão - alertou Gabor.
- Informe que estamos no espaço interestelar, e que o Corpo de Monitores é quem dá a última palavra nestas circunstâncias - retrucou Espinoza.
Quando o cruzador emergiu do hiperespaço, as naves de combate zizamuh ainda perseguiam de perto o cargueiro, mas ao menos não estavam mais atirando contra ele. Espinoza ordenou que o cruzador se posicionasse entre os dois grupos, e solicitou uma varredura do cargueiro à Chefe de Operações.
- As máquinas estão em sobrecarga, não vão aguentar muito tempo se continuarem fugindo nesta velocidade... - relatou ela. - Quanto à tripulação, há 37 pessoas a bordo, das quais, pelas leituras, 12 são crianças e 16 do sexo feminino. Parece que a versão das autoridades zizamuh sobre criminosos acaba de ruir.
- Mas não a versão de que o cargueiro foi roubado - ponderou Monicelli, lendo dados na tela do terminal à sua frente. - Ele pertence a uma companhia de navegação de Hogama-IIc, e o comandante não tinha autorização para fazer essa viagem para Tlalak-IV.
- Por que alguém arriscaria a vida de mulheres e crianças numa empreitada dessas? - Indagou Gabor.
- É o que precisamos saber - redarguiu Espinoza. - Vou até lá com a doutora Takahata, verificar o que está acontecendo.
* * *
Uma vedeta do cruzador transportou o capitão Espinoza e a médica de bordo, Nora Takahata, até o cargueiro. Dentro de um hangar cheirando a queimado e com luzes que piscavam irregularmente, foram recebidos por um grupo de meia dúzia de zizamuhs adultos, criaturas humanoides de pele acinzentada, orelhas pontudas e cabelos escuros, que, num ambiente mal-iluminado, quase passariam por terrestres. Todos os presentes portavam o indefectível Tradutor Universal pendurado no pescoço, que dispensava o aprendizado de línguas alienígenas. O líder dos fugitivos apresentou-se:
- Sou Zog Olery, capitão desta nave, e estes são representantes das famílias a bordo.
- Por que roubou o cargueiro? - Inquiriu Espinoza.
- Porque as famílias que aqui estão, não tinham outra opção - redarguiu Olery. - Mesmo sabendo que estava violando a lei, resolvi quebrá-la, para que eles tivessem uma possibilidade de sobrevivência. Eu acredito que a vida humana é superior ao cumprimento de metas.
Todas as criaturas inteligentes da Galáxia denominavam-se humanas, mas a alusão à metas intrigou Espinoza. A Chefe de Operações, que acompanhava a conversa pelo intercom, explicou-lhe rapidamente do que se tratava.
- Os zizamuh possuem uma organização social na qual cada indivíduo adulto deve ser capaz de atingir metas produtivas fixadas pelo governo... caso não as atinja, a sua existência e a de seus descendentes pode ser terminada.
- Pena de morte? - Inquiriu Espinoza.
- Socialmente determinada - replicou Gabor.
- Compreendo... - comentou o capitão. Tecnicamente, as naves de combate zizamuh estavam no seu direito em "terminar" a existência de indivíduos improdutivos, mesmo que entre eles estivessem mulheres e crianças. Todavia, Espinoza não parecia disposto a aceitar este raciocínio passivamente.
- A reação desproporcional à sua objeção de consciência, pode ser enquadrada como abuso de poder, o que é formalmente condenado pelas leis da Federação Galática - explicou Espinoza à Olery. - Nos limites da autoridade planetária, ela determina o que considera ou não válido para seus cidadãos, mas no espaço interestelar, enquanto representante da Federação, posso aplicar as leis gerais que valem para todos os planetas-membro e que permitem a nossa coexistência pacífica. Desta forma, e visto que esta nave irá necessitar de reparos imediatos, vou solicitar que se transfiram para o meu cruzador, a fim de que os transporte em segurança até Tlalak-IV, onde poderão solicitar o status de refugiados.
E assim foi feito. Esvaziado o cargueiro, o capitão transferiu sua posse de volta às autoridades zizamuh, as quais não tiveram outro remédio que não acatar a deliberação de Espinoza.
Meses depois, o inspetor Hasselblad foi até o mundo central dos zizamuh e negociou a liberação de todos os indivíduos insatisfeitos com o sistema de metas imposto pelas autoridades locais. A partir daí, os objetores não precisaram mais arriscar-se roubando naves para fugir para outros sistemas solares: o transporte, gratuito, passou a ser fornecido pela Federação Galática.
- [26-07-2019]